Discurso durante a 34ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas à desigualdade no acesso à educação no País.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Críticas à desigualdade no acesso à educação no País.
Aparteantes
Paulo Paim.
Publicação
Publicação no DSF de 22/03/2013 - Página 11891
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • REGISTRO, APROVAÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, REFERENCIA, GARANTIA, DIREITOS, EMPREGADO DOMESTICO, NECESSIDADE, CRIAÇÃO, POLITICA EDUCACIONAL, OBJETIVO, IGUALDADE, EDUCAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Boa tarde a cada Senador e Senadora, Sr. Presidente.

            Antes de ontem, eu vivi aqui uma experiência que eu creio justifica o nosso mandato, Senador Jorge Viana, e tenho certeza de que o senhor sentiu isso, quando nós votamos aqui a chamada PEC do trabalho doméstico - e o Senador Paim foi um dos grandes batalhadores por isso.

            Eu fiquei realmente feliz, orgulhoso de dizer que eu era Senador, no momento em que isso foi aprovado, mas, ao mesmo tempo, Senador Paim - e o senhor vai entender isso melhor do que muitos -, eu me senti como se estivesse votando a Lei do Ventre Livre, mas não a Lei da Abolição, e senti aqui o desejo de que não esperássemos 18 anos pela abolição, como os escravos esperaram 18 anos entre Ventre Livre e Abolição.

            Esses direitos que foram concedidos vão dar, de fato, uma cidadania, uma condição de vida muito melhor para as nossas empregadas e empregados no serviço doméstico, não há dúvida disso, mas ainda vão continuar com as mesmas amarras para a promoção social deles próprios e de seus filhos.

            A verdadeira abolição, Senador Jorge, seria no dia em que a escola do filho do trabalhador doméstico ou da empregada doméstica fosse a mesma escola dos filhos da família com que eles trabalham. Aí, sim, a gente poderia dizer: veio a abolição, a abolição pela qual o futuro dos filhos deles dependerá do talento, da persistência, da vocação, mas não da renda, não da cidade onde vive.

            Lamentavelmente, embora nós tenhamos dado um passo ao aprovar aquela PEC, aquela proposta de emenda à Constituição, nós demos um passo ainda muito pequeno, diante do que o Brasil precisa para, um dia, podermos nos orgulhar do direito igual de acesso à educação para todos.

            Eu creio que deve haver poucos sofrimentos sociais - diferentes de morte, diferentes de doença, aquele sofrimento social de impotência, de descontentamento - como o sofrimento de uma pessoa que ganha um salário mínimo para cuidar dos filhos dos outros, que vão a boas escolas enquanto os seus filhos ficam sem escola ou em escolas ruins.

            Eu creio que pouca gente pensa e se coloca no lugar de uma empregada doméstica que acorda de manhãzinha cedo, prepara o café, ajuda as filhas e os filhos da família com que trabalha a botarem uma farda bonita e leva-os até o carro para irem à escola. Depois, essas crianças voltam na hora do almoço, com suas mochilas cheias de livros, contando histórias da escola, falando dos equipamentos que usam, e ela serve a comida, serve o almoço, pensando que, naquele momento, os seus filhos estão em casa sem terem ido à escola, ou que foram à escola e voltaram sem dever de casa, sem livro na mochila, sem terem aprendido aquilo que é necessário para desenvolver uma pessoa ao longo do futuro.

            O Senador Jorge Viana há pouco comentava comigo o problema do analfabetismo de crianças no Brasil. Ele dizia: “Como é que a gente quer que uma criança aprenda a ler nos primeiros anos se os pais não sabem ler?” Aí ele lembrava uma coisa realmente que vale a pena citar: em casa de analfabetos, não há lápis; em casa de analfabetos, não há borracha para apagar o que é escrito; em casa de analfabeto, não deve haver praticamente nenhum papel em que escrever, porque não escrevem. Como é que a gente quer que uma criança entre numa escola e aprenda a ler logo se ela nunca teve a possibilidade de desenvolver a habilidade de pegar em um lápis?

            Quando fui reitor da UnB, eu me lembro de que implantei um programa para erradicar o analfabetismo daqueles trabalhadores mais humildes. Eram 70 analfabetos. Um dia, quando fui visitá-los, eu vi que estavam aqueles jardineiros, pedreiros, bordando, e eu não entendi. Perguntei à diretora do programa, e ela disse: “Nós fazemos isso para que eles comecem a se acostumar a pegar no lápis, porque eles só costumam pegar num cabo de vassoura, num cabo de enxada, numa pá. E quem pega em pá, em enxada tem muita dificuldade em pegar no lápis.” É como se me dessem um bisturi. Eu não saberia pegar num bisturi. Seria um perigo eu usar um bisturi. Por isso, foi preciso fazer que eles usassem as mãos em atividades que requerem o uso hábil dos dedos.

            Nossas crianças chegam à escola sem esse hábito. Como fazer com que elas cheguem com o hábito de usar o lápis se elas não tiveram lápis? Como fazer com que elas se desenvolvam para aprender o que é diferente de uma letra para outra se elas não brincaram com bens pedagógicos?

            Imagine, portanto, uma senhora que é empregada doméstica, que vê os meninos de que ela cuida brincando com jogos pedagógicos de todos os tipos, com papel, caneta, lápis, bens coloridos, sabendo que os seus filhos não têm isso!

            Precisamos de uma PEC da igualdade da educação para todos neste País. Precisamos de uma PEC, uma proposta de emenda à Constituição que faça com que a escola aonde vão os filhos das classes abastadas seja da mesma qualidade daquela aonde vão os filhos das classes mais pobres. Que os filhos das empregadas domésticas estudem em escolas com a mesma qualidade da dos filhos dos seus patrões. Aí a gente pode dizer que votou a abolição da escravatura.

            É óbvio que esta abolição não se faz com uma lei, não se faz com um decreto, como aquele que assinou a Princesa Isabel e que dizia “a partir de hoje todos estão alforriados, não há mais escravos nem trabalho servil no Brasil”. Não! Esse é um processo, mas tem que começar e tem que saber como começar, e eu não vejo outra maneira de fazer com que as escolas sejam boas para todos, em todas as partes no Brasil, se não fizermos a federalização da educação de base, se não fizermos com que a educação seja responsabilidade nacional da União, e não do pobre Município.

            Há um Município no Brasil cuja renda per capita, Senador Paim, é de R$1,67. Como é que vai haver uma boa escola nesse Município, a não ser que a União chegue ali e implante a escola de qualidade? Não há outro jeito! Por isso, precisamos de um programa de federalização da educação para que as 451 escolas federais do Brasil - que são as melhores, são melhores na média que as particulares, são melhores que as estaduais, melhores que as municipais -, para que essas 451 escolas se espalhem pelo Brasil inteiro, 451 escolas que são as escolas técnicas, os colégios militares, os institutos de aplicação, o Colégio Pedro II.

            Por que apenas a um pequeno número de brasileiros, meninos e meninas, essas escolas atendem, e não a todos? Não se faz de um dia para o outro. Mas, em um processo de 10, 15, 20, 25 anos, é possível no Brasil ter todas as escolas com a qualidade que têm as escolas técnicas, os institutos de aplicação, o Colégio Pedro II, os colégios militares. Para isso, precisa haver uma carreira nacional do magistério que pague muito bem ao professor! Agora, que selecione com muito rigor os professores e que exija muito deles na dedicação do dia a dia. Que inclusive abra mão da chamada estabilidade plena e adote uma estabilidade responsável; estabilidade porque não pode ser demitido pelo prefeito, pelo governador, pelo presidente, nem pelos pais dos meninos; mas responsável, porque eles não continuarão no emprego se não se dedicarem, não derem resultados e não forem capazes de aprender a cada dia e ensinar a cada dia. Isso é possível.

            Esses jovens professores, com altos salários, com alta exigência, com alta formação terão que ir para escolas boas, bonitas. Isso é possível, mas não de repente. Não como uma Lei Áurea no dia 13 de maio de 1888, mas como algumas leis. E que definam o processo pelo qual essas leis vão se transformando em realidade.

            O que eu lamento é que continuamos adiando fazer isso. Nós continuamos com a mesma ideia de que a lenta melhora que se faz vai chegar um dia a uma boa escola. Não vai! O sistema que está aí está tão carcomido, tão depredado que não vai dar o salto. Nós vamos precisar criar um sistema novo, que vá crescendo, enquanto o outro vá diminuindo até zerar.

            São essas novas escolas de qualidade que vão fazer o sistema que o Brasil precisa, para que a gente possa, aí sim, comemorar o dia em que o Brasil decretou a abolição de toda a desigualdade na qualidade da escola. Vai continuar havendo desigualdade nas pessoas, porque umas têm mais vocação, outras têm mais persistência, outras têm vocação e persistência, mas não desigualdade na qualidade do acesso à escola a que elas vão.

            Eu fiquei muito feliz de votar aqui a PEC da trabalhadora doméstica. Muito feliz! Senti-me como se estivesse votando a Lei do Ventre Livre. Mas isso não me satisfaz. Quero estar aqui ainda - e não quero ficar muito tempo aqui, devo dizer - para votar um conjunto de leis que permitam, aí sim, comemorarmos a abolição que vem da igualdade na escola de cada uma e de cada um, menina e menino, deste País.

            É isso, Sr. Presidente, que queria dizer, manifestando, mais uma vez, a satisfação, o orgulho de estar aqui naquela tarde, mas, ao mesmo tempo, a minha ansiedade para que façamos o nosso dever de casa completo, e não apenas um pedacinho dele, mesmo que importante, como foi a PEC do trabalho doméstico.

            Era isso, Sr. Presidente. Mas o Senador Paim pediu a palavra, e é com o maior prazer que lhe passo.

            O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Senador Cristovam, primeiro quero cumprimentá-lo pelo seu pronunciamento, em que V. Exª fala que a verdadeira abolição só virá, de fato, com a educação de qualidade para todos. Quero dizer a V. Exª, aqui de público, que estive no Rio Grande do Sul, numa cidadezinha do interior chamada Morro da Borússia, e fiquei impressionado, porque lá estão esperando V. Exª, porque V. Exª diz que vai almoçar lá. A palestra o senhor vai fazer na capital, Porto Alegre, mas há, parece, um compromisso do PDT do Estado de levá-lo lá para almoçar. Por isso quero aqui dar os meus cumprimentos. Quer dizer, o seu trabalho está, como diz um amigo meu, espraiado por todo o Brasil, e que bom que está também lá, nas coxilhas do Rio Grande. Em segundo lugar, Senador, digo que eu concordo plenamente com V. Exª: foi um dia histórico a votação da PEC, e, veja, hoje, 21 de março, Dia Internacional de Luta Contra a Discriminação Racial, contra os preconceitos, e nós votamos a PEC praticamente na data que antecedeu esse dia. E concordo tanto com V. Exª que discordo daqueles que dizem que a aprovação da PEC vai gerar desemprego. Não vai. Não vai. Lembro-me da Constituinte: quando nós aprovamos alguns direitos para as mulheres, diziam que nós estaríamos criando um exército de desempregadas. Não aconteceu nada disso, e não vai acontecer de novo porque agora o empregado ou a empregada doméstica que estava procurando um emprego numa empresa privada, ou no comércio, ou banco, ou indústria porque lá ele teria carteira de trabalho, Fundo de Garantia, carga horária, férias mais um terço, enfim, tinha todos os direitos - então, ele já não queria mais ficar como empregado ou empregada doméstica -, agora, percebendo que vai ter os mesmos direitos que teria numa iniciativa privada - numa empresa, por exemplo - no lar, no convívio, numa atividade de que ele gosta, eu acho que nós teremos um número maior inclusive de empregadas e empregados à disposição no mercado de trabalho nesse setor. E vai ser bom para todos porque vai-se assegurar agora o que nós chamamos de segurança jurídica porque, se você está cumprindo o que manda a CLT, não há problema nenhum, porque aqueles milhares que não estão ainda assinando a carteira e não estavam cumprindo direitos básicos vão ver agora que, se não assinarem a carteira, eles vão responder no futuro. Então, a partir desse movimento, nós vamos ver que nós teremos um número maior de homens e mulheres se apresentando para trabalhar de empregado e empregada doméstica, e um número maior da classe média - digamos - assinando a carteira na íntegra porque sabe que vai ter que pagar aquilo que manda a CLT. Parabéns a V. Exª. Foi, de fato, o último resquício da escravidão em matéria de legislação que nós quebramos neste momento. Claro que a luta contra os preconceitos nós vamos continuar peleando aí - eu acho -, infelizmente, ao longo das nossas vidas. Parabéns a V. Exª.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PDT - DF) - Obrigado ao Senador Paim.

            Quero concluir apenas dizendo que, durante o debate sobre a Abolição da Escravatura, inclusive nesta Casa, um dos argumentos contrários à Abolição era que os escravos ficariam desempregados, que os donos, ao não terem mais a propriedade sobre eles, iam mandá-los embora, e eles ficariam sem ter onde trabalhar, ou seja, é um argumento de uma maldade imensa: ou você continua escravo ou morre de fome; ou você continua um trabalhador doméstico sem nenhum direito ou você vai ficar com fome e desempregado. Isso é mal, perverso e, ao mesmo tempo, não é o que acontece. O que acontece é que a gente liberou força de trabalho quando acabou com a escravidão. E aqueles escravos passaram a criar outras coisas, outras alternativas, apesar de alguns terem passado por algumas dificuldades, sim, porque antes tinham o que comer, embora mal.

            Não tenho a menor dúvida de que é uma posição, é uma lei, uma situação de alforria no mundo moderno, mas uma alforria ainda muito tímida. É, no máximo, a Lei do Ventre Livre. Não fizemos a abolição. Esta só virá com a escola de qualidade igual para os filhos da empregada e os filhos dos seus patrões. Enquanto não fizermos isso, não podemos comemorar plenamente a nossa obrigação, a nossa responsabilidade.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/03/2013 - Página 11891