Discurso durante a 70ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem a todo o povo negro e afro-descendente do País, no transcurso do Dia da Abolição da Escravatura; e outro assunto.

Autor
Lídice da Mata (PSB - Partido Socialista Brasileiro/BA)
Nome completo: Lídice da Mata e Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM, DISCRIMINAÇÃO RACIAL. DIREITOS HUMANOS.:
  • Homenagem a todo o povo negro e afro-descendente do País, no transcurso do Dia da Abolição da Escravatura; e outro assunto.
Publicação
Publicação no DSF de 14/05/2013 - Página 25453
Assunto
Outros > HOMENAGEM, DISCRIMINAÇÃO RACIAL. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • HOMENAGEM, COMEMORAÇÃO, DATA, ANIVERSARIO, FATO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, LOCAL, BRASIL, REGISTRO, PUBLICAÇÃO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, SENADO, RELAÇÃO, ASSUNTO, COMENTARIO, DADOS, PESQUISA, REFERENCIA, VIOLENCIA, VITIMA, NEGRO.
  • COMENTARIO, FATO, DEPOIMENTO, CORONEL, FORÇAS ARMADAS, LOCAL, COMISSÃO NACIONAL, VERDADE, ASSUNTO, OCORRENCIA, VIOLENCIA, TORTURA, PERIODO, DITADURA, BRASIL.

            A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco/PSB - BA. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores e demais cidadãos que nos ouvem, eu cheguei neste Senado hoje, Senador Cristovam, muito decidida a fazer dois registros desta tribuna e, ao mesmo tempo, impactada pelo belo e grande discurso feito pelo Senador Roberto Requião, a quem quero parabenizar. Decidi, portanto, incorporar essas duas questões num discurso só, embora elas pudessem parecer distanciadas uma da outra.

            Antes, no entanto, de iniciar meu pronunciamento neste 13 de maio, eu quero fazer o registro já feito pelo Senador Cristovam Buarque, da importância...

(Soa a campainha.)

            A SRª LÍDIDE DA MATA (Bloco/PSB - BA) - ... da publicação do Jornal do Senado de hoje, que traz uma reprodução do que foi a batalha e a aprovação da Lei Áurea no Senado e um fac-símile da própria lei.

            Esse primeiro registro eu gostaria de fazer. Ao mesmo tempo, em nome do destaque dos baianos nessa luta tão importante para o nosso País, gostaria de ler uma partezinha do discurso do Senador Sousa Dantas, da Bahia, que afirmou que a escravidão marcou uma época de miséria, de sofrimentos e de penúria.

            Contestando aqueles que defenderam contra os dois Senadores, ele dizia: “O desaparecimento de 600 mil criaturas escravas, em vez de produzir a nossa ruína, tornará o Brasil mais próspero, graças ao trabalho livre”.

            Registrando isso, quero, Sr. Presidente, também sugerir à Mesa da Casa que essa publicação seja enviada, disponibilizada, ao menos um exemplar, para cada biblioteca pública do nosso País, para que todos tenham acesso, eventualmente, a esse documento de extrema importância para a história do nosso povo.

            Como disse, cheguei aqui e fiquei impactada positivamente pelo pronunciamento do Senador Requião, que fez hoje, sem dúvida alguma, desta tribuna, um dos seus mais contundentes e brilhantes pronunciamentos. E olha que o Senador Requião é um grande orador! Mas quero ressaltar o seu discurso, assim como o discurso do Senador Aloysio Nunes, tratando de Luís Gama, o do Senador Paulo Paim, trazendo aos dias de hoje as conquistas realizadas pela luta dos negros em nosso País, o do Senador Cristovam Buarque, entre tantos outros que se pronunciaram a respeito do tema.

            Ao fazer isso, gostaria de abordar alguns aspectos da nossa sociedade atual que o significado da presente data histórica nos evoca e nos permite uma reflexão crítica sobre nosso presente, à luz das dolorosas lições de nosso passado.

            Machado de Assis, nosso escritor maior, descreve em seu conto Pai Contra Mãe alguns aspectos da paisagem urbana do Brasil de um passado recente. Com a fina ironia que lhe era peculiar, conhecemos o horror de práticas corriqueiras naqueles dias em que imperava a hedionda face da escravatura.

            Diz o seu texto:

A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha de flandres.

A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhes tapar a boca. Tinha só três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado. Com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede, e aí ficavam dois pecados extintos, e a sobriedade e a honestidade certas.

Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco, e alguma vez o cruel. Os funileiros as tinham penduradas, à venda, na porta das lojas. Mas não cuidemos de máscaras.

O ferro ao pescoço era aplicado aos escravos fujões. Imaginai uma coleira grossa, com a haste grossa também à direita ou à esquerda, até ao alto da cabeça e fechada atrás com chave. Pesava, naturalmente, mas era menos castigo que sinal. Escravo que fugia assim, onde quer que andasse, mostrava um reincidente, e com pouco era pegado.

            Mas não cuidemos de máscaras! Essa a advertência machadiana que nos alerta para o seu contrário. Cuidemos de nossas máscaras! E de como elas ocultam a verdadeira face subterrânea da violência que, ao forjar nossa sociedade, hoje toda hora nos assalta em nosso cotidiano.

            Machado nos oferece um retrato das práticas corriqueiras de uma violência tão cruel que marcaram profundamente a formação de nossa sociedade e ainda lançam suas sombras sobre muitas das práticas ainda presentes em nossas instituições, uma de suas maiores heranças: a violência policial e a prática generalizada da tortura como método de interrogatório.

            Essa violência institucionalizada do Estado brasileiro sempre respeitou uma regra fundamental: a de se restringir aos pobres e aos afrodescendentes. As ditaduras, no entanto, romperiam essa regra - especialmente a ditadura de 1964 -, com o arbítrio político, a tortura e os maus tratos policiais, atingem também a classe média engajada na resistência democrática contra os golpistas.

            E aí falo do segundo tema que queria abordar hoje aqui.

            Emblemático da arrogância e prepotência desse período foram os fatos, Senador Wellington, que envolveram o depoimento à Comissão Nacional da Verdade, do Coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra, na semana passada, que, reproduzidos nos telejornais do Brasil, chocaram as consciências democráticas do nosso povo.

            O Coronel comandou o Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do 2o Exército, em São Paulo (DOI-Codi-SP), órgão de repressão da ditadura militar, entre 1970 e 1974.

            Mesmo liberado pela Justiça da obrigação de prestar informações não resistiu e vituperou: "Estávamos lutando pela democracia e estávamos lutando contra o comunismo. Se não fosse a nossa luta, se não tivéssemos lutado, eu não estaria aqui porque eu já teria ido para o paredón. Os senhores teriam um regime comunista, um regime como o de Fidel Castro. O Brasil teria virado um 'Cubão' [em referência a Cuba]."

            Confrontado por Cláudio Fonteles, um dos membros da Comissão da Verdade, com a documentação reservada do próprio DOl-Codi que apontam em 50 o número de mortos no órgão durante o período em que foi dirigido pelo coronel, negou que tenha cometido assassinato, tortura e sequestro. O ex-comandante afirmou que nenhuma tortura foi cometida dentro das instalações do órgão de repressão do governo militar. E afirmou o Coronel que eram de mortes em combate nas ruas com armas na mão, apesar do testemunho, anterior ao dele, de um vereador de São Paulo torturado por ele próprio.

            Como diria Machado de Assis: “Mas não cuidemos de máscaras!”

            Para o advogado e ex-defensor de presos políticos José Carlos Dias, que também integra a CNV, o depoimento foi emocionalmente forte e mexeu com os presentes. "Hoje foi um dia muito penoso para mim. Eu defendi mais de 500 presos políticos e a maior parte vítimas do Coronel Ustra. Defendi pessoas que foram mortas sob as ordens dele".

            Não se conformando com esse depoimento, o Coronel, também num ato claro de provocação, por mais de uma vez, acusou a nossa Presidente Dilma, segundo ele, de ser uma terrorista que pertenceu a quatro organizações terroristas. Quero deixar claro aqui a minha total solidariedade à Presidente Dilma na sua participação política de juventude e, hoje, portanto, honrando o povo brasileiro com a sua presidência.

            É preciso situar a hipocrisia do Coronel em nossa história de violência e discriminação. Há exatos 125 anos, o Brasil tornava-se o último país independente do continente americano a abolir a escravatura.

            Proclamada em 13 de maio de 1888, a Lei Áurea sepultou um dos maiores e mais prolongados atentados aos direitos humanos da história da humanidade. Foram 388 anos construindo a riqueza de um país à custa de mãos calejadas e costas marcadas de homens e mulheres traficados do continente africano, simplesmente por serem negros.

            Urge reconhecer que o negro não é apenas o portador de monumental contribuição às artes, à cultura, à culinária, ao idioma, aos costumes da sociedade brasileira, mas que ele é parte indissociável do nosso processo civilizatório, juntamente com os europeus e os indígenas, é condição sine qua non para trilharmos o necessário caminho da reparação a esta vergonha histórica chamada escravidão.

            Com base nos dados do Censo de 2010, negros e pardos já somam a maioria da população em mais de 56% dos Municípios brasileiros. Em outras 18% de cidades, representam mais de 75% da população. Registre-se que foi neste último censo, elaborado pelo IBGE, que foi introduzida a pergunta sobre cor ou raça para todos os domicílios e não mais por amostragem, como era antes. Isso permitiu que os dados apresentassem, de forma mais fidedigna, não apenas uma mudança demográfica, mas principalmente social e cultural.

            De acordo com o levantamento de 2010, São Paulo é a cidade com maior número de pretos e pardos em todo o País, com cerca de 4,2 milhões, seguido do Rio de Janeiro com cerca de 3 milhões e Salvador com cerca de 2,7 milhões. Se forem considerados apenas negros, Salvador lidera o ranking com 743,7 mil.

            Isso nos torna, portanto, todos mestiços, todos negros, apesar de apenas uma parte de nós ser reconhecida como tal e a maior parte daqueles que têm a pele da cor negra continuarem sendo discriminados em nosso País.

            O Brasil, no entanto, caminha para diminuir e respeitar as diferenças para construir uma sociedade mais igualitária. A chamada Lei das Cotas representou um avanço. Segundo reportagem da revista IstoÉ, do mês de abril, da qual me permitam reproduzir um trecho:

As cotas raciais deram certo porque seus beneficiados são, sim, competentes. Merecem, sim, frequentar uma universidade pública e de qualidade. No vestibular, que é o princípio de tudo, os cotistas estão só um pouco atrás. Segundo dados do Sistema de Seleção Unificada, a nota de corte para os candidatos convencionais a vagas de Medicina nas instituições federais foi de 787,56 pontos. Para os cotistas, foi de 761,67 pontos, A diferença entre eles, portanto, ficou próxima de 3%.

            Mas o que mais preocupa e assusta são as estatísticas das violências cometidas contra negros e pardos. O Mapa da Violência de 2013, que se baseia em dados de 2010, disponibilizado pelo Cebela, infelizmente mostra a dura e triste realidade na qual a população negra continua com os piores índices de homicídios gerados por armas de fogo em todas as regiões do Brasil.

            A violência que se inscreve na pele negra é quase três vezes maior se comparada ao setor branco da sociedade. A partir do levantamento de 2010, constata-se que foram assassinados 26.049 negros e 10.428 brancos - a população negra e jovem é a mais afetada. As taxas de homicídio da população preta - 19,7 óbitos para cada 100 mil pretos - são 88,4% maiores do que as taxas brancas - 10,5 óbitos para cada 100 mil brancos. Ou seja, morrem proporcionalmente 88,4% mais pretos do que brancos. Já a taxa de óbitos por armas de fogo dos pardos é 156,3% maior do que a dos brancos - se é que existem brancos efetivamente neste País. Esse é um trecho destacado dessa pesquisa.

            Segundo essa pesquisa, como o Senador Requião destacou aqui, morrem pretos, pobres, jovens, adolescentes neste País, onde alguns segmentos clamam, de forma extraordinária e surpreendente para nós, pela diminuição da maioridade penal para continuar a perpetrar esse crime contra a nossa juventude, desta vez já criando um arcabouço legal para que a violência continue.

            Essa é a gênese histórica da arrogância, a que me referi antes, do Coronel Ustra. A violência em nosso País sempre foi uma estratégia de nossas elites para preservar um sistema cruel e injusto. A tortura e a chacina étnica ainda continuam representando a velha forma do preconceito nas relações sociais, condição essa que se perpetua desde o sistema econômico escravocrata.

Por isso, constatamos que infelizmente a abolição ainda está inconclusa.

            Quero, com este pronunciamento, homenagear todo o povo negro e afrodescendente de nosso País, em especial da minha terra, da Bahia, que registra maior parte de sua população negra. Terra onde os tambores tocam, seja nos blocos afoxés, expressões da resistência cultural encontrada pelo nosso povo negro, como também nos terreiros de candomblé, revelando que existe também uma religião afrodescendente que, apesar de ter sido expressamente proibida de ser praticada em nosso País, hoje, já legalizada, expressa a resistência também do povo às suas tradições religiosas.

            Este 13 de maio é celebrado como Abolição dos Escravos. Para as comunidades negras e afrodescendentes outra data surge, o 20 de novembro, que é o Dia da Consciência Negra, em memória ao exemplo de Zumbi dos Palmares. Ambas marcam, de forma importante e fundamental, a conscientização progressiva da comunidade negra, especialmente nas grandes cidades, na luta por seus direitos. Mas ainda carece de maior propagação a conscientização de nossa sociedade da valorização dos direitos de todos os brasileiros.

            Quero destacar que, neste ano, dois filmes trouxeram à tona a questão da escravidão na América do Norte, filmes que foram assistidos por milhares e milhares de brasileiros: Django Livre, denunciando de forma muito cruel, crua, a escravidão nos Estados Unidos, e Lincoln, contando a história da aprovação da abolição, naquele país, da Emenda 13, que acabou com a escravidão.

Os brasileiros se postaram chocados diante daquela cena, porque não há filmes nacionais que retratem também, com muita clareza e de forma crua, o que foi aquele período da escravidão do nosso povo. Mas nós, como políticos, com o papel da Pedagogia, que é política, não podemos deixar de marcar essa data com a denúncia do que foi aquele momento para a vida do povo brasileiro e de saudar a decisão histórica da Câmara, do Senado, e mesmo da Princesa Isabel, de participar desse evento no Brasil, sem esquecer a grande luta de resistência do povo negro que morreu lutando e se organizando nos quilombos - até hoje algumas comunidades quilombolas existem - e da necessidade de garantir os seus direitos.

            Esta sociedade, sem a violência que foi transmitida através de gerações e forma à civilização brasileira,...

(Soa a campainha.)

            A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco/PSB - BA) -... exige que respeitemos os direitos de todos: negros, mulheres, homossexuais, quilombolas para que possamos ter um Brasil digno de ser chamado Brasil democrático. É preciso muito para acabar de vez com o preconceito, com a discriminação e com as mazelas sociais que afetam os negros e afrodescendentes do nosso País. Mas quero ter a certeza de que este Senado contribuirá para que nós possamos chegar a esse dia.

            Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/05/2013 - Página 25453