Fala da Presidência durante a 112ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do centenário de nascimento do político e guerrilheiro Carlos Marighella.

Autor
João Capiberibe (PSB - Partido Socialista Brasileiro/AP)
Nome completo: João Alberto Rodrigues Capiberibe
Casa
Senado Federal
Tipo
Fala da Presidência
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração do centenário de nascimento do político e guerrilheiro Carlos Marighella.
Publicação
Publicação no DSF de 09/07/2013 - Página 43586
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, CENTENARIO, NASCIMENTO, POLITICO, ESTADO DA BAHIA (BA), COMENTARIO, ATUAÇÃO, HISTORIA, AUTORIDADE.

            O SR. PRESIDENTE (João Capiberibe. Bloco/PSB - AP) - Damos sequência a esta sessão solene em homenagem ao Deputado Constituinte Marighella.

            Marighella foi Deputado Constituinte e um lutador indomável. E eu, nesses dias que antecederam esta sessão, fiquei refletindo sobre como sintetizar, numa fala, essa personalidade gigante da história do nosso País que é Carlos Marighella. E eu me lembrei: minha filha mora em São Paulo e convidou uma colega para assistir a um documentário sobre a vida de Carlos Marighella. E ela fez um texto que eu gostaria de ler, neste momento, na abertura desta sessão:

Marighella - o que é um herói?

Há várias definições no dicionário Houaiss nas quais nosso personagem se encaixaria. Mas arrisco minha própria definição: herói é alguém que está fora da curva; "feito de outro barro", como disse um dia um índio do Oiapoque.

Esta semana, assisti ao filme "Marighella", um documentário cuidadoso com os dados históricos e plasticamente belo, produzido e dirigido por Isa Grinspun Ferraz, sobrinha daquele que é o personagem central da trama, Carlos Marighella. O filme é instigante, faz pensar no passado, no presente, em ideais, sonhos de um país (de um mundo) diferente, em pessoas ímpares, tantas coisas que um texto só é insuficiente para esgotar tudo. Por isso, vou tentar me concentrar no tema do herói.

Sendo filha de combatentes da ALN (Ação Libertadora Nacional), cresci ouvindo falar de Marighella, de como enfrentou duas ditaduras; de como queria acabar com as desigualdades sociais; de como sabia liderar outros que tinham o mesmo desejo que o seu; de como era corajoso, forte, envolvente e poeta.

Não por acaso tenho um irmão que se chama Carlos [que está aqui sentado conosco], em sua homenagem. Ele sempre fez parte do panteão de heróis da minha família, que inclui, na ordem de primeira grandeza, Che Guevara e Camilo Cienfuegos, este também homenageado como segundo nome do meu irmão Carlos. Marighella é para nós uma espécie de herói particular.

Fui ao cinema acompanhada de uma amiga, Carmen, para quem Carlos Marighella era pouco conhecido, tendo-lhe sido apresentado apenas na graduação em Ciências Sociais. A conversa depois do filme deixou claro que meu herói só era de foro privado por falta de espaço público. Carmen me disse, pegando o gancho nas falas da película: "ele é como Tiradentes, é um mártir dos tempos recentes, mas ainda desconhecido". Fiquei pensando no ainda, em quanto tempo AINDA levaria para que ele fosse estudado nas escolas como um herói nacional. Desconfio (ou espero) que a mobilização em torno

da Comissão da Verdade e da abertura dos arquivos da ditadura possa acelerar esse processo, revelando também os vilões da história.

Mas aqui quero introduzir a questão que dá título a este texto: o que é um herói? Há várias definições no dicionário Houaiss nas quais nosso personagem se encaixaria. Mas arrisco minha própria definição: herói é alguém que está fora da curva; “feito de outro barro”, como disse um dia um índio do Oiapoque; capaz de inspirar os outros e de ouvi-los; corajoso, altruísta; que consegue enxergar à frente de seu tempo; alguém que não nega as contradições próprias do ser humano (inclusive as suas).

Um herói não é um santo. E Marighella não o era, mantendo-se sempre radical em sua forma de pensar e agir. Mais ainda, um herói não é um santo. E Marighella não o era, mantendo-se sempre […] [nas suas posições]. Isso aparece no filme em diferentes situações, como na fala de Antônio Cândido contando como fora atacado pela revista Fundamentos, dirigida por Marighella, com o epíteto “Trotskista”, que, como ele explica, na época era usado como um terrível xingamento e não como uma vertente do comunismo oposta ao stalinismo. E, sobretudo na atuação direta do líder como guerrilheiro, seja assumindo a ação do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, mesmo discordando de sua função estratégica, ou nas chamadas “expropriações das riquezas dos grandes capitalistas” (como assaltos a bancos e ao trem pagador). Seu radicalismo não era, contudo, de um dogmatismo empedernido, pois, se assim não fosse, ele não teria abandonado o stalinismo após saber dos crimes de Stálin. Manteve-se sempre comunista, mas a revolução que aspirava era construída a partir da realidade brasileira e não da importação de modelos outros.

Parafraseando Cazuza, eu diria que meus heróis não “morreram de overdose”; morreram torturados, exterminados, aniquilados pelas forças do Estado e “meus inimigos [ainda] estão no poder”. Fato incrível, porque hoje, no poder, está sentada uma ex-guerrilheira. No entanto, ela está cercada pelas mesmas figuras retrógradas de antanho e fazendo um governo que permite o massacre de lideranças populares e indígenas, que, em nome de um duvidoso e antiquado modelo de desenvolvimento, sacrifica o meio ambiente e, com isso, o presente das populações locais e o futuro das novas gerações. O que entristece e decepciona é ver que este governo não incomoda a quem deveria incomodar, é apenas uma reedição moderna do que vem sendo feito há séculos no País. A diferença é que agora sobram algumas migalhas a mais aos mais pobres. Definitivamente, a Presidenta não se enquadra na minha definição de herói.

Contudo, da geração que sonhou e lutou junto com Marighella, há ainda muitos vivos, alguns deles presentes no filme e tão personagens deste quanto Marighella. Esses homens e mulheres continuam agindo para mudar o mundo tão injusto em que vivemos, atuando em várias frentes, como no apoio às mães dos mortos injustamente nas periferias das metrópoles brasileiras; denunciando uma Polícia Militar sangrenta, brigando pela abertura dos arquivos da ditadura, pela apuração da verdade dos crimes cometidos por esta, pelo resgate da memória daqueles que foram subjugados pelo Estado e pela punição dos torturadores; advogando para movimentos sociais, movimentos estudantis e sindicatos; buscando fazer da educação um instrumento de criatividade e transformação; lutando por um desenvolvimento socioambiental e econômico sustentável, pelas chamadas minorias que vivem nos interiores e sertões do País e na Amazônia -- ribeirinhos, parteiras tradicionais, índios, quilombolas --; e por um Estado mais transparente e menos corrupto.

Estes são meus heróis, pois acredito que todos precisamos de heróis -- até mesmo os mais céticos. A eles dedico este texto.

            Esse texto é de uma pessoa que acompanhou e que, ao longo de toda a sua vida, ouvia falar em Carlos Mariguella, e tinha noção do que ele representava para toda uma geração. É evidente que essa filha escreveu esse texto com duras e ácidas críticas ao Governo, e fiz questão de mantê-las no texto, para respeitar a sua posição. Mas ela se inquieta, porque as oportunidades de conhecer, de fato, o político Carlos Mariguella, o lutador social, é rara. São raras as oportunidades que nós temos de divulgar o que aconteceu no País. E ela escreveu esse texto antes da implantação da Comissão da Verdade; e, de fato, a Comissão da Verdade está trazendo à tona fatos relevantes, importantes, principalmente para as novas gerações, para os mais jovens entenderem que a democracia neste País custou enormes sacrifícios, custou vidas, e que a democracia não aconteceu no nosso País por um desejo das elites; aconteceu pela vontade do povo e, principalmente, pela vontade daqueles que ousaram lutar com os meios de que dispunham.

            Nós vivíamos um período da história em que havia uma única contradição: de um lado, o capital; de outro, o trabalho. E Carlos Marighella se filiou, de um lado, em defesa dos injustiçados. Passou pelo Parlamento brasileiro com uma brilhante atuação, uma fantástica atuação, com propostas que estão pendentes até hoje e que ele não conseguiu transformar em lei. Mas essas propostas ainda ressoam aqui dentro.

            Por último, ao mesmo tempo em que nós homenageamos Carlos Marighella, eu tenho um gabinete -- o de nº 22 -- que fica na Ala Filinto Müller, homenagem a um torturador que esta Casa insiste em não mudar. Mas eu sei que o Senador Inácio Arruda, que está aqui, deve falar sobre essa questão. É difícil para quem viveu a ditadura, para quem sofreu tortura entrar no Senado e ter, diariamente, que me deparar com o nome de um torturador a abrigá-lo. Essa é uma coisa muito triste. Acho que o Parlamento já deveria ter tomado providências, mas há uma resistência enorme em não mudar essa denominação. Não é a primeira vez, já houve várias tentativas. No meu primeiro mandato de Senador, nós tentamos, mas não conseguimos, porque esbarramos na CCJ. Agora, há várias outras tentativas, e acho que só revelando a história, só com o conhecimento da nossa história, é possível fazer as mudanças de que precisamos, pelo menos para conviver em paz com a nossa memória histórica.

            Dando sequência à sessão, eu queria convidar a Senadora Lídice da Mata para usar a palavra.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/07/2013 - Página 43586