Discurso durante a 112ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do centenário de nascimento do político e guerrilheiro Carlos Marighella.

Autor
Lídice da Mata (PSB - Partido Socialista Brasileiro/BA)
Nome completo: Lídice da Mata e Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração do centenário de nascimento do político e guerrilheiro Carlos Marighella.
Publicação
Publicação no DSF de 09/07/2013 - Página 43588
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • SAUDAÇÃO, DEPUTADO FEDERAL, SENADOR, GOVERNADOR, PRESENÇA, SESSÃO ESPECIAL, COMEMORAÇÃO, CENTENARIO, NASCIMENTO, POLITICO, ESTADO DA BAHIA (BA), COMENTARIO, HISTORIA, ATUAÇÃO, AUTORIDADE, VIDA PUBLICA.

            A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco/PSB - BA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Senador João Alberto Capiberibe, principal propositor desta sessão, que me tem como coadjuvante, eu já havia também feito homenagens a Carlos Marighella na Câmara dos Deputados e vi agora, nessa proposição de Capi, a possibilidade de nós fazermos isso aqui de maneira mais organizada. E, mais do que isso, com a ideia de que não devemos parar, nem ter como referência uma homenagem, mas homenagens constantes a essa figura que impressiona, por sua capacidade, sua força, sua integridade, sua coragem, todos os brasileiros que já ouviram dele falar ou que conviveram com ele.

            Quero saudar a Exma Sra Deputada Federal Janete Capiberibe; o Governador do Estado do Amapá, Carlos Camilo Capiberibe; o companheiro Carlos Augusto Marighella, filho de Carlos Marighella, companheiro de muitas lutas políticas na Bahia; o Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Sr. Paulo Abrão Pires Junior, comissão esta que foi à Bahia e homenageou Marighella também, na oportunidade em que lá esteve; a Coordenadora do Comitê pela Verdade, Memória e Justiça do Distrito Federal, Sra Iara Xavier; o Sr. Rafael, representando a Embaixada de Cuba; as senhoras e os senhores aqui presentes, partilhando deste momento importante do Senado Federal; e os órgãos de comunicação da Casa.

            O teatrólogo alemão Bertold Brecht dizia: “Triste do povo que precisa de heróis.” Pretendia Brecht com essa afirmação valorizar o protagonismo coletivo dos povos na história em oposição à visão tradicional que sempre destacou os chamados grandes personagens, numa visão idealista de que a história se reduziria à soma das ações individuais de grandes homens, uma galeria de heróis, como uma réplica humana do panteão dos deuses greco-latinos.

            Mas sabia bem o grande alemão que a história e suas transformações sociais não podem dispensar a capacidade e o estoicismo individual de muitos que sabem cumprir a sua parte e preservar a sua integridade humana nos momentos mais difíceis. Ele mesmo o provou com sua corajosa resistência ao nazismo.

            Coincidentemente, discutimos o herói, que o Senador Capiberibe colocou no seu pronunciamento.

            Nesses dias em que a nossa juventude e o nosso povo em geral parecem ter descoberto a força da ação coletiva nas ruas de nossas cidades, contestando a política institucional, os partidos e seus líderes, é extremamente oportuno lembrar um homem que acreditava na política como um instrumento indispensável para a transformação das sociedades, que acreditava na necessidade de partidos como instrumentos coletivos de ação política e que acreditava como poucos na justiça e na liberdade. E que ofereceu sua própria vida como exemplo de integridade e amor ao povo. Lembrar-se de Carlos Marighella.

            Poeta, assim Marighella definia sua origem:

Ei Brasil-africano!

Minha avó era nega haussá,

ela veio foi da África,

num navio negreiro.

Meu pai veio foi da Itália,

operário imigrante.

O Brasil é mestiço,

mistura de índio, de negro, de branco.

Eu canto a terra…

Todos sabem que outra

mais garrida não há…

“Teus risonhos, lindos campos têm mais flores"…

Bom! Lírios já houve

mas agora é que não.

Eu canto a terra,

eu canto o povo…

Cantam os poetas

e cantando vão…

            Esse poeta negro baiano nasceu em Salvador em 5 de dezembro de 1911. Ainda adolescente, já questionava criticamente o capitalismo, sistema que ele identificava como responsável pelas desigualdades, injustiças e demais mazelas sociais. Daí o seu despertar para o engajamento nas lutas sociais, dando início a uma trajetória revolucionária que não teria retorno.

            Muitos anos depois escreveria em seu poema Liberdade:

Não ficarei tão só no campo da arte,

e, ânimo firme, sobranceiro e forte,

tudo farei por ti para exaltar-te,

serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te

dominadora, em férvido transporte,

direi que és bela e pura em toda parte,

por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,

que não exista força humana alguma

que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,

possa feliz, indiferente à dor,

morrer sorrindo a murmurar teu nome.

            Em 1929, aos 18 anos, inicia o curso de engenharia civil na antiga Escola Politécnica da Bahia, e, em 1932, ingressa na Juventude Comunista. Nesse mesmo período participa de manifestações contra o regime autoritário implantado pela Revolução de 1930, e escreve e divulga poema ridicularizando o interventor da Bahia, Juracy Magalhães. Em consequência, pela primeira vez, é preso e espancado, por determinação expressa do interventor.

            Em 1936, abandonou o curso de engenharia e mudou-se para São Paulo por exigência da direção do PCB, com a tarefa de reorganizar o partido, que havia sido duramente reprimido após o fracasso da chamada intentona Comunista de 1935. No dia 1o de maio de 1936, é preso pela segunda vez e durante 23 dias foi brutalmente torturado, permanecendo encarcerado por um ano sem que houvesse qualquer condenação formai contra ele.

            Libertado, em 1937, pela anistia assinada pelo Ministro Macedo Soares, quatro meses depois volta a atuar na clandestinidade devido ao golpe de Getúlio Vargas, que instaura o Estado Novo. Até 1939, quando mais uma vez é preso e torturado, dedica-se à reestruturação do partido e ao combate à ditadura Vargas. Nos seis anos seguintes, Marighella é encarcerado nos presídios de Fernando de Noronha e Ilha Grande.

            Anistiado, em abril de 1945, participa ativamente do processo de redemocratização do País. Com a deposição de Getúlio, são convocadas eleições gerais, o PCB é legalizado, e ele é eleito Deputado Federal Constituinte, com expressiva votação, pelo Estado da Bahia. Na Câmara dos Deputados, tem uma atuação marcante, despontando como um dos mais combativos Parlamentares daquela legislatura, em defesa da soberania nacional, das causas operárias e de denúncias das péssimas condições de trabalho e aviltantes salários a que eram submetidos os trabalhadores brasileiros.

            Em decorrência da anulação do registro do PCB, em 1947, e da cassação dos mandatos dos Deputados Constituintes no início de 1948, só restou a Marighella retornar à clandestinidade. Na década de 1950, participa ativamente das campanhas populares em defesa do monopólio estatal do petróleo, contra o envio de soldados brasileiros à Coreia, organiza a greve geral “dos cem mil”, e, em 1953, visita a China Popular e a União Soviética. E, também nesse período, dá início, com a publicação de Alguns aspectos da renda da terra no Brasil, a uma série de ensaios sobre a questão agrária brasileira.

            Com a eleição e posse de Juscelino Kubitschek, em 1956, o País experimentou um período de estabilidade política e o PCB viveu uma fase de semi-legalidade. Em 1961, assume Jânio Quadros a Presidência da República, cuja renúncia, antes mesmo de seu primeiro ano de mandato, provoca um período de grande instabilidade, criando a maior crise político-militar do período republicano.

            O Vice-Presidente João Goulart toma posse sob intensa oposição de setores empresariais, de setores da grande imprensa e principalmente dos militares.

            Em 31 de março de 1964, é deflagrado o golpe militar que instala um regime autoritário, que se prolongaria por mais de vinte anos, de 1964 a 1985, e o País assiste à perseguição, prisão e tortura de sindicalistas, estudantes, intelectuais, camponeses, e mesmo de militares que resistem ao golpe.

            Entre 1965 e 1966, escreve e publica os livros Por que resisti à prisão e A Crise Brasileira. Nesse último, analisa criticamente a posição do PCB frente à ditadura e defende a opção pela luta armada, baseada na aliança operário-camponesa.

            Em 1967, Marighella viaja a Cuba para participar da Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas). Um telegrama do PCB desautoriza sua participação e o ameaça de expulsão. Marighella envia carta ao Comitê Central rompendo com o PCB. Retorna ao Brasil e funda a Aliança Libertadora Nacional (ALN). Outros militantes do PCB abandonam o partido e aderem à proposta de Marighella.

            Capturar Marighella, vivo ou morto, tornou-se, então, uma questão de “honra” para o regime militar. Sua perseguição envolveu toda a estrutura dos órgãos de repressão, até a sua execução covarde em 4 de novembro de 1969, na Alameda Casa Branca, na capital paulista.

            Toda uma vida dedicada à luta política em situações tão extremas não lhe subtraíram seu profundo humanismo e a sensibilidade de poeta, como podemos perceber em seu poema O Perfume:

            Para cada mulher existe sempre um perfume

            Que agrada ao seu gosto

            ou ao desejo que a inspira,

            e que lhe é revelado pelo dom do instinto.

            Cada mulher traz em si,

            entranhado em seu corpo,

            um perfume.

            A cada espécie de amor

            um perfume é mister,

            seja amor puro,

            infiel,

            sacrossanto,

            carnal.

            Há uma busca eterna à mulher…

            E quem sabe essa busca

            se resume

            na procura de um quê,

            algo estranho, insondável,

            quem sabe um perfume.

            Com o advento da Lei de Anistia em 1979, os restos mortais de Marighella são levados para Salvador e sepultados em um túmulo projetado por Oscar Niemeyer. Nesse ato, uma comovente mensagem de Jorge Amado, também integrante da bancada comunista de 1946, é lida para uma multidão emocionada presente ao cemitério.

            Independente de julgamentos e das práticas políticas que defendeu, Marighella destacou-se e transcendeu seu tempo pela luta que empreendeu, não hesitando em doar a própria vida em busca da concretização de um ideai de liberdade, liberdade entendida como satisfação plena das necessidades humanas.

            Atualmente, cresce no Brasil um amplo movimento de reconhecimento histórico, que atribui a Marighella papel importante para a redemocratização do País. Nessa conjuntura, foi recentemente lançada a Campanha Pró-Memorial Marighella Vive, cujo representante maior é o seu próprio filho, que pretende levantar recursos para construir em Salvador um memorial dedicado à difusão do seu pensamento político.

            Por tudo isso, celebrar a memória de Carlos Marighella, nesses 40 anos que nos separam da sua morte, é sempre um momento de reflexão sobre a nossa história e de reafirmar o compromisso com a marcha do Brasil e da América rumo à realização da nossa vocação histórica para a liberdade, para a igualdade social e para a solidariedade entre os povos.

            Celebrando a memória de Carlos Marighella, abrimos o diálogo com as novas gerações, garantindo-lhes o resgate da verdade histórica. Seu exemplo ainda é capaz de empolgar setores de nossa juventude, como o comprova a música Marighella, dos Racionais MC’s, de onde selecionei um trecho que acho emblemático da memória de seu exemplo:

A todo ouvido insensível que evita escutar

Acredita lutar, quanto custa ligar?

Cidade em chama, vida que se vai por quem ama

Quem clama por socorro, quem ouvirá?

Crianças, velhos e cachorros sem temor

Clara, meu eterno amor, sara minhas dores

Pra não dizer que eu não falei das flores

Da Bahia, de São Salvador, Brasil

Capoeira mata um mata mil, porque

Me fez hábil como um cão

Sábio como um monge

Anti-reflexo de longe

Homem complexo sim

Confesso que queria

Ver Davi matar Golias

Nos trevos e cancelas

Becos e vielas

Guetos e favelas

Quero ver você trocar de igual

Subir os degraus, precipícios

E vida difícil, oh povo feliz

Quem samba fica,

Quem não samba, camba

Chegou, salve geral da mansão dos bamba

Não se faz revolução sem um fura na mão

Sem justiça não há paz, é escravidão

Revolução no Brasil tem um nome…

A postos para o seu general

Mil faces de um homem leal

Marighella

Essa noite em São Paulo um anjo vai morrer

Por mim, por você, por ter coragem em dizer.

            Nesta manhã estamos aqui para lembrar um homem do povo. Um homem que provou, com o seu exemplo, que é possível fazer da política e da atividade partidária uma prática íntegra, honesta, generosa, colocando o amor ao povo e o respeito à liberdade e à justiça acima de sua própria vida.

            Esse foi Carlos Marighella. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/07/2013 - Página 43588