Discurso durante a 120ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Preocupação com a possível aprovação do projeto de lei complementar que flexibiliza os direitos das comunidades indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam.

Autor
João Capiberibe (PSB - Partido Socialista Brasileiro/AP)
Nome completo: João Alberto Rodrigues Capiberibe
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • Preocupação com a possível aprovação do projeto de lei complementar que flexibiliza os direitos das comunidades indígenas sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
Publicação
Publicação no DSF de 18/07/2013 - Página 48642
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • LEITURA, TEXTO, AUTORIA, PROFESSOR, DIREITO, RELAÇÃO, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS, COMENTARIO, REFERENCIA, PROJETO DE LEI, TRAMITAÇÃO, CAMARA DOS DEPUTADOS, OBJETIVO, EXPLORAÇÃO, RECURSOS AMBIENTAIS, TERRITORIO, OCUPAÇÃO, GRUPO INDIGENA, DEFESA, ARQUIVAMENTO, PROJETO, NECESSIDADE, GARANTIA, MANUTENÇÃO, DIREITOS, INDIO.

            O SR. JOÃO CAPIBERIBE (Bloco/PSB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Exmo. Sr. Presidente, Senador Anibal Diniz, Srs. Senadores, Srs. telespectadores, ouvintes da Rádio Senado, trago aqui uma grande preocupação em relação à agenda social. É verdade que enquanto se pensa a economia e o consumo, as nossas agendas sociais ficam de lado.

            Trago uma questão que me preocupa: as conquistas, os direitos adquiridos pelos povos indígenas. E faço questão de explicar quais são esses direitos e como eles foram obtidos.

            O Constituinte de 1988 estabeleceu, no capítulo VIII, os arts. 231 e 232. O art. 231, caput, diz:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

            Nas disposições transitórias, deu-se prazo para que isso acontecesse. Cinco anos foi o prazo estabelecido na Constituição. Passaram-se décadas, e todavia não se cumpre esse preceito constitucional.

            No § 1º, a Constituição diz:

§ 1º. São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as que por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

No § 2º:

§ 2º. As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo da riqueza do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

            Aí segue uma série de garantia aos povos indígenas.

            O art. 232 estabelece:

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

            Fiz questão de enumerar os direitos, essas garantias que as comunidades indígenas adquiriram com a Constituição de 1988, porque essas garantias estão em risco com o que passamos a ver a seguir.

            Para isso, trago aqui um artigo de um dos mais renomados constitucionalistas do País, o Professor Dalmo de Abreu Dallari, que escreveu um texto chamado Terras Indígenas e os Falsos Proprietários. Aspas.

Em vários pontos do Brasil estão ganhando maior gravidade os confrontos entre comunidades indígenas e fazendeiros que se apresentam como proprietários de áreas tradicionalmente ocupadas pelos índios. [Fiz questão de ler o art. 231, que diz claramente quais são os direitos a essas terras] Um dos lugares de maior intensidade dos conflitos, falando-se, inclusive, na possibilidade de suicídio coletivo de comunidades indígenas se forem obrigadas a sair de suas terras, é o estado de Mato Grosso do Sul. A par dos aspectos humanos de suma gravidade, existe um ponto de fundamental importância, de ordem jurídica, que não tem sido lembrado e que torna patente a ilegalidade das pretensões dos que se dizem fazendeiros regularmente instalados nas terras indígenas.

Com efeito, nas notícias relativas aos conflitos que envolvem as terras dos índios Guarani-Kaiowá tem sido feita discreta menção a um argumento utilizado pelos que se dizem titulares de direitos sobre as terras e também por alguns de seus advogados. Dizem eles que se tornaram proprietários por volta de 1940, mediante negociação com o Governo do então Estado do Mato Grosso, antes da divisão. Mediante doações teriam obtido a propriedade das terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas. É possível que sejam, realmente, detentores de títulos de propriedade formalmente registrados, o que dá a aparência de regularidade.

O aspecto jurídico que tem sido ignorado ou acobertado é a circunstância de que o Estado do Mato Grosso não era proprietário daquelas terras e assim não tinha o direito de dispô-las, fazendo doações ou vendas.

O Professor Dalari continua:

A raiz da questão jurídica é a chamada Lei de Terras, Lei n° 601, de 18 de setembro de 1850, que regularizou o regime de terras no Brasil. De acordo com a Lei de Terras, quem era titular ou herdeiro de doações de terras feitas pelo Governo e que efetivamente ocupava essas terras com algum tipo de exploração obteve o direito de ser declarado proprietário. Mas extensões enormes estavam desocupadas, pois os donatários não residiam nelas e não as utilizavam para qualquer finalidade produtiva. Essas terras foram então reintegradas ao patrimônio público do Governo brasileiro, surgindo, assim, a expressão "terras devolutas", pois estavam sendo devolvidas ao proprietário originário. E, pelo art. 12 da Lei de Terras, ficou estabelecido que as áreas ocupadas por comunidades indígenas integrariam o patrimônio do Governo Central, que deveria utilizá-las, segundo expressão corrente na época, para a "colonização dos indígenas.

Um valioso comentário da Lei de Terras de 1850 e sua importância para as comunidades indígenas é a obra clássica de João Mendes Jr., intitulada Os Indígenas no Brasil, seus direitos individuais e políticos, publicada em 1912.

Nessa obra ressalta o eminente jurista que a relação do índio com a terra é de “domínio imediato”, “congênito”, isto é, um direito originário, que, observa ele, já foi reconhecido pela legislação portuguesa do período colonial. Assim, conclui João Mendes Jr., o “indigenato” não é um fato dependente de legitimação, ao passo que a ocupação pelos colonizadores, como fato posterior, depende do atendimento de requisitos legais e fáticos que a legitimem.

Foi a partir daí que se fez a separação entre os domínios público e privado, integrando o domínio público as áreas utilizadas para algum fim de interesse público e também as terras devolutas. Houve ressalva para as doações feitas até então pelos governos gerais provinciais, desde que os donatários tivessem ocupado efetivamente as terras. Mas as terras devolutas, incluindo as áreas ocupadas por comunidades indígenas, foram integradas ao patrimônio do Império e, depois da proclamação da República, ao patrimônio da União. Assim, pois, as aquisições, a qualquer título, oriundas de atos dos governos estaduais, não têm valor legal, pois esses governos não tinham condições legais para dispor de bens pertencentes ao patrimônio da União.

Tudo isso é muito claro para quem analisa, de boa-fé, a evolução do regime de terras no Brasil. E quanto às terras indígenas a Constituição de 1988 dispõe expressamente, no artigo 20, que “são bens da União: XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios”. Além disso, é absolutamente clara quando estabelece, no artigo 231[que fiz questão de citar no começo], que “são reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. E em sete parágrafos acrescentados a esse artigo são reafirmados com minúcias esses direitos sobre as terras, dispondo-se expressamente que “as terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis”.

Esse último dispositivo é de fundamental importância, pois tem havido casos em que invasores de má-fé negociam a ocupação das terras com lideranças indígenas ingênuas e desinformadas, pretendendo, assim, legalizar a invasão. Em termos jurídicos, é legalmente possível a celebração de acordos para a exploração conjunta das terras indígenas e de suas riquezas, por índios e não índios, mas isso deve ser feito com a participação das autoridades federais competentes e com a concordância prévia, livre e informada da comunidade indígena, como está expresso na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre os Povos Indígenas e Tribunais, à qual o Brasil aderiu [e foi homologada pelo Congresso Nacional]. Fora disso, a presença de invasores em terras indígenas configura ilegalidade, o que exige a pronta reação das autoridades competentes para garantia dos direitos constitucionais.

            Essa é a manifestação do Professor Dalmo de Abreu Dallari.

            Fiz essa introdução para manifestar aqui a minha enorme preocupação, Senador Anibal Diniz, V. Exª que vem de um Estado que tem uma grande população indígena, de que se pretende, na Câmara Federal, aprovar o Projeto de Lei Complementar nº 227, de 2012. Setores do agronegócio, de grande influência no Parlamento, com essa atitude pretendem golpear de morte o direito dos povos indígenas. Ao anular a proposta, pretendem anular o Capítulo VIII da Constituição e, dessa forma, legalizar o etnocídio.

            A proposta vem do Deputado Homero Pereira, Vice-Presidente da Confederação Nacional da Agricultura.

            A proposta diz:

Torna bens de relevante interesse público da União as terras de fronteira, as vias federais de comunicação, as áreas antropizadas produtivas que atendam a função social da terra, nos termos do art. 5º, os perímetros rurais e urbanos dos Municípios, as lavras e portos em atividade e as terras ocupadas pelos índios desde o dia 5 de outubro de 1980.

            Trocando em miúdos, quer dizer, abrir as terras indígenas ao desenvolvimentismo, à exploração econômica pelos não índios, que é restringir a criação e ampliação de terras e anular as criadas após 1988.

            A supremacia desenvolvimentista adotada nos últimos dois anos impõe, como prioridade, o lucro pela exploração desmedida das riquezas naturais, o desprezo aos direitos dos povos originários, aos direitos humanos.

            Nenhuma legislação brasileira, em qualquer período da história, ousou chegar a tanto. O Relatório Figueiredo aponta a prática de desrespeitar, oprimir, subjugar, escravizar, expulsar, assassinar, expropriar populações indígenas. Elaborado há quarenta e tantos anos, o Relatório, do qual só agora a sociedade brasileira tomou conhecimento, faz uma análise exaustiva da situação dos povos indígenas, falando sobre a implantação da agropecuária do Mato Grosso. Os que representam o agronegócio não admitem ser iguais aos demais brasileiros. Entendem que são eles - e eu já vi vários discursos nesse sentido - que garantem o equilíbrio da balança comercial.

            Eu tenho uma visão diferente sobre a exploração intensiva dos recursos da natureza, como são os solos. Os solos, como sabemos, sofrem um desgaste permanente, um processo de assoreamento, de desertificação, e, em longo prazo, evidentemente, as perdas são irrecuperáveis.

            Na Câmara, há um desejo de atropelar os procedimentos normais, os debates normais de um projeto desse quilate, e tenta-se aprovar um regime de votação de urgência, para atropelar qualquer processo de discussão. Isso acaba com todos os direitos atribuídos e, historicamente, garantidos às populações indígenas.

            Não é apenas o 227 que coloca em risco as conquistas e os direitos indígenas. Também a PEC 215, o PLP 227, que já citei, o PL 1.610, a PEC 237, de 2013, são alguns dos projetos de lei feitos para agravar e perpetuar as injustiças e desigualdades sociais, à revelia da sociedade. E olha que a sociedade, o povo, está nas ruas, clamando por justiça, clamando por responsabilidade pública.

            Essas proposições devem ser arquivadas, enquanto esta Casa não garantir democraticamente, Senado e Câmara, a representação decisória dos que são diretamente afetados, os povos indígenas.

            Por isso, como forma de atender, em parte, a Convenção nº 169, da OIT, para que as populações tradicionais sejam ouvidas, em caráter decisório, sobre as obras nas suas terras e legislação que afete seu modo e meio de vida, é necessário que tenhamos mais atenção, que nos organizemos mais aqui dentro, para dar ouvido a essas populações que clamam historicamente por justiça.

            Ratificada pelo Brasil, a Convenção nº 169 da OIT tem sido ignorada, inclusive, nas obras do Governo Federal. É fundamental, ainda, reduzir a judicialização. Noventa por cento dos processos de demarcação, homologação das terras indígenas, hoje, estão sob tutela judicial.

            É fundamental demarcar e desintrusar todas as terras homologadas; fortalecer e dar independência à Funai; determinar uma postura constitucional à AGU e evitar que acórdãos de ocasião ditem as regras da política indigenista, que deve ser tratada como política de Estado.

            O Governo que, em dez anos, promoveu avanços importantes para o povo brasileiro em todas as áreas, pode e deve garantir aos índios as terras que lhe foram tomadas e negadas ao longo dos séculos com o apoio dos governos estaduais e federais.

            Não combina com os avanços retificados o atraso que a bancada do poderoso agronegócio pretende impor aos direitos indígenas. Portanto, cabe ao Governo, sim, que tem maioria na Câmara e no Senado, defender os direitos constitucionais dos povos indígenas brasileiros.

            Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/07/2013 - Página 48642