Discurso durante a Sessão Solene, no Congresso Nacional

Homenagem ao transcurso de mais de quarenta anos de dedicação à vida pública do ex-Ministro da Justiça, ex-Deputado, Sr. Fernando Lyra.

Autor
Rodrigo Rollemberg (PSB - Partido Socialista Brasileiro/DF)
Nome completo: Rodrigo Sobral Rollemberg
Casa
Congresso Nacional
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem ao transcurso de mais de quarenta anos de dedicação à vida pública do ex-Ministro da Justiça, ex-Deputado, Sr. Fernando Lyra.
Publicação
Publicação no DCN de 07/05/2013 - Página 1151
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, EX MINISTRO DE ESTADO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), COMENTARIO, ATUAÇÃO, POLITICA, ELOGIO, VIDA PUBLICA.

            O SR. RODRIGO ROLLEMBERG (Bloco/PSB - DF. Como Líder. Sem revisão do orador.) - Exmo Sr. Deputado Roberto Freire, Presidente desta sessão e signatário do requerimento; prezados Exmos Senadores Cristovam Buarque e Jarbas Vasconcelos; prezado amigo Presidente Nacional do PSDB, Deputado Sergio Guerra; prezado amigo Deputado Wolney Queiroz; prezada Srª Márcia Lyra, em nome de quem quero cumprimentar todos os filhos, netos, parentes e amigos aqui presentes; prezado Exmo Sr. João Lyra Neto, Vice-Governador de Pernambuco e irmão do homenageado; Srªs e Srs. Parlamentares, a dimensão política de algumas figuras públicas pode ser medida pela indissociável relação que sua biografia, a certa altura, estabelece com a história de seu tempo, ao ponto de virem a formar um enredo comum. É o caso do ex-Deputado e ex-Ministro Fernando Lyra, recém-falecido, aos 74 anos, e cuja memória hoje aqui evocamos.

            Não se pode contar a história recente do Brasil - a luta contra a ditadura, a luta pelas Diretas Já, o restabelecimento da democracia e a convocação da Assembleia Nacional Constituinte - sem mencionar o papel destacado que Fernando Lyra teve em todo esse processo.

            A história ficaria incompleta, desfalcada. Ao se recordar esse período - um dos mais densos e tensos da história do País -, não há como não pensar nele, em sua proximidade e estreita parceria com Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Leonel Brizola, Miguel Arraes e tantos outros que auxiliaram a recolocar o Brasil na trilha democrática. E aqui cito o Senador Pedro Simon e o Senador Jarbas Vasconcelos.

            Fernando Soares Lyra, socialista e democrata, foi um desses homens públicos seminais, que inspirou lideranças jovens e fertilizou os caminhos por onde passou. Não nasceu para ser coadjuvante. Foi sempre líder, desde o início de sua carreira, quando se elegeu Deputado Estadual por Pernambuco, em 1966.

            Havia se formado em Direito justamente no ano do golpe, em 1964. De imediato, perfilou-se na luta contra o regime militar. Os partidos políticos haviam sido extintos pelo Ato Institucional nº 2, em 1965, restando apenas a opção de duas legendas para abrigar toda a diversidade político-ideológica do País: o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) e a Aliança Renovadora Nacional (Arena). O MDB exerceria a oposição e a Arena, a situação. Fernando Lyra filiou-se ao MDB. Sabia-se que o objetivo do regime era gerar uma encenação democrática, mantendo o Congresso, as Assembleias e as Câmaras Municipais abertas, mas já despojadas de suas principais lideranças, cassadas, exiladas, silenciadas. Eleições diretas para Presidente nem pensar.

            Mesmo assim, era preciso resistir. Fernando Lyra foi um dos que entenderam que não devia ser desperdiçada a oportunidade, por mínima que fosse, de ocupar o espaço oposicionista disponível, no caso, o MDB, ainda que privado dos instrumentos essenciais para que a luta política se exercesse efetivamente.

            Esses instrumentos haveriam de ser criados, e, de fato, o foram, na luta obstinada e corajosa nos estreitos espaços de legalidade disponíveis. Caberia aos oposicionistas da estirpe de Fernando Lyra ampliar esses espaços de ação e influência.

            E assim foi. Eleito Deputado Federal em 1970, Fernando Lyra viria a ser um dos principais líderes nacionais do MDB, cumprindo nada menos que sete mandatos consecutivos na Câmara Federal. Esses sete mandatos contam a história do processo de redemocratização, desde os anos de chumbo do governo Médici até a vitória da chapa Tancredo Neves/José Sarney, de quem Fernando Lyra viria a ser Ministro da Justiça e a cumprir uma audaciosa agenda de remoção do entulho do autoritarismo com a revogação da censura e a preparação do País para a Assembleia Nacional Constituinte, da qual participou como um de seus expoentes.

            Pernambucano de Recife, criado em Caruaru, a visão política de Fernando Lyra sempre esteve muito além dos horizontes de seu Estado. Por isso, após as eleições de 1970, viu-se, já eleito, diante de um singular desafio: convencer alguns de seus pares a não levar adiante a ideia de autoextinção do partido. O MDB, sem acesso à propaganda eleitoral e diante de uma imprensa amordaçada pela censura, havia sofrido monumental revés nas urnas.

            O fiasco se reproduziria nas eleições municipais de 1972, quando o MDB obteria pouco mais de 10% dos votos. A Arena, partido governista, adquirira tal magnitude, que seu Presidente, Francelino Pereira, chegou a considerá-la - abro aspas - "o maior partido do ocidente". Um delírio que não iria muito longe.

            Fernando Lyra alinhou-se com Ulysses Guimarães e outros democratas na defesa da tese de que, apesar de todos os pesares, seria uma traição ao povo brasileiro desistir.

            Mesmo minoritário e sem meios de denunciar os excessos do regime militar e a farsa do milagre econômico, era preciso prosseguir. Era preciso dar conteúdo doutrinário ao MDB, uma frente de tendências diversas, mas com um objetivo comum: a reconquista da democracia.

             Esse denominador comum deveria prevalecer por sobre as divergências e gerar uma ação coordenada em todas as instâncias legislativas e chegar aos sindicatos e organizações da sociedade civil, como a CNBB, a OAB e a ABI.

            E assim foi: por iniciativa de um grupo de 23 Deputados - entre os quais despontavam, ao lado de Fernando Lyra, nomes como Alencar Furtado, Amaury Muller, Francisco Pinto, Freitas Diniz, Getúlio Dias, Lysâneas Maciel, Marcos Freire, Jarbas Vasconcelos -, surgia o Grupo Autêntico do MDB.

            O termo "autêntico" expressava uma determinação de não condescender com o arbítrio, de não fazer vista grossa à violação sistemática dos direitos humanos, que se processava nos porões do DOI-Codi. Em suma, uma oposição verdadeira e corajosa.

            Censurado pela grande imprensa, o discurso oposicionista conseguiria furar o bloqueio, ainda que precariamente, graças ao surgimento do que ficou conhecido como imprensa alternativa, pequenos jornais que circulavam em grupos restritos, mas formadores de opinião, como as universidades, as entidades de classe da sociedade civil e as comunidades de base da Igreja Católica.

           E foi assim que, quando a economia, no final de 1973, com a primeira crise do petróleo, começou a fazer água, a sociedade brasileira já havia despertado de seu torpor.

           O surgimento da Opep, naquela oportunidade, multiplicou os preços dos barris de petróleo. A economia brasileira sofreu um choque profundo, com aumento substancial de preços no mercado interno e início de um processo inflacionário acelerado, que reduziu drasticamente o poder aquisitivo da população.

           Fernando Lyra e os Autênticos do MDB souberam captar e capitalizar a decepção de boa parte da classe média brasileira, que acreditara na propaganda do Brasil-Potência, que o regime divulgava com obsessão na mídia.

           Foi tal a mudança de paradigma que, na eleição seguinte, de 1974, o regime militar sofreria seu maior revés eleitoral. Das 22 cadeiras em disputa no Senado, o MDB conquistou 16. E começou a propagar com mais força sua mensagem democrática.

           É claro que se esperava uma reação da ditadura à altura do revés que sofrera. Para evitar um desastre ainda maior nas eleições seguintes, de 1978, o governo do general Ernesto Geisel fechou o Congresso e editou, em 1977, uma série de medidas arbitrárias, que, conhecidas como Pacote de Abril, garantiriam a preservação do regime por pelo menos mais um mandato.

           Entre outros absurdos, criou-se a figura do Senador biônico (um terço do Senado eleito indiretamente pelas Assembleias Estaduais e delegados municipais) e foram mantidas indiretas as eleições de governador. Pior ainda: aumentou-se em um ano o mandato presidencial, passando a seis anos.

           Mas não foi só: na tentativa de intimidar a oposição, o governo Geisel passou a cassar parlamentares do Grupo Autêntico.

           Nomes de peso como Amaury Muller, Alencar Furtado, Nadir Rosseti e Lysâneas Maciel, entre outros, perderam seus mandatos pelo delito de discursar contra o regime militar, contra o Pacote de Abril, contra um projeto de reforma do Judiciário que nem o Judiciário fora chamado a discutir.

           Vozes conciliadoras, intimidadas, se levantaram dentro do MDB, propondo entendimento com o regime.

           Fernando Lyra foi um dos que se indispuseram firmemente contra esse recuo. Achava - e esta opinião predominou - que a oposição deveria ser mais oposição que nunca; que os atos do regime militar indicavam temor com o avanço das forças democráticas e que a iniciativa de buscar diálogo deveria partir de quem o havia feito cessar: o próprio regime.

            Esse ponto de vista acabou conquistando ilustres Moderados, como o então Senador Paulo Brossard e o Deputado Tancredo Neves, com quem Lyra teve firme discussão numa reunião do partido. Tancredo acabou reforçando o discurso dos Autênticos e se aproximando de Fernando Lyra, que, anos mais tarde, nomearia seu Ministro da Justiça.

            A sequência dos acontecimentos é conhecida. O regime militar deu início à abertura política e propôs um diálogo com a sociedade civil, que tinha como um de seus grandes interlocutores o então presidente da OAB, Raimundo Faoro.

            O Brasil ainda precisou suportar mais seis anos de governo militar, presidido pelo General Figueiredo, mas algumas conquistas do grupo Autêntico haviam sido obtidas: o restabelecimento do habeas corpus e, no final do governo Geisel, a revogação do AI-5.

            Já no início do governo Figueiredo, o discurso dos Autênticos se estendera a praticamente toda a oposição. Têm início duas campanhas de opinião pública, às quais Fernando Lyra se associou como uma de suas lideranças: a da Anistia e a das Diretas.

            A primeira foi vitoriosa, permitindo que lideranças partidárias banidas pelo golpe de 64, como Leonel Brizola e Miguel Arraes, não apenas retornassem ao País, mas reassumissem o protagonismo político que lhes havia sido suprimido. A segunda campanha, a das Diretas, foi derrotada no Congresso pela ausência de quórum imposta pela situação, mas, para o regime, foi o que se chama de uma vitória de Pirro, uma vitória que lhe saiu pela culatra, pois causou revolta na sociedade e levou à articulação da candidatura de Tancredo Neves pela única via que o regime disponibilizara, o colégio eleitoral.

            Foi uma eleição indireta com todas as características de direta, já que Tancredo ocupou os palanques de todo o País e agregou, em torno de seu nome, toda a sociedade civil. Fernando Lyra, mais uma vez, figurava entre os principais articuladores daquela candidatura. Indicado por Tancredo, foi um dos coordenadores nacionais de sua candidatura. Eleito Tancredo, foi designado seu Ministro da Justiça.

            Tancredo, porém, como se sabe, não chegou a tomar posse. A tragédia de sua morte, às vésperas de sua posse, fez com que seu Vice, José Sarney, assumisse a Presidência. Mas Sarney teve a sensibilidade política de manter o Ministério que Tancredo havia escalado e que correspondia à correlação de forças políticas vitoriosa naquele momento.

            À frente do Ministério da Justiça, Fernando Lyra coordenou todo o movimento que ficou conhecido como a “remoção do entulho autoritário”, o conjunto de leis, decretos e normas constitucionais que formavam o arcabouço jurídico do regime extinto e que o Congresso colocou no lixo da história.

            Restabeleceu-se a liberdade de organização partidária, legalizando-se os partidos de esquerda - comunistas e socialistas, banidos pelo golpe militar; restabeleceram-se as eleições diretas em todos os níveis; providenciou-se a reintegração dos servidores públicos, civis e militares, demitidos pelo golpe, entre muitas outras providências. Sobretudo, revogou-se, de maneira ampla e irrestrita, a censura, em anúncio histórico que o próprio ministro Fernando Lyra fez, diante de uma plateia de intelectuais e artistas, no Teatro Casa Grande, no Rio de Janeiro, em 1985.

            Em 1986, Fernando Lyra deixa o Ministério da Justiça para cumprir missão ainda mais relevante, na sequência de sua trajetória política: candidatar-se a compor, como Deputado Federal, a Assembleia Nacional Constituinte, de cuja campanha havia participado intensamente. Teve, mais uma vez, papel de destaque, integrando a mais importante Comissão da Constituinte, a de Sistematização.

            O País já havia mudado substantivamente. O velho MDB - sobretudo o dos Autênticos - já não existia. Diversos deles, peemedebistas, sobretudo os Autênticos, já haviam se filiado a partidos de esquerda. Lyra foi um deles. Em 1987, ainda na Constituinte, filiou-se ao PDT, pelo qual concorreria à Vice-Presidência da República, em 1989, na chapa de Leonel Brizola, que ficou em terceiro lugar. Derrotado, apoiou, no segundo turno, a candidatura de Luiz Inácio Lula da Silva.

            Em 1993, por influência de Miguel Arraes, Fernando Lyra transfere-se, para nossa honra, para o PSB, cuja liderança assumiria, em 1996, na Câmara dos Deputados.

            Foi sua legislatura derradeira. Lyra deixou o Congresso em janeiro de 1999. Deixou o Congresso, mas não ao ponto de virar as costas para a política, da qual seu espírito se nutria. Participou ativamente das campanhas vitoriosas a governador de Eduardo Campos, em Pernambuco, de quem seu irmão, João Lyra Neto, é vice; e foi um conselheiro político em tempo integral.

            Em 2003, assumiu a presidência da Fundação Joaquim Nabuco, onde permaneceu até 2011.

            Foi o último cargo público que ocupou. Ali, em meio ao acervo e à memória de Joaquim Nabuco, que tanto admirava, encontrou inspiração para deixar seu testemunho político: o livro Daquilo que eu sei - Tancredo Neves e a Transição Democrática, lançado em 2009.

            Nas páginas finais desse livro-testamento, Lyra consignou a expectativa com que via o surgimento de duas lideranças políticas, segundo ele predestinadas a servir o Brasil, o Governador Eduardo Campos, neto de Miguel Arraes e Presidente do PSB, e o Senador Aécio Neves, do PSDB.

            Sobre eles escreveu:

Eduardo e Aécio, dois grandes netos de dois grandes avôs. Contemplando os dois, nas suas diferenças e semelhanças, vejo se unirem, na emoção, os pontos culminantes da minha existência e reaprendo a lição de que na história, como na vida, o ponto nunca é fina”.

            E não é mesmo! O legado de Fernando Lyra continua a inspirar, influir e orientar a nova geração de políticos democratas que o sucedem na missão de construir o Brasil de liberdade e justiça social com que todos sonhamos.

            Viva Fernando Lyra!

            (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DCN de 07/05/2013 - Página 1151