Discurso durante a 187ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Preocupação com o aumento da violência contra a juventude negra do Brasil e defesa da desmilitarização das instituições responsáveis pela Segurança Pública no País.

Autor
Ana Rita (PT - Partido dos Trabalhadores/ES)
Nome completo: Ana Rita Esgario
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Preocupação com o aumento da violência contra a juventude negra do Brasil e defesa da desmilitarização das instituições responsáveis pela Segurança Pública no País.
Publicação
Publicação no DSF de 25/10/2013 - Página 75768
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • APREENSÃO, VIOLAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, ABUSO DE AUTORIDADE, ATUAÇÃO, POLICIAMENTO, VITIMA, JUVENTUDE, NEGRO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, IMPORTANCIA, QUEBRA, LIGAÇÃO, POLICIA, AMBITO, DITADURA, ABOLIÇÃO, AUTOS, RESISTENCIA, INCOMPATIBILIDADE, REGIME MILITAR, DEMOCRACIA, BRASIL, NECESSIDADE, REESTRUTURAÇÃO, TREINAMENTO, CARREIRA, POLICIAL MILITAR, POLICIAL CIVIL, MELHORAMENTO, ORDEM PUBLICA, APOIO, INICIATIVA, REORGANIZAÇÃO, ATIVIDADE POLICIAL, REDUÇÃO, VIOLENCIA, REPRESSÃO, DISCRIMINAÇÃO.

            A SRª. ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Obrigada, Sr. Presidente, Senador Jorge Viana.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ouvintes da Rádio Senado, telespectadores da TV Senado, venho a esta tribuna tratar de uma das mais graves violações de direitos humanos ainda persistentes em nosso País: o extermínio da juventude negra.

            O assunto foi debatido em audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa. Com a presença de Parlamentares defensores de direitos humanos, representantes do Governo Federal, especialistas que estudam e discutem o tema e representantes da sociedade civil, a audiência pública apontou para algumas medidas que poderão contribuir para a alteração dessa perversa realidade de extermínio da juventude negra no Brasil. Entre as propostas apresentadas estão a desmilitarização das polícias e o fim dos autos de resistência.

            No tocante à desmilitarização das polícias, importante salientar que o modelo militarizado é uma herança da ditadura militar, quando efetivamente surge a Polícia Militar, no ano de 1969, resultado da fusão das guardas civis e da Força Pública.

            A partir de então, a PM passa a ter competência exclusiva do policiamento ostensivo e a ser considerada efetivo de reserva do Exército. É durante a ditadura militar que a Polícia Civil perde a sua prerrogativa de agir como polícia ostensiva, ficando restrita apenas ao papel investigativo. Já a Polícia Militar, que até então ficava mais aquartelada, ou seja, não agia como polícia de rua, saiu dos quartéis e passou a fazer o policiamento ostensivo tal qual conhecemos hoje.

            Com a redemocratização do País, a manutenção das polícias militares foi colocada em xeque por setores mais progressistas da sociedade e militantes de direitos humanos, devido à sua forte ligação com o poder militar, o que gerou inúmeros debates a respeito da incompatibilidade desse modelo com o florescimento de uma sociedade democrática.

            No entanto, o discurso do medo e da insegurança, amplamente propagado por setores conservadores e pelo discurso midiático, contrários aos movimentos de lutas por direitos, articulou para a necessidade de uma intervenção autoritária na ordem pública.

            Na sociedade brasileira, predominava a ideia de que era necessária a repressão dura contra a criminalidade, que aumentou consideravelmente comparando-se os anos 70 e os anos 80. A opinião pública mostrou-se altamente favorável às práticas violentas perpetradas pela polícia, à instauração da pena de morte e ao uso de outros métodos de investigação ilegais.

            Não podemos esquecer, Sr. Presidente, que todo o processo de redemocratização do Brasil se deu em um momento em que as Forças Armadas ainda gozavam de um poder político muito grande. Afinal, em nossa transição negociada, foram eles que conduziram o processo de reabertura para a democracia, que, no caso específico das polícias, ocasionou a perpetuação de uma estrutura policial predominantemente militar.

            A própria Constituição de 1988 diz que a PM é força auxiliar do Exército, ou seja, que, de maneira indireta, ela é subordinada às Forças Armadas. E aqui entramos em um ponto que considero a espinha dorsal de todo esse debate:

a questão da formação desses policiais e os inúmeros efeitos colaterais que ela provoca na sociedade. A PM é uma corporação com treinamento militar para tratar da segurança de civis.

            Estamos falando aqui de um tipo de treinamento desumano e cruel, alicerçado em práticas humilhantes, extremamente agressivas e violentas com os recrutas, como muito bem foi demonstrado no filme Tropa de Elite, do diretor José Padilha.

            A estrutura de humilhação hierarquizada da corporação, em que o oficial de patente mais alta se vale do seu poder em desfavor do elo mais fraco da corrente, tem impactos diretos na forma de atuação desse soldado na rua, pois o ciclo de abuso não termina no policial, e sim no suspeito civil, no suposto bandido, que atenta contra a lei.

            Esse é um assunto que precisa ser mais bem debatido e compreendido pela sociedade e também aqui nesta Casa, pois há muita desinformação em torno da desmilitarização das polícias. E aqui quero desmistificar a ideia de que desmilitarizar significa retirar a farda ou mesmo desarmar as nossas polícias.

            A regra, na grande maioria dos países democráticos do mundo, são polícias civis, a exemplo das polícias americanas e inglesas, que não atuam sem farda, tampouco sem armas. O que estamos discutindo é uma formação diferenciada, cidadã, uma mudança cultural e institucional na forma de atuar das polícias, com unificação das atividades policiais em uma única corporação, formando o que se convencionou chamar de ciclo completo, ou seja, um tipo de polícia que fará tanto o policiamento ostensivo, a prevenção, quanto o trabalho investigativo, de inteligência.

            A partir das manifestações de junho, o caráter truculento da Polícia Militar ficou mais evidente para as camadas médias da sociedade, que se tornaram alvos de prisões arbitrárias, do uso indiscriminado de balas de borracha, bombas de gás e spray de pimenta e até da tentativa de forjar provas contra manifestantes, em flagrante desrespeito aos direitos humanos e constitucionais. Com tudo isso, o debate da desmilitarização das polícias vem ganhando força na sociedade e o apoio da classe média, que passou a sentir na pele a violência já muito rotineira e familiar aos moradores das periferias e dos bairros populares.

            Essa exacerbação da violência da Polícia em lidar com as manifestações e reivindicações populares, com destaque para Rio de Janeiro e São Paulo, embora esses não sejam casos isolados, evidenciam a necessidade premente de debatermos a função das polícias militares em regimes democráticos, como o brasileiro, superando a cultura autoritária, típica de regimes ditatoriais, que é incompatível com o Estado democrático de direito.

            Precisamos empreender esforços para superar todo e qualquer resquício de um Estado autoritário. Necessitamos construir uma força policial cidadã, horizontal, que tenha como princípio o diálogo e o respeito aos cidadãos, às cidadãs, e a todo e qualquer tipo de manifestação popular.

            Por isso, associo-me às iniciativas de lei que tramitam no Congresso Nacional e visam à desmilitarização das polícias no Brasil, a exemplo da PEC 51/2013, de autoria do Senador Lindbergh Farias, do PT do Rio de Janeiro, que prevê uma profunda reformulação do atual modelo de polícia brasileiro com a desmilitarização e a unificação das Polícias Militar e Civil.

            A proposta corrige duas distorções fundamentais: a partição do ciclo de policiamento e a inexistência de carreiras únicas em cada instituição.

(Soa a campainha.)

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES) - A PEC 51 prevê a transferência aos Estados da autoridade para definir o modelo policial mais adequado para a realidade daquela região. Porém, as mudanças devem obedecer às diretrizes que possam garantir a transformação democrática das polícias e evitar um ambiente descoordenado e desarticulado no trabalho policial.

            De acordo com a proposta, além da reorganização interna das funções policiais, passa a ser obrigatória a exigência do ciclo completo da carreira policial, se iniciando na atividade ostensiva/preventiva - atualmente prerrogativa da PM -, caminhando, no decorrer da carreira, para a área da investigação - atualmente prerrogativa da Polícia Civil - formando, assim, a carreira única.

            O texto ainda prevê o cumprimento do que já determina a Constituição brasileira, que define a Polícia como instituição de natureza...

(Interrupção de som.)

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES) - ...civil, que se destina a proteger os direitos dos cidadãos e cidadãs e a preservar a ordem pública democrática, a partir do uso comedido e proporcional da força.

            Outra herança nefasta da ditadura e amplamente debatida na audiência que discutiu o Extermínio da Juventude Negra é a necessidade de pôr fim aos autos de resistência.

            A medida administrativa também foi criada no período da ditadura militar para legitimar a repressão policial da época e segue sendo amplamente utilizada nos dias atuais para encobrir crimes. Embora amparada pelo artigo 292 do Código de Processo Penal brasileiro, este não permite o uso arbitrário deste dispositivo para esconder crimes.

            Sabemos que um grande número dos casos registrados como "auto de resistência" ou "resistência seguida de morte" nada mais é do que casos de execução sumária das vítimas.

            Há ocorrência de casos gritantes tipificados como autos de resistência, nos quais a morte foi provocada por tiro de fuzil disparado na nuca. Há casos em que os laudos atestam que os disparos foram feitos a curta distância, de cima para baixo, ou seja, muitas das vítimas são mortas, mesmo estando ajoelhadas e com as mãos na cabeça.

            O que há é uma inversão absurda, a partir da produção de um documento oficial que identifica a morte em questão como decorrente da resistência à autoridade policial, como se tivesse havido confronto, como se o agente de Estado que efetuou o disparo o tivesse realizado em legítima defesa.

            Definitivamente, Srs. Senadores, esse não é um tipo de prática compatível com o Estado democrático de direito. Portanto, não podemos tolerar que as forças policiais atuem como juízes e executores. Precisamos garantir o direito humano a um procedimento jurídico adequado a partir da presunção de inocência.

            Nesse sentido, reforço a importância e aproveito para registrar que recebi, na semana passada, aqui no Senado, um grupo de artistas e militantes do movimento negro e de juventude, que vieram a esta Casa pedir o apoio para a votação célere do Projeto de Lei 4.471/2012, de autoria do Deputado Federal Paulo Teixeira, que altera o Código de Processo Penal e prevê a investigação das mortes e lesões corporais cometidas por policiais durante o trabalho, como acontece com todos os óbitos, e coloque fim aos atuais casos registrados pela polícia como autos de resistência ou resistência seguida de morte, que atualmente sequer são investigados.

            O projeto já passou por todas as comissões da Câmara dos Deputados e está pronto para ser votado em plenário. Após forte mobilização dos movimentos sociais e da sociedade civil, o Presidente da Câmara, Deputado Henrique Eduardo Alves, se comprometeu em colocar a matéria em votação, em regime de urgência, nesta terça-feira, dia 22/10, o que não aconteceu.

            Só para se ter uma ideia da gravidade do problema, de janeiro de 2010 a junho de 2012, apenas nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul e Santa Catariana, 2.882 pessoas foram mortas em ações registradas como "autos de resistência",...

(Soa a campainha.)

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES) - ... uma inaceitável média de mais de três mortes por dia.

            Sr. Presidente, mais alguns minutos para eu concluir, porque este tema é altamente importante e prometo ser bem breve.

            O SR. PRESIDENTE (Jorge Viana. Bloco Apoio Governo/PT - AC) - Por mim, não há problema algum; o problema é que há um colega que vai pegar um avião e precisava fazer um discurso.

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES) - Mas, Sr. Presidente e Senador Osvaldo, não tenho dúvidas de que a aprovação dessas proposições de lei contribuirão - e muito - para avançarmos na redução dos atuais índices epidêmicos de violência que atingem majoritariamente a juventude negra e de periferia e evitarão que casos emblemáticos como o do ajudante de pedreiro Amarildo, vítima supostamente de tortura seguida de morte, praticada por policiais, sejam rotina em nosso País.

            As pesquisas têm demonstrado a insuficiência do atual modelo de repressão ostensiva às drogas ou mesmo da ideia de que mais armamentos, mais encarceramentos, mais presídios e mais polícias, por si só, resolverão os complexos problemas que temos na área de segurança pública em nosso País.

            O que temos visto é um aumento da violência no Brasil nos últimos anos. Falo de uma violência que não é praticada na mesma intensidade e gravidade contra toda a sociedade; ao contrário, estamos falando de uma violência seletiva, da persistência do racismo institucional,...

(Soa a campainha.)

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES) - ... que tem ceifado principalmente a vida e os sonhos da juventude pobre e negra. Ou seja, a violência policial tem cor, idade, sexo e endereço definidos.

            E aqui não estamos tratando de mera retórica. Estudo do Ipea, divulgado na última sexta-feira, 17 deste mês, sobre o racismo no Brasil, revela que a possibilidade de um adolescente negro ser vítima de homicídio é 3,7 vezes maior do que um branco.

            Portanto, Sr. Presidente, finalizando, não seremos uma sociedade verdadeiramente democrática, se não enfrentarmos as violações de direitos humanos, se não combatermos o extermínio e as suas raízes, se não deixarmos de negar um princípio basilar do direito: o de que todas as pessoas têm direito a um julgamento justo pelo Poder Judiciário e de que não há juízo ou tribunal de exceção. A democracia exige novas regras para a atuação policial e elas passam pela desmilitarização das polícias e pelo profundo respeito à dignidade da pessoa humana.

            É isso, Sr. Presidente.

            Muito obrigada pela paciência; e agradeço também ao Senador Osvaldo pela tolerância. Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/10/2013 - Página 75768