Discurso durante a 202ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Necessidade de modificação da Política Nacional de Drogas, de modo a tratar a temática como uma questão de saúde pública.

Autor
Humberto Costa (PT - Partido dos Trabalhadores/PE)
Nome completo: Humberto Sérgio Costa Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DROGA.:
  • Necessidade de modificação da Política Nacional de Drogas, de modo a tratar a temática como uma questão de saúde pública.
Publicação
Publicação no DSF de 14/11/2013 - Página 81607
Assunto
Outros > DROGA.
Indexação
  • DEFESA, AUMENTO, OFERTA, TRATAMENTO, VICIADO EM DROGAS, NECESSIDADE, DISCRIMINAÇÃO, USUARIO, TRAFICANTE, INTERPRETAÇÃO, PROBLEMA, DROGA, DOENÇA MENTAL, RESPONSABILIDADE, SAUDE PUBLICA, DIREITOS HUMANOS, SEMELHANÇA, LEIS, REESTRUTURAÇÃO, PSIQUIATRIA, BRASIL.

            O SR. HUMBERTO COSTA (Bloco Apoio Governo/PT - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ouvintes da Rádio Senado, telespectadores da TV Senado, eu queria, antes de iniciar a minha fala, agradecer, penhoradamente, a gentileza do Senador Eduardo Suplicy, que concordou em permutar o horário da sua fala com o meu. Agradeço, Senador Suplicy.

            Mas, Sr. Presidente, a Lei n° 10.216, de 2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, veio para garantir a proteção e os direitos das pessoas que têm transtornos psíquicos. Essa lei deu um novo rumo ao nosso modelo assistencial na área da saúde.

            Ela foi sancionada e colocou o Brasil em meio a um conjunto de países que dão à sua população um cuidado e uma atenção na área de saúde mental de acordo com as normas da Organização Mundial de Saúde e com a preocupação sempre de implementar um modelo humanista.

            Não obstante o grave problema das drogas, com o qual o mundo lida hoje - e que tem reflexos consideráveis na saúde mental de muitos usuários -, esse debate tem contaminado de forma muito negativa o tema da reforma psiquiátrica. Por isso, é importante que nós, ao fazermos essa discussão, estejamos preocupados em não permitir que haja retrocessos naquilo que representou um grande avanço na reforma psiquiátrica.

            Essa reforma foi resultado de uma mobilização social, gerou inúmeras discussões e contou com a participação de renomados especialistas do nosso País.

            Sua orientação foi calcada em dois eixos principais: primeiro, a reorientação da assistência e do modelo de atenção à saúde mental, que tinha ainda contornos medievais; e a garantia de direitos fundamentais aos portadores de transtornos mentais, em respeito aos princípios da nossa Constituição.

            Graças a essa norma, conseguimos construir um novo marco no cuidado às pessoas com transtornos psíquicos, baseado em pressupostos técnicos, éticos, justos e com respeito à dignidade da pessoa humana.

            Obviamente, o tema das drogas é um tema extremamente dinâmico, e a reforma psiquiátrica também não é um tema acabado, fechado e concluído. Fazer um debate permanente sobre essa reforma é crucial e, ao longo desses últimos anos dos governos do PT, nós tivemos avanços importantes nessa área: ampliação dos CAPs, a implantação do Programa De Volta Para Casa e tantas e tantas ações importantes. E uma das mais importantes foi termos trazido o tema das drogas para a esfera da saúde.

            A disseminação do uso de drogas coloca em evidência o tratamento daqueles usuários cuja saúde mental é terrivelmente afetada pelo consumo continuado, de forma que devemos enxergar essas pessoas sob a ótica do tratamento e da assistência à saúde. Não é aceitável que nós venhamos a retroceder, enquadrando os usuários em uma legislação de viés penalista, que tenha como foco a droga e não o cuidado com a pessoa.

            Por isso, um dos pontos que nós temos levantado em termos de questionamento do projeto que veio da Câmara dos Deputados e que trata desta temática é a centralidade no tema da internação voluntária.

            Nós estamos preocupados com a ampliação das possibilidades de internação involuntária, que não é uma solução para o problema. Antes de tudo, é uma forma absolutamente equivocada de abordá-lo.

            Não se pode dissociar qualquer discussão sobre repressão às drogas e tratamento a usuários do guarda-chuva jurídico-normativo criado pela reforma psiquiátrica.

            É inaceitável que um país como o nosso queira se valer de um expediente reducionista com a finalidade de limpar as ruas de usuários, especialmente os de crack. Não é assim que nós vamos resolver essa chaga social.

            Os dados de várias pesquisas têm reforçado essa visão. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) e a Fiocruz fizeram duas pesquisas muito ricas em dados sobre usuários de crack em todas as unidades federadas, uma de natureza domiciliar e outra, de caráter epidemiológico. É o maior e mais completo levantamento feito sobre o assunto no mundo.

            O inquérito domiciliar, realizado em 2012, mostrou que, estimativamente, cerca de 370 mil pessoas, no Brasil, utilizam crack, o que equivale a 35% dos consumidores de drogas existentes no nosso País. O Nordeste é a região que apresenta maior quantitativo: 150 mil pessoas. Outro ponto importante foi a identificação de que 14% dos usuários de crack são crianças e adolescentes, 28 mil deles localizados apenas no Nordeste.

            O inquérito epidemiológico, conduzido em 2011, mostrou que, entre os consumidores de crack, a incidência de Aids é oito vezes superior à na população em geral. Os homens negros - um perfil bem conhecido no nosso País como vítimas de inúmeras mazelas sociais - representam quase 80% desse público.

            Por isso, precisamos buscar a forma correta de abordar o problema. E a forma correta deve levar em consideração um dado extremamente importante da pesquisa da Fiocruz: oito em cada dez usuários de crack declararam que gostariam de ter direito a um tratamento. É um ato manifesto de vontade, é um desesperado desejo de sair da dependência química e das condições subumanas em que vivem, o que demonstra, claramente, que a ênfase na internação involuntária é uma política descolada da realidade. O que nós precisamos, no Brasil, é de uma abordagem multifatorial para enfrentar esse problema que nos distancie cada vez mais da ideia de ampliar penas e criminalizar condutas de usuários.

            A política sobre drogas e a política de saúde devem caminhar de forma interdependente, mas a de drogas não pode subordinar a política de saúde. Nós devemos avançar na legislação para que isso fique diferenciado de forma clara e possamos construir, de maneira responsável, a solução para esse problema.

            Há nos usuários uma razão para a entrada nas drogas, que não é a disposição para o crime. Noventa e cinco por cento desses usuários frequentaram escolas e 29% iniciaram o uso de crack em razão de problemas familiares ou de perdas afetivas. Ou seja, o que temos aí são seres humanos que tiveram impedida a possibilidade da educação e que perderam o acolhimento dos que amavam.

            Por isso, entendo que o que nós precisamos colocar no centro desta política é garantirmos o acesso à saúde. Se 80% dessas pessoas desejam sair dessa situação de dependência e querem o tratamento, o que nós temos de fazer é melhor abordar essas pessoas e oferecer mais oportunidades para o tratamento.

            Temos de ampliar a rede dos centros de atendimento psicossocial, ampliar os consultórios de rua, que são aquelas estruturas em que médicos e outros profissionais de saúde abordam os moradores de rua dependentes do crack, oferecendo-lhes alternativas de tratamento; precisamos ampliar os espaços de desintoxicação, especialmente nos hospitais gerais, e aproximar essa estrutura dos usuários.

            E essa discussão sobre as ações para recuperar as pessoas usuárias de drogas, incluindo aí o debate sobre a internação, só pode ser feita no âmbito da Lei da Reforma Psiquiátrica, jamais com as lentes da Lei Antidrogas.

            O tratamento é para salvar o dependente, não pode ser jamais para puni-lo ou criminalizá-lo. Temos de criminalizar, reprimir e fazer com que sejam punidos os traficantes - estes sim -, mas o usuário deve ser objeto de uma abordagem para o tratamento, especialmente dos que são dependentes.

            Nessa luta, Sr. Presidente, nós não podemos abrir mão de nenhum dos instrumentos que podem ser usados para enfrentar o problema.

            Atualmente, as comunidades terapêuticas também têm sido grandes aliadas nessa luta, complementando o atendimento à saúde da rede pública com o acolhimento afetivo das pessoas vítimas das drogas. Obviamente, não é nas comunidades terapêuticas que o tratamento vai ser administrado. Esses espaços são espaços de acolhimento muito importantes, porque, muitas vezes, o dependente que não conseguiu sair daquela situação ou conviver com a diminuição de riscos e danos causados pelo uso da droga pode se beneficiar de outra alternativa. E aí esse espaço de acolhimento, esse espaço de ressocialização é um instrumento importante.

            Por isso, nós precisamos regulamentar as comunidades terapêuticas e regular esses espaços, de forma inclusive muito rígida, para que possam continuar a ser uma porta de saída segura desse submundo das drogas para muita gente.

            Entendo que parcerias como essas resgatam o respeito aos direitos humanos e podem dar ao Brasil uma vitoriosa experiência no combate aos danos causados pela dependência.

            Usuários de drogas não podem ser tipificados como traficantes. São, antes de tudo, seres humanos dos quais o Estado tem a obrigação de resgatar a cidadania perdida.

            Muito obrigado pela tolerância, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 14/11/2013 - Página 81607