Discurso durante a 206ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Expectativa pela aprovação de projeto de resolução que anula sessão do Congresso Nacional que declarou vago o cargo de Presidente da República em 1º de abril de 1964.

Autor
Ricardo Ferraço (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/ES)
Nome completo: Ricardo de Rezende Ferraço
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.:
  • Expectativa pela aprovação de projeto de resolução que anula sessão do Congresso Nacional que declarou vago o cargo de Presidente da República em 1º de abril de 1964.
Publicação
Publicação no DSF de 19/11/2013 - Página 82925
Assunto
Outros > HOMENAGEM, PRESIDENTE DA REPUBLICA, ATUAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, ATUAÇÃO, JOÃO GOULART, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, HISTORIA, DIPLOMACIA, POLITICA, COMENTARIO, IMPORTANCIA, ANULAÇÃO, SESSÃO, CONGRESSO NACIONAL, REFERENCIA, CASSAÇÃO, MANDATO, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, RECONHECIMENTO, LEGADO, EX PRESIDENTE.

            O SR. RICARDO FERRAÇO (Bloco Maioria/PMDB - ES. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Paulo Paim, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, na véspera da sessão do Congresso brasileiro, ao que tudo indica, estaremos anulando a sessão que injusta e covardemente cassou o mandato do ex-Presidente da República João Goulart. Até mesmo durante os dias em que seus restos mortais foram recebidos com pompa de Chefe de Estado, aqui em Brasília, julguei, na condição de Presidente da Comissão de Relações Exteriores, fazer, junto com a minha equipe, uma pesquisa e um trabalho mais apurado para identificar o tipo de legado e se algum legado houve desse período naquilo que está diretamente ligado à política externa brasileira, procedendo ao resgate político e simbólico de um líder cuja passagem pela vida pública brasileira merece estudos mais aprofundados e também imparciais.

            Na visão maniqueísta que caracterizava o regime militar brasileiro, que de resto toldava aqueles tempos sombrios de Guerra Fria e de esquematismos ideológicos, a análise do papel desempenhado por Jango acabara reduzida, artificial e de maneira precipitada, ao de um líder que não soube interromper a espiral radical que feriu de morte nossa democracia e nos levou à ditadura.

            Durante as duas décadas do regime militar, o Presidente Jango, deposto, foi apresentado como um líder tíbio, cuja incapacidade política o tornou vítima de uma espécie de getulismo sem Getúlio, empurrado, é verdade, pela retórica ativista do seu cunhado ex-Governador Leonel Brizola. Essa imagem estava, a meu juízo, errada e foi injusta com Jango. 

            Felizmente, a historiografia, ao revisitar aquele período, e a biografia do ex-Presidente vão revelando complexidades, antes pouco conhecidas, e triunfos esquecidos que, em retrospecto, fazem do período uma fonte relevante e duradoura de influências que até hoje são de extraordinária validade para o nosso País. 

            Fazendo uma avaliação do legado do ex-Presidente Jango, pude compreender que a diplomacia do seu período de governo foi marcada por elementos e conceitos que não apenas sobreviveram, mas influenciaram a política externa em certas fases do regime militar, além de continuarem válidos como expressão de alguns dos valores mais caros e permanentes da atuação internacional do nosso País.

            Na história diplomática do Brasil republicano, Sr. Presidente, iniciada com a obra formadora do Barão do Rio Branco, que, em verdade, trazia do período monárquico seus alicerces, um dos pontos de inflexão mais importantes foi a chamada Política Externa Independente.

            Articulada publicamente, pela primeira vez, por Jânio Quadros, em artigo na tradicional e conceituada revista Foreign Affairs, a ideia, em resumo, era que uma perspectiva nova deveria nortear nossa estratégia diplomática, possibilitando ao nosso País escapar da bipolaridade rígida da Guerra Fria, na busca de espaços de atuação que fossem compatíveis com o potencial de nossos interesses e com a diversidade embutida em nossa histórica formação.

            Os poucos meses do ex-Presidente Jânio Quadros no Palácio do Planalto não se revelaram suficientes para que aquela visão ambiciosa fosse plenamente traduzida em ação diplomática efetiva, consequente e articulada. A verdade é que coube ao seu sucessor, ao ex-Presidente João Goulart, como Presidente, o mérito de ver concretizada a Política Externa Independente como uma estratégia ampla e bem-sucedida de atuação diplomática.

            Em outras palavras, ao confronto conjuntural da época Leste-Oeste, justificativa ideológica da Guerra Fria, o Brasil almejava opor, até como antinomia, o binômio Norte-Sul.

            Esse refinamento da Política Externa Independente, que passou a ter uma forte dimensão econômica e social, pode-se dizer que também é legado do ex-Presidente João Goulart. Aliás, essa concepção refletia a evolução de outras áreas do conhecimento durante aquele período do pós-Segunda Guerra, quando novas teorias econômicas e as ciências sociais aperfeiçoavam instrumentos de análise que servissem à quebra do determinismo que teimava em buscar a preservação do status quo nas relações internacionais.

            Foi nesse contexto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, de revisão de teorias econômicas sobre as razões para a riqueza e para a pobreza das nações que o Brasil, em boa hora, articulou a Política Externa Independente, no bojo da qual, para além do não alinhamento automático face ao bipolarismo ideológico, se impunha proteger nossa industrialização, ainda que por substituição de importações, e diversificar nossa rede de relacionamentos internacionais.

            Durante a fase parlamentarista do Governo João Goulart, quando San Tiago Dantas, de novo Afonso Arinos e Hermes Lima foram os titulares do Itamaraty, o Brasil, mesmo sem aderir ao Movimento Não Alinhado, do qual sempre foi apenas observador, tomou atitudes altivas e motivadas, como deve ser, pelo interesse nacional. E cito aqui algumas dessas importantes iniciativas diplomáticas: estabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética e com os países socialistas do Leste Europeu, com os quais procurou adensar laços econômicos, culturais e comerciais; militou contra a imposição de sanções em desfavor da revolução de Cuba, na OEA e na Conferência de Punta del Este; priorizou a então recém estabelecida Alalc, instrumento para o fortalecimento econômico de toda a América Latina, por meio de trocas de vantagens tarifárias recíprocas.

            A partir de quando, por decisão plebiscitária do povo brasileiro, João Goulart reassumiu poderes presidenciais plenos, em janeiro de 1963, seus três Ministros das Relações Exteriores - Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e João Augusto de Araújo Castro também deixariam seus respectivos nomes gravados na historia diplomática brasileira.

            Na abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro de 1963, o Embaixador Araújo Castro, Chanceler de João Goulart, pronunciou o histórico discurso dos três "D" - Desenvolvimento, Desarmamento e Descolonização. Três pilares que, por espelharem valores e princípios da própria nacionalidade brasileira, e, por isso, atemporais e profundos, nasceram do que vinha antes, sobreviveram a intempéries e se projetam até hoje.

            Ecos da política externa independente do Presidente Jango Goulart estão contidos na atuação diplomática da democracia brasileira, em sua orientação geral, como se observa em alguns episódios mais ilustrativos: quando, por exemplo, na Nova República de Tancredo Neves, o Presidente José Sarney promove o restabelecimento das relações diplomáticas do Brasil com Cuba; ou quando o Presidente Collor aprofunda o processo iniciado na gestão anterior, que leva à distensão entre Brasília e Buenos Aires, passo sem o qual não haveria o Mercosul; ou mesmo quando o Presidente Itamar Franco, inaugurando nova fase em nossa economia, com o Plano Real, lança as bases para uma inserção normalizada do Brasil no mundo, pós-crise da divida; ou quando o Presidente Fernando Henrique Cardoso, mesmo buscando avançar nas negociações da antiga Alca, não podia deixar que aquela estratégia interrompesse a construção, esta mais prioritária, do Mercosul; ou quando o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na atual "reencarnação" da velha política externa independente, sai mundo afora representando um Brasil que ousa ser "global player" na política, no comércio, nas negociações ambientais e em todas as demais dimensões de uma política externa.

            Sem esses "genes" históricos, o Brasil não teria aprendido a ousar, a almejar mais alto, a ambicionar ter um papel internacional que seja compatível com sua história, com a grandeza de sua sociedade e com o potencial para realizar no presente o que antes parecia estar sempre reservado ao futuro.

            Por essas razões, nada mais justo do que celebrar o Presidente João Goulart no resgate de sua fulgurante passagem pela vida publica brasileira, até ter seu mandato presidencial tomado indevidamente, violentamente e covardemente. Após meio século, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, da sua deposição, será importante atentar, dentre outros aspectos, também para o legado que deixou o ex-Presidente Jango sobre a política externa brasileira, legado que até hoje dá frutos valiosos, que as próximas gerações, até mais do que nós, haverão de continuar colhendo.

            É, portanto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que, na condição de Presidente da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional, trago esta reflexão para o Plenário do Senado, apontando com clareza caminhos e sinais que foram deixados pelo ex-Presidente Jango. Um legado, bases importantes, que foram fundamentais, que sinalizaram efetivamente as posições e o protagonismo que a política externa brasileira passou a desenvolver a partir desse período.

            É essa, Sr. Presidente, a reflexão que trago nesta tarde de segunda-feira aqui no plenário do Senador, na antevéspera de uma sessão do Congresso brasileira, uma sessão histórica, em que todos nós, quero crer, anularemos a sessão que depôs o ex-Presidente João Goulart, resgatando a vida política do ex-Presidente Jango.

            Muito obrigado, Sr. Presidente. Muito obrigado, Srªs e Srs. Senadores.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/11/2013 - Página 82925