Discurso durante a 206ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Preocupação com o teor de projeto de lei que altera o conceito de trabalho escravo no Brasil.

Autor
Ana Rita (PT - Partido dos Trabalhadores/ES)
Nome completo: Ana Rita Esgario
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • Preocupação com o teor de projeto de lei que altera o conceito de trabalho escravo no Brasil.
Aparteantes
Paulo Paim.
Publicação
Publicação no DSF de 19/11/2013 - Página 82927
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, URGENCIA, APROVAÇÃO, SENADO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, REFERENCIA, EXTINÇÃO, TRABALHO ESCRAVO, FATO, NECESSIDADE, DEBATE, ALTERAÇÃO, REGULAMENTAÇÃO, LEGISLAÇÃO, OBJETIVO, PREVENÇÃO, ASSUNTO.

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, ouvintes da Rádio Senado, telespectadores da TV Senado, venho a esta tribuna tratar de um tema que está na pauta deste plenário, um dos mais caros para o meu mandato e para os defensores de um modelo de trabalho justo e decente neste País. Estou falando da PEC do Trabalho Escravo, a PEC nº 57A, de 1999.

            Com sua aprovação, o Estado brasileiro poderá expropriar imóveis urbanos e rurais nos quais for comprovada a existência de trabalho análogo à escravidão, sendo destinados para fins de reforma agrária e a programas de habitação popular.

            Reforço minha posição, já manifestada aqui durante a primeira sessão de discussão do Projeto de Lei do Senado nº 432, de 2013, que regula a expropriação de propriedades rurais e urbanas exploradoras de trabalho escravo, mantendo acordo firmado na Comissão de Constituição e Justiça de que é urgente e necessário primeiro aprovar a PEC, para posteriormente realizarmos o debate sobre sua regulamentação. Não se regulamenta o que ainda não existe.

            Faço novamente este apelo para que a regulamentação seja, de fato, mais debatida, para que não tenhamos retrocessos no combate ao trabalho escravo. Somente a PEC já tramita há 11 anos no Congresso Nacional. Esse tema está exaustivamente debatido e precisamos, finalmente, dar uma resposta à sociedade.

            É notório que o referido projeto de regulamentação tem graves problemas, que trarão significativos retrocessos naquilo que um extenso arcabouço jurídico entende por escravidão contemporânea. Vou, de forma muito tranquila, expor quais seriam esses retrocessos.

            Da forma como está, o projeto, especialmente os arts. 1º e 2º, apresenta várias questões que desconstroem conquistas históricas do Estado brasileiro no combate às formas modernas de escravidão, na qual a experiência brasileira é considerada referência internacional, reconhecida, inclusive, pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

            O mais evidente retrocesso é a retirada do conceito de trabalho escravo, as condições degradantes e a jornada exaustiva, ambas já consagradas no art. 149 do Código Penal, o qual traz, de maneira explícita, a conceituação do trabalho em condições análogas à de escravo.

            Portanto, é extremamente desnecessária a inserção no ordenamento jurídico de outra conceituação. Pior ainda, quando esta se propõe mais restritiva e cerceadora de direitos fundamentais, já historicamente garantidos.

            Outra questão que abre um precedente inaceitável para a continuidade da exploração de trabalho análogo à escravidão no Brasil é a redação proposta pelo art. 1º, ao estabelecer que só serão expropriadas aquelas propriedades onde a exploração for identificada diretamente pelo proprietário.

            Senador Paim.

            O Sr. Paulo Paim (Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Senadora Ana Rita, primeiro para cumprimentá-la. Do alto da autoridade que esta Casa lhe concedeu como Presidenta da Comissão de Direitos Humanos, é mais do que adequada e elogiável a sua posição na tribuna, como já fez outro dia aqui no plenário - eu estava aqui -, condenando aquilo que, infelizmente, setores do Congresso querem, que é regulamentar o trabalho escravo, e não regulamentar a PEC que trata do trabalho de forma tal que ele não seja escravo. Da forma que está, estão oficializando que o trabalho escravo é legítimo. Olhe bem - e V. Exª foi muito feliz - a que ponto chegamos. A Contag nos procurou, e sei que procurou V. Exª também. A própria Secretaria-Geral da Presidência da República nos mandou um documento, elaborado na Casa Civil, que mostra que é improcedente a proposta que querem que votemos. Ora, é mais do que adequado e correto lembrar o que diz a PEC do nosso querido e saudoso Senador Ademir Andrade, apresentada e aprovada aqui há mais de uma década. Diz simplesmente que, onde for comprovado, nos moldes do que recomenda a OIT - e V. Exª foi muito feliz - que alguém está sob regime de escravidão, seja no campo ou na cidade, o proprietário perde o imóvel. Ora, se alugou para alguém e esse alguém está lá pagando com o dinheiro fruto de trabalho escravo, ele vai perder também. É a chamada responsabilidade solidária da forma mais transparente possível. Então, o aparte é mais para deixar bem clara a minha posição, que é idêntica à de V. Exª, não aceitando, em hipótese alguma, que venha uma lei que oficialize o trabalho escravo. Tomara que este Congresso, que está adotando posturas ousadas... Recentemente aprovamos o orçamento impositivo e acredito que amanhã vamos, além de cassar a sessão que cassou o mandato do Jango, do nosso querido João Goulart, Presidente gaúcho, acabar, se Deus quiser e os homens e as mulheres ajudarem, com o voto secreto. Por isso, este momento é fundamental. Que bom que, numa segunda-feira, V. Exª traz o tema ao debate.

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES) - Quero aqui agradecer ao Senador Paulo Paim, Senador que já está aqui há mais tempo do que eu e que sabe que esse foi um tema muito discutido durante esses anos todos, e que, com muita propriedade, aqui, faz também a defesa de uma PEC para extinguir o trabalho escravo no País.

            Não podemos mais conviver com essa realidade, tanto nas áreas rurais como nas áreas urbanas, em que alguns se beneficiam do sacrifício e da vida de muitos que dão suas vidas para poder sobreviver, e que, lamentavelmente, perdem qualidade de vida, perdem condições dignas de uma vida com tranquilidade, submetendo-se a trabalhos análogos ao trabalho escravo. Então, eu quero, aqui, agradecer ao Senador Paim pelo aparte, ratificando também a nossa posição.

            Sabemos, Senador Paim, que, na grande maioria dos casos, esses trabalhadores que vivem em situação análoga à de escravidão são contratados por intermediários, contratadores de empreitadas, os chamados “gatos”, que aliciam esses trabalhadores, servindo de fachada para que os proprietários não sejam responsabilizados pelo crime.

            Manter esta redação significará que o Senado está intentando, claramente, no sentido de restringir as possibilidades de expropriação e de responsabilização do proprietário. A regulamentação poderá não servir como instrumento para pôr fim a essa vergonhosa prática, uma vez que exclui do rol de propriedades passíveis de serem expropriadas aquelas onde o crime é cometido pelos indicados pelo empresário para comandar a atividade econômica, a exemplo dos empreiteiros, arrendatários e intermediários.

            A proposta traz, em seu §2º do art. 1º, uma redação bastante temerária e controversa, já que admite que “o mero descumprimento da legislação trabalhista não se configura trabalho análogo à escravidão”.

            Chama a atenção o uso do termo “mero descumprimento”, como se não observar a legislação trabalhista em vigência no País fosse um assunto de menor importância, dando margem a uma interpretação de que desrespeitar leis trabalhistas é algo trivial.

            Não é prudente aprovarmos um projeto de regulamentação da PEC do Trabalho Escravo com esse teor, tendo em vista que esse projeto pode vir a ser questionado por atentar contra diversos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que, no seu art. 5º, estabelece claramente que: “Ninguém será submetido a tortura, nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos e degradantes.”

            Além disso, fere frontalmente a Constituição Federal, a qual determina quais são os fundamentos da República em seu art. 1º, a dignidade da pessoa humana e fundamentos sociais de trabalho, elencando ainda, como direitos fundamentais, no art. 5º, a proibição de tratamento desumano ou degradante e a função social da prioridade, ditando-se, ainda, que a ordem econômica, no art. 170, tem de ser fundada na valorização social do trabalho e na finalidade de assegurar a todos uma justiça digna.

            Reafirmo que é gravíssima a supressão, Sr. Presidente, pelo referido projeto dos elementos de “condições degradantes de trabalho” e “jornada exaustiva”, como forma de desconstruir o art. 149 do Código Penal, que estabelece muito claramente o que é trabalho escravo ao defini-lo como “a redução de alguém à condição análoga à de escravo, quer submetendo a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, quer sujeitando a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou o preposto”.

            O artigo prevê pena de dois a oito anos para quem se utilizar dessa prática, a qual pode ser tipificada a partir de quatro situações, entre elas, o cerceamento de liberdade de se desligar do serviço, servidão por dívida, condições degradantes de trabalho e jornada exaustiva, as duas últimas desconsideradas pelo projeto de regulamentação.

            O próprio Supremo Tribunal Federal já reconheceu as condições degradantes e a jornada exaustiva como elementos de execução penal. Portanto, não há como tergiversar sobre este ponto. Esta Casa não pode aprovar uma lei que não reconheça estes dois pontos como centrais na conceituação de trabalho escravo.

            E aqui vale ressaltar, Sr. Presidente, para quem ainda tem alguma dúvida em relação a isso, que o art. 149 não tutela apenas a liberdade, mas também a dignidade da pessoa humana. Não podemos aqui hierarquizar a condição humana, definindo quem deve ou não ser tratado com dignidade, uma vez que somos todos seres humanos, iguais em direitos e dignidade.

            Reitero que é fundamental a punição de todos aqueles que desrespeitam a dignidade do trabalhador, que o retiram da condição de humanos, e passam a tratá-los como objeto, passíveis de serem considerados descartáveis nas relações de trabalho, submetendo-os a condições desumanas de alojamento, alimentação, trabalho, saúde e segurança.

            Importante frisar que condições degradantes são aquelas situações que colocam em risco a saúde e a vida do trabalhador e que jornadas exaustivas não se referem ao cumprimento de muitas horas trabalhadas, e, sim, ao tipo de jornada à qual o trabalhador é submetido de forma sistemática, exigindo-lhe a um esforço excessivo, com tal sobrecarga que ele não tem sequer tempo suficiente para se recompor fisicamente para retomar os trabalhos no dia seguinte. É o tipo de jornada que suprime o direito do trabalhador a proteger sua saúde, garantir o descanso necessário e manter o convívio social.

            Srªs Senadoras e Srs. Senadores, não estou aqui falando de medir o tamanho do colchão ou espaçamento entre camas, e somente com essas informações haver a configuração do trabalho escravo. Esses são elementos que, juntamente com as demais violações encontradas, ajudam a evidenciar o desrespeito ao trabalhador.

            Quero aqui manifestar e reafirmar que o trabalho escravo não é apenas a inobservância das leis trabalhistas vigentes, mas um gravíssimo crime cometido contra os direitos humanos, a dignidade e a liberdade dos trabalhadores.

            É preciso que fique bem claro que essa modalidade inescrupulosa de exploração da mão de obra não atinge a todo o conjunto da sociedade brasileira. Ela é seletiva, injusta e extremamente desigual.

            Estudo recente divulgado pela OIT, intitulado "Perfil dos Principais Atores Envolvidos no Trabalho Escravo Rural no Brasil", traz diagnóstico detalhado sobre o trabalho escravo e o perfil dos principais atores envolvidos: os empregadores, os intermediários "gatos" e as vítimas.

            E aqui quero ater-me especialmente às vítimas.

            O estudo feito nas regiões de maior incidência de trabalho escravo no País tem como base entrevistas qualitativas com trabalhadores rurais resgatados dos Estados do Pará, de Mato Grosso, da Bahia e de Goiás. O objetivo foi subsidiar a implementação de políticas públicas que possibilitem a erradicação completa do trabalho escravo no Brasil, onde, desde 1995, mais de 40 mil trabalhadores foram retirados de condições de trabalho degradantes.

            De acordo com o levantamento, a extensa maioria dos trabalhadores expostos à escravidão contemporânea no Brasil é composta por homens, negros, analfabetos funcionais, com idade média de 31,4 anos e renda declarada mensal de 1,3 salário mínimo. Setenta e sete por cento deles nasceram no Nordeste.

            O relatório descreve as características dos trabalhadores encontrados nas fazendas, os quais, invariavelmente, se apresentam com roupas e calçados rotos, mãos calejadas, pele queimada de sol, dentes não cuidados, alguns aparentando ter idade bem superior a que tinham devido ao trabalho duro e extenuante.

            O levantamento da OIT aponta ainda que a exploração também atinge o trabalho infantil. Dos entrevistados, 92,6% afirmaram ter iniciado sua vida profissional antes dos 16 anos. A idade média em que começaram a trabalhar é de 11,4 anos, sendo que aproximadamente 40% iniciaram antes dessa idade.

            Portanto, não estamos falando de qualquer trabalhador, mas daquela parcela mais vulnerável socialmente, vulnerabilidade essa que se torna o principal vetor de exposição desses trabalhadores às situações de serviços degradantes. A falta de oportunidades e a pobreza acabam sendo determinantes para a reincidência. Entre os trabalhadores entrevistados, 59,7% já haviam passado anteriormente por situação de trabalho escravo.

            Além disso, temos visto, de forma crescente, o trabalho escravo urbano, quer com mulheres trabalhando em casas de família, quer com a exploração de mão de obra estrangeira em confecções ou no abate de frangos. São pessoas que não estão nas lavouras, mas que são obrigadas a jornadas exaustivas e em condições insalubres, com instalações inadequadas e total falta de higiene. Muitos empresários valem-se da barreira da língua para mantê-los isolados e submetidos a tratamento degradante. Ora, fazer a pessoa trabalhar mais de 12 horas por dia e pagar menos de um salário mínimo, fazendo-a dormir em condições inadequadas é sim uma forma de exploração do trabalho escravo. Grandes marcas pagam centavos pela confecção de quilos de roupas e vendem cada peça por valores mil vezes superior.

            É preciso que esta Casa dê uma resposta contundente a essa situação vergonhosa, pois sabemos que a certeza da impunidade é uma das maiores dificuldades para se erradicar o trabalho escravo no Brasil.

            Tenho certeza de que a manutenção do trabalho escravo não interessa a ninguém, dada a condição de referência internacional conquistada pelo Brasil no combate a essa nefasta prática, exatamente por compreender e trazer um conceito que agrega à escravidão contemporânea os conceitos de liberdade e dignidade do ser humano.

            Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, apelo novamente a esta Casa, aos colegas que aprovemos primeiro a PEC do Trabalho Escravo, para posteriormente votarmos sua regulamentação, a qual deve sofrer modificações no sentido de que se incluam os elementos de "condições degradantes" e "jornada exaustiva" ao texto e de que, por fim, votemos o substitutivo de regulamentação proposto pelo Governo, como forma de não termos nenhum tipo de retrocesso que venha a macular a imagem do Brasil no combate às condições de trabalho análogo à escravidão.

            Devemos ter vantagens comparativas no mercado externo pela qualidade de nossa produção, pela ampliação de nossa produtividade e não pelo desrespeito aos direitos de trabalhadores e trabalhadoras.

            Era isso que tinha para o momento, Sr. Presidente.

            Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/11/2013 - Página 82927