Discurso durante a 224ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem ao ex-Presidente da África do Sul, Nelson Mandela; e outro assunto.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.:
  • Homenagem ao ex-Presidente da África do Sul, Nelson Mandela; e outro assunto.
Publicação
Publicação no DSF de 07/12/2013 - Página 92102
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, NELSON MANDELA, EX PRESIDENTE, PAIS ESTRANGEIRO, AFRICA DO SUL, ELOGIO, VIDA PUBLICA.
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, SISTEMA, COTA, INGRESSO, NEGRO, INSTITUIÇÃO PUBLICA, ENSINO SUPERIOR, PAIS.

            O SR. JOSÉ SARNEY (Bloco Maioria/PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Paim, em primeiro lugar, minha palavra de agradecimento pelo seu gesto, que é apenas a renovação constante da consideração que V. Exª tem tido sempre comigo, de ter falado e esperado que eu chegasse, porque eu avisei que estava vindo e desejava ocupar a tribuna nesta manhã chuvosa, em que a dificuldade de transitar pelas nossas avenidas está duplicada; em segundo lugar, pelo gesto de V. Exª de desejar que eu falasse da Presidência, quando V. Exª está presidindo, e ninguém mais do que V. Exª honra esta Casa com a sua Presidência.

            Eu pedi à minha Assessoria de Gabinete que procurasse resgatar algumas posições minhas ao longo do tempo sobre o apartheid, que é, sem dúvida, o ponto fundamental que afirmar a personalidade de Mandela.

            Eu ouvi de Helmut Schmidt, que foi Chanceler da Alemanha, cargo que corresponde a chefe de governo, uma frase que eu nunca esqueci. Ele dizia: “Ninguém governa o tempo que governa. Os fatos surgem e fazem emergir os grandes homens.”

            Foi assim quando, nos Estados Unidos, a confrontação em torno do problema da escravidão negra exigiu que aparecesse alguém, e apareceu Abraham Lincoln. No caso do apartheid, ele foi se processando até que surgisse um grande homem que, sem dúvida alguma, se destaca na história do século XX, que foi Nelson Mandela.

            Há coisas que, na humanidade, chocam profundamente e que marcam pela maneira cruel pela qual jamais imaginávamos ou imaginamos que o gênero humano fosse capaz de agir; por exemplo, a escravidão. Sempre repito: nada mancha mais a história do Brasil -- e não se tem como retirar -- do que esse período da escravidão. Outro exemplo: o holocausto. Quando olhamos aquelas cenas, ficamos sem saber e sem explicar por que o homem chegou a fazer aquilo. E outra causa dessa mesma magnitude é o apartheid, mais próximo de nosso tempo.

            É uma política que se formou na África do Sul. Lá, a colonização, que foi holandesa e inglesa, com uma pequena participação alemã, criou uma língua, o africâner, e se firmou como um país independente. Este atravessou várias formações políticas que tiveram como ponto comum o avanço da legislação segregacionista entre negros e brancos. Em 1948 se formalizou o apartheid, estabelecendo não só uma barreira invisível do preconceito, com absoluta desigualdade de direitos, mas também uma barreira física, separando-se toda a convivência, transporte, educação, moradia, como se o território pudesse ser assim dividido.

            Isso determinava também uma atitude pessoal das pessoas para constituir uma coisa anti-humana. Assim o gosto da convivência -- que talvez seja a coisa maior da vida em sociedade -- era rompido pelo gesto de separar, pela cor, os homens.

            Quero dizer a V. Exª que sempre fui um homem sensibilizado, na minha vida inteira, pelo problema da raça negra. V. Exª tem sido testemunha aqui durante o tempo em que convivemos.

            O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - Testemunha de uma série de iniciativas.

            O SR. JOSÉ SARNEY (Bloco Maioria/PMDB - AP) - Mas, ao longo da minha vida, faz parte do meu ser essa revolta que, posso dizer, nasceu com o estudo da história da escravidão no Brasil. Eu, desde aquele tempo em que pude começar a estudar e em que tive contato com a história da escravidão, eu realmente me tomei de uma revolta profunda contra o que acontecera entre nós e senti uma simpatia profunda pela raça negra.

            Conheci ainda -- Deus me deu longa vida -- filhos de escravos, dentro da minha família, dentro da minha casa, no interior do Maranhão, e por eles tinha um afeto muito grande.

            Sobre o apartheid, que é o ponto fundamental da luta de Mandela, eu quero dizer que este, hoje, quando desaparece, não era mais corpo, não era mais espírito, não era mais sangue, não era mais ossos, pois Mandela há muito tempo entrou para a história como um símbolo. E os símbolos são eternos, não se destroem. Até a pedra pode ser destruída, mas um símbolo jamais pode ser destruído. E Mandela foi o símbolo do combate contra o apartheid.

            A política exige um sacrifício muito grande de cada um de nós que a exerce. Ela nos suga, ela nos tira, muitas vezes, tudo. Das melhores coisas que ela pode nos tirar, a primeira é a convivência com a família, os dias que são tirados da família, da esposa, dos filhos. São momentos que temos que sofrer, às vezes suportando ofensas, a destruição de conceitos morais. Ela exige tudo. Chega a exigir de nós políticos a própria vida. Por isso a política é cruel.

            De Mandela, ela exigiu, em primeiro lugar, a liberdade. Ela exigiu tudo dele: o sacrifício humano, a destruição da pessoa humana para ser símbolo de uma causa. Ele começou, como um jovem idealista, querendo, por soluções pacíficas, resolver o problema do apartheid. Seguia talvez o exemplo de Ghandi, que morou muito tempo na África do Sul e de lá partiu, como o advogado dos oprimidos, para tornar-se uma figura mundial.

            Mas, quando Mandela viu o sacrifício de seu povo, quando testemunhou o massacre dos negros, sua personalidade de jovem mudou. Então, ele, deixando a resistência pacífica, se torna um homem que passa a exigir. Já que não se podia resolver pelas palavras, pelo convencimento, só restava a força. E ele se engaja na luta armada contra o apartheid.

            Ele é preso e passa na prisão grande parte da sua vida, talvez o mais importante pedaço da vida que temos todos nós, que é o da maturidade. Primeiro numa ilha deserta, onde ficou confinado 18 anos, e, depois, em outra prisão. Mas não morre o ideal da luta contra o apartheid que ele tinha adotado. E, durante essa luta, que era restrita à África do Sul, num tempo em que as comunicações eram muito difíceis, quase restritas ao pedaço de um continente que vivia, todo ele, sacrificado, Mandela forma uma visão de maturidade política. Dentro da prisão, em vez de ser dominado e angustiado por uma revolta cada vez maior, começa a frutificar o sentimento de paz e convivência. Ele vê que a solução não era usar aquilo que os outros, seus inimigos, usavam, a violência, a guerra, o sangue, mas, sim, ao contrário, um sentimento que a humanidade busca e que até hoje nunca encontrou, com o qual Cristo saudava os outros quando os encontrava e dizia “a paz esteja contigo”. É isso que ele vai buscar.

            Começa a crescer, dentro da prisão, da perda da sua liberdade, o sentimento de que precisava lutar para que o apartheid fosse superado, sem que isso representasse a vingança do vencedor contra o vencido, mas, sim, a conciliação para uma nação. Aí, ele vem e diz que queria um país que fosse de brancos, de pretos, de todas as pessoas que habitassem aquela região.

            Eu confesso a V.Exª que talvez eu tenha sido uma das primeiras vozes deste País contra o apartheid. Eu estava nas Nações Unidas em 1961 e ocupei a tribuna da Comissão de Política Especial das Nações Unidas, da qual eu fazia parte e de que também faziam parte a Golda Meir, Primeira-Ministra de Israel, e Antonio Segni, Presidente da Itália. Eu, então, tive a oportunidade de fazer um dos primeiros discursos, talvez o primeiro de um brasileiro num órgão internacional denunciando a situação na África do Sul. O movimento contra o apartheid quase nem existia no Brasil. Está nos Anais das Nações Unidas. Dizia eu então:

Desprovida de qualquer fundamento científico, religioso ou moral, a existência do apartheid se baseia apenas no egoísmo de grupos racistas, tendo como objetivo a escravidão econômica e a manutenção de um sistema de privilégios, sem nenhuma consideração pelos direitos fundamentais do ser humano, pelas aspirações de liberdade que se manifestam no mundo contemporâneo.

            Em 1961, portanto, eu fiz o primeiro discurso contra o apartheid. Em 1985, eu já participava da luta contra o apartheid como Presidente da República. Eu, em agosto, decretava sanções do Brasil contra a África do Sul enquanto durasse o apartheid, proibindo relações culturais, relações esportivas, a venda ou o trânsito de armas ou a exportação de combustíveis.

            O Brasil, naquele momento, adotou essa posição, com a decisão que eu tomei. Lembro-me bem de que, ao voltar de viagem que tinha feito ao exterior, em São Paulo, fui recebido por D. Evaristo Arns, que me cumprimentou pela atitude que eu havia tomado, uma atitude de que ele mesmo havia sido vítima, pois tinha sido proibido de participar de um evento na África do Sul. E continuei nessa luta também contra o apartheid.

            Essa posição foi uma constante em minha vida pública, como se pode verificar com alguns exemplos de pronunciamentos políticos que peço licença para citar aqui. Assim, em 13 de setembro de 1974 falei sobre o apartheid aqui no Senado e aproveitei justamente esse momento para um depoimento sobre como era a convivência na democracia racial brasileira, onde não podíamos aceitar preconceitos de nenhuma natureza em relação a cor.

            Antes mesmo de decretar as sanções contra a África do Sul, logo no começo do meu governo, em 3 de maio de 1985, em Uberaba, eu insistia:

Gostaria de lembrar que, em 1961, era eu delegado do Brasil na Comissão de Política Especial das Nações Unidas, nascia a questão da África do Sul. E talvez tenha sido eu uma das primeiras vozes a manifestar-se naquela comissão, perante as Nações Unidas, contra o apartheid, afirmando que um país como o Brasil, uma democracia racial, que tem tantas raízes sentimentais com o povo africano, jamais poderia tolerar, de qualquer maneira, a discriminação racial que é, para resumir numa só palavra, desumana. Isto é: não é uma política feita para a Humanidade.

            Em 3 de julho de 1985, em entrevista coletiva, em declaração à agência de notícias Angola Press, eu voltava a condenar, de maneira veemente, o apartheid:

Eu acho que a nossa posição em relação ao apartheid, que é o caso fundamental da África do Sul, é bem clara. O Brasil acha que a política do apartheid é realmente uma política desumana e contra a própria humanidade. Nesse sentido, o País tem sido de extrema coerência na manifestação da sua condenação à política do apartheid. Não há, da parte do Brasil, qualquer vacilação no sentido da condenação da política racial sul-africana.

            E depois do decreto de sanções, em 28 de outubro, abrindo a Assembleia Geral da ONU, eu dizia:

E é também por fidelidade ao credo universalista da democracia que somos antirracistas. Profunda, entranhada e intransigentemente antirracistas. O Brasil, senhores, é um grande país mestiço.

            Pela primeira vez eu confessava isso nas Nações Unidas. Posso dizer que os nossos diplomatas, os que me assessoravam, achavam que eu não deveria utilizar essa palavra, mas eu quis dizer que o Brasil era um país mestiço que se orgulhava de sua identidade.

Várias das altas expressões criadoras da nossa cultura -- dizia eu -- provieram da mescla racial, da mútua fertilização das etnias. A maior e mais completa sensibilidade que produzimos até hoje, Machado de Assis, era um mestiço, como mestiços foram, nas artes plásticas, o Aleijadinho e, na música, Villa-Lobos. Recordo o quanto o Brasil deve, na sua cultura popular, ao gênio negro e ao espírito ameríndio.

            E insistia:

No Brasil, a discriminação racial não é só ilegítima -- é ilegal, é crime previsto nas leis penais. Por isso nos repugna a recrudescência do conflito racial ditado pela intolerância racista, ou a persistência de configurações coloniais. Reitero solenemente nossa total condenação ao apartheid e nosso apoio sem reservas à emancipação imediata da Namíbia, sob a égide das Nações Unidas. O racismo é contra a humanidade e contra o futuro.

            Não quero cansar, mas, já em 14 de outubro, na recepção a Mitterrand, que visitava o Brasil, eu dizia:

Por essa razão, condenamos, de maneira coerente, firme e inequívoca, o apartheid, sistema discriminatório que despreza a dignidade humana e constitui ameaça à estabilidade do continente africano.

            Em 1986, na ilha da Praia, em Cabo Verde, com o Presidente Aristides Pereira, eu falava:

Nossas manifestações de repúdio ao colonialismo, ao neocolonialismo, bem como a todas as formas de racismo(...) Nunca é demais repetir que a sociedade brasileira, fundamentada na miscigenação racial e na fecunda integração de culturas, rejeita veementemente o regime injustificável e retrógrado do apartheid ainda vigente, mas, em plena e irremediável crise, na África do Sul e na Namíbia.

            Durante todo o governo, em cerimônias internacionais, especialmente com os países africanos, eu voltei a vergastar o apartheid.

            Em 21 de março de 1988, no lançamento das comemorações do Centenário da Abolição, eu me pronunciava:

Escolhemos o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial para dar início a essas comemorações. Meu governo tem afirmado o repúdio do Brasil ao racismo e ao apartheid. Assinei, inclusive, decretos proibindo as relações culturais, artísticas e esportivas com a África do Sul.

            Em 7 de julho de 1988, também na Assembleia das Nações Unidas, quando Presidente, mais uma vez eu não deixava de condenar o apartheid.

            Assim, hoje, quando eu não esperava falar aqui sobre a morte de Mandela, quero dizer da coerência que sempre tive ao longo da vida, com minha participação modesta, mas nunca deixando de lutar contra o apartheid.

            Perde a humanidade, Sr. Presidente, a presença física de Mandela, e a convivência que nos enriquecia, a todos nós, ao sermos contemporâneos de um homem como ele. Eu me recordo de que, num livro de cartas de Rainer Maria Rilke, o grande poeta, há uma carta em que comenta a morte do grande escultor Rodin -- cujas obras o mundo conhece bem, inclusive duas delas que são emblemáticas: Balzac, coberto por aquela capa, e O Pensador, com a mão sob o queixo. Pois, quando da morte de Rodin, dizia Rilke: “Todos os grandes homens já morreram!” Era a sensação que ele tinha, e é essa a sensação que eu, neste momento, recolho na minha memória para dizer e refletir que, na humanidade, temos a sensação de que todos os grandes homens já morreram. E talvez o último deles seja a figura de Mandela, porque ele foi um homem que simbolizou a conciliação.

            Se pudéssemos, numa palavra, estabelecer uma pessoa, nós diríamos que a palavra “conciliação”, se tivesse vida, alma, ossos e sangue, seria Mandela, porque ninguém mais do que ele pôde construí-la. É fácil falar em conciliação; é fácil conciliar aqui no Congresso em questões que são talvez as mais difíceis, mas um homem que passou 28 anos no cárcere, um homem que sofreu na carne torturas, um homem que sofreu na família, um homem que deu sua vida, que prejudicou sua família, prejudicou seus sentimentos, foi chamado de terrorista e teve a sua honra profundamente ofendida, esse homem chega e recolhe de tudo isso sentimentos para construir um mundo de convivência, um país de paz, dando um exemplo mundial de como devem ser resolvidas as grandes questões.

            Hoje, no mundo inteiro, não há democracia moderna que não seja uma democracia formada por várias tendências, que não seja pluripartidária, podemos dizer assim. E ele foi o homem que deu o exemplo maior que se pode dar, não de uma doutrina de palavras, mas de um modelo de gestos, do fazer. E, com isso, ele não perdeu a alegria da vida, o sorriso, o gosto da dança, como se tudo isso fizesse parte da sua missão de conciliar as pessoas, de unir as pessoas.

            Eu visitei a África do Sul. Foi uma visita acidental. Eu participava, ao lado de Nelson Carneiro e de Tancredo Neves, de um congresso no Sri Lanka, o antigo Ceilão, a que Camões chamava Taprobana, no famoso verso “muito além da Taprobana”. Pois bem; era o Ceilão. Quando vínhamos do Ceilão, eles resolveram voltar por Paris, e eu resolvi voltar pela África do Sul. Então, embarquei nesse voo de volta em Colombo, a capital do Sri Lanka, com escala nas Ilhas Seychelles e, em seguida, pousamos em Joanesburgo, a partir de onde eu tomaria o avião para o Brasil no dia seguinte. Como haveria de passar ali uma tarde e o resto de uma manhã e estivesse na minha cabeça a ideia de ver fisicamente o que era o problema do apartheid, eu entrei, então, nas lojas e procurei ver os ônibus, onde eu não podia entrar, porque, se eu entrasse, eu participaria daquilo de que eu jamais queria participar, que era entrar num veículo em que havia discriminação. Mas, tomando um táxi, disse ao chofer que queria ver uma área do apartheid, onde moravam os pretos. Eu não queria ver a Joanesburgo que estava ali perto; eu queria ver essa área. Ele ficou atemorizado e disse: “é muito perigoso”. E eu repliquei: “mas nós vamos dar um jeito de passar ao largo”. E, assim, eu fui com ele e vi apenas -- porque não havia maneira de ver outra coisa -- aquela cerca enorme de arame farpado, isolando uma área imensa onde moravam os pretos. E eu fiquei profundamente revoltado. Eu atravessei o Muro de Berlim, mas ele não me chocou como me chocou a visão da cerca de arame do apartheid na África do Sul, simbolizada ali a segregação da raça negra.

            Contudo, depois, tive ainda a oportunidade, em minha vida, de ver uma coisa extraordinária: o desaparecimento do apartheid, que chocava profundamente a pessoa humana.

            A morte de Mandela era esperada por todo mundo, mas eu estou, realmente, tendo esta oportunidade de recordar esses fatos e de dizer que, com ele, eu também vivi um pouco da vitória, a expectativa que eu tinha dentro da alma de poder ver: o fim do apartheid. Aqui, no Brasil, eu tenho sido -- V. Exª é testemunha -- um pioneiro, posso dizer assim, das medidas…

            O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Apoio Governo/PT - RS) - O exemplo são as cotas, se me permite, Presidente.

            O SR. JOSÉ SARNEY (Bloco Maioria/PMDB - AP) - … no sentido da ascensão da raça negra. Eu tinha uma concepção, como tenho, de que, no Brasil, se fez uma coisa errada. Lutou-se pela raça negra como se fosse uma coisa política, contra a segregação, que deve ser combatida, mas não se fez nada, nada havia sido feito pela ascensão da raça negra. Quando veio o Centenário da Abolição, qual foi a minha posição? Foi criar a Fundação Palmares, que se destinava à ascensão da raça negra, porque só com essa ascensão se pode, realmente, eliminar todas essas segregações, eliminar todas as sequelas que possa a sociedade ter em relação à convivência racial.

            Mais do que isso, Sr. Presidente, quando ninguém discutia, no Brasil -- e, de fato, nunca havia esse tema entrado na discussão nacional --, o problema de cotas, eu apresentei o primeiro projeto, nesta Casa, que instituiu o sistema de cotas para negros nas universidades, e não somente nas universidades, mas no Serviço Público. Agora, vejo com grande satisfação que a Presidente da República anunciou que fará isso e o determinou em medida que está em votação no Congresso. Porém, eu já havia apresentado projeto, aqui, desde 1999, e esse projeto estava morto. Não me causa nenhum motivo de constrangimento dizer que não fui nem lembrado, porque, realmente, isso, para mim, não interessa. Interessa-me resolver os problemas. Apresentei esse projeto de cotas para a raça negra baseado em movimentos sociais que me pressionaram, dos quais eu participava? Não. É do meu temperamento a discrição. Então, eu apresentei porque tinha essa concepção. Eu havia lido a história americana e vi que eles só conseguiram avançar na lei dos direitos civis, só conseguiram avançar na ascensão da raça negra depois que eles estabeleceram o sistema de cotas. O sistema que existia nos Estados Unidos, no Sul, principalmente, com a separação de assentos em ônibus, com escolas para os negros e escolas para os brancos, não era uma teoria; era fruto de posições de governos estaduais. Mas, aqui, no Brasil, quando se estabeleceu o sistema de cotas, que foi considerado constitucional, começamos com 100 anos de atraso, porque ali, na América do Norte, essa discussão havia começado há quase um século. Também não fiquei tolhido por esse fato.

            Eu não fiz isso para que eu tivesse qualquer dividendo; eu fiz isso por uma convicção intelectual. Da mesma maneira, quando houve a Conferência de Vancouver, em que foi anunciado ao mundo que o coquetel contra a AIDS era uma solução, no dia seguinte, Sr. Presidente, eu, que estava na Presidência desta Casa, desci para esta tribuna e apresentei um projeto estabelecendo, como obrigação do governo, a distribuição gratuita de remédios para todos os portadores da doença. Quiseram, até, vetar, Sr. Presidente, o projeto que determinava isso. Eu tive que ir ao Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, e dizer a ele que, como Presidente do Senado, eu consideraria uma agressão o veto a esse projeto. E o veto não foi feito. E eu reconheço que o Ministro Serra deu um impulso grande ao programa, porque se dizia que o Ministério não teria dinheiro, mas ele se dedicou a colocar recursos naquele programa. Nem se fala, mesmo agora, no Dia Mundial de Combate à AIDS, como tudo começou, como este programa está resolvendo o problema no mundo inteiro, especialmente na África -- e me lembrei disso por causa da África ---, com a distribuição gratuita do coquetel de remédios contra a AIDS. Fundações do mundo inteiro se engajaram nessa linha, mas ninguém se lembra de onde tudo começou.

            Gosto de repetir um provérbio chinês que encerra muita sabedoria: quando se vai beber água no poço, vê-se quem abriu o poço. Mas não estou ligando para nada disso. O certo, o que me satisfaz é que esteja dando resultado, que a humanidade tenha melhorado e que eu me sinta feliz por não ter passado em vão por aqui. Além das outras coisas, pude melhorar a sorte da humanidade contra uma doença. Um repórter do The New York Times veio ao Brasil e me entrevistou a respeito, porque começou a fazer sucesso esse programa no Brasil, e eu lhe disse: “Eu o apresentei por minha iniciativa apenas, porque sou um intelectual.” Porque essa doença, a AIDS, dava-me na cabeça a ideia de associarmos o amor à morte, quer dizer, a reprodução à morte, a junção de um homem e de uma mulher, que é um momento de criação, como se esse fosse um instante no qual a morte estava presente através deles. Essa, a visão intelectual.

            Da mesma maneira, quanto ao apartheid. Era uma posição intelectual. É a posição de quem tem a visão -- que Deus deu -- de o condenar, porque é do meu temperamento. E, quando vejo um homem como Mandela, que encarna a conciliação, que é aquilo que acho, na vida, que significa o sentimento de paz, ele deve ser tido como esse símbolo que não morre. Já não tinha vivido. Ele existiu para sempre. Ele vai para a eternidade. É como se olhássemos o quadro de El Greco, O Enterro do Conde de Orgaz: formada a corte celeste, a sua alma, quase indefinida nas suas tintas, ascende ao céu. É isso que aconteceu com Mandela. E não é a comparação de um homem com outro, do Conde de Orgaz com Mandela. Pelo contrário; nada tem a ver um com o outro, mas ele é essa alma eterna, que ficará como um símbolo para a humanidade.

            Eram as palavras que eu tinha de dizer aqui, desta tribuna, agradecendo, uma vez mais, a V. Exª.

 

SEGUEM OUTRAS CITAÇÕES RELATIVAS AO PRONUNCIAMENTO

            Em 1961, na Comissão de Política Especial das Nações Unidas:

Desprovida de qualquer fundamento científico, religioso ou moral, a existência do apartheid se baseia apenas no egoísmo de grupos racistas, tendo como objetivo a escravidão econômica e a manutenção de um sistema de privilégios, sem nenhuma consideração pelos direitos fundamentais do ser humano, pelas aspirações de liberdade que se manifestam no mundo contemporâneo.

            No dia 13 de setembro de 1974, no Senado Federal:

Eu mesmo, naquela época, tive oportunidade de fazer um discurso na ONU sobre o apartheid e aproveitei justamente esse momento para um depoimento sobre o que era a democracia racial brasileira, onde não podíamos descobrir preconceitos de nenhuma natureza em relação a cor.

            No dia 3 de maio de 1985, em Uberaba:

Gostaria de lembrar que, em 1961, era eu delegado do Brasil na Comissão de Política Especial das Nações Unidas, nascia a questão da África do Sul. E talvez tenha sido eu uma das primeiras vozes a manifestar-se naquela comissão, perante as Nações Unidas, contra o apartheid, afirmando que um país como o Brasil, uma democracia racial, que tem tantas raízes sentimentais com o povo africano, jamais poderia tolerar, de qualquer maneira, a discriminação racial que é, para resumir numa só palavra, desumana. Isto é: não é uma política feita para a Humanidade.

            Em 3 de julho de 1985, durante entrevista coletiva, em resposta a repórter da agência Angola Press:

Eu acho que a nossa posição em relação ao apartheid, que é o caso fundamental da África do Sul, é bem clara. O Brasil acha que a política do apartheid é realmente uma política desumana e contra a própria humanidade. Nesse sentido, o País tem sido de extrema coerência na manifestação da sua condenação à política do apartheid e, ao mesmo tempo, nós temos apoiado firmemente todos os países africanos no sentido da condenação à África do Sul sobre esta posição no que se refere ao apartheid. Agora mesmo o governo brasileiro teve oportunidade de manifestar a sua estranheza pelo visto que foi negado à visita pastoral que deveria fazer a África do Sul o arcebispo de São Paulo, d. Evaristo Arns E, por outro lado, nós temos apoiado também firmemente a Namíbia e as incursões que têm sido feitas também contra Botsuana, de maneira que quanto a África do Sul não há, da parte do Brasil, qualquer vacilação no sentido da condenação da política racial sul-africana.

            No dia 23 de setembro de 1985, na abertura da 40ª Assembleia Geral da ONU:

E é também por fidelidade ao credo universalista da democracia que somos antirracistas. Profunda, entranhada e intransigentemente antirracistas.

O Brasil, senhores, é um grande país mestiço que se orgulha de sua identidade. Várias das mais altas expressões criadoras da nossa cultura provieram da mescla racial, da mútua fertilização das etnias. A maior e mais completa sensibilidade literária que produzimos até hoje - Machado de Assis - era um mestiço. Como mestiços foram, nas artes plásticas, o grande escultor barroco, o Aleijadinho, e, na música, o universal Villa-Lobos. Recordo o quanto o Brasil deve, na sua cultura popular, ao gênio negro e ao espírito ameríndio.

No Brasil, a discriminação racial não é só ilegítima - é ilegal, é crime previsto nas leis penais. Por isso nos repugna a recrudescência do conflito racial ditado pela intolerância racista, ou a persistência de configurações coloniais. Reitero solenemente nossa total condenação ao apartheid e nosso apoio sem reservas à emancipação imediata da Namíbia, sob a égide das Nações Unidas.

Não concebemos que a ONU comemore sua idade da razão sem uma ofensiva em regra contra os resíduos do racismo na Terra.

Como presidente do meu País, renovei há poucas semanas a proibição de exportar petróleo e derivados, armas e munições, licenças e patentes para a África do Sul, bem como suspendi as atividades de intercâmbio cultural, artístico ou desportivo com o Governo de Pretória.

O racismo é contra a humanidade e contra o futuro.

O racismo, um colonialismo diferente, amoral e perverso não pode manchar a página de ouro da descolonização.

Mais do que as hecatombes dos conflitos mundiais, mais do que o confronto estéril da Guerra Fria, a descolonização ficará como a grande contribuição do século XX à história da humanidade.

O êxito da descolonização foi fruto de uma vontade internacional. Esse caminho, a busca de soluções consensuais, há de permitir superar a frustração que hoje sentimos diante dos desafios da corrida armamentista, da multiplicação de tensões e conflitos.

            No dia 14 de outubro de 1985, em recepção ao Presidente da França, François Mitterrand:

É ainda uma posição de princípio que explica, nosso repúdio ao racismo. Esse repúdio é um componente intrínseco, permanente e profundo, de nossa cultura. Por essa razão condenamos, de maneira coerente, firme e inequívoca, o apartheid, sistema discriminatório que despreza a dignidade humana e constitui ameaça à estabilidade do continente africano.

            Em 9 de maio de 1986, na Assembleia Nacional de Cabo Verde:

Nossas manifestações de repúdio ao colonialismo, ao neocolonialismo, bem como a todas as formas de racismo, aquelas que de forma odiosa institucionalizam a discriminação racial como sistema de dominação, foram muito mais do que uma plataforma compartilhada de política internacional: constituem clara e abrangente visão do mundo.

Nunca é demais repetir que a sociedade brasileira, fundamentada na miscigenação racial e na fecunda integração de culturas, rejeita veementemente o regime injustificável e retrógrado do apartheid ainda vigente, mas, em plena e irremediável crise, na África do Sul e na Namíbia.

            No dia 24 de abril de 1987, em Comunicado Conjunto com Cabo Verde:

Responsável pela perpetuação das tensões regionais, o regime do apartheid constitui verdadeira aberração político-institucional. Ainda que mergulhado em profunda crise, o anacrônico regime aparteísta continua a demonstrar capacidade de desestabilizar política e economicamente o subcontinente. Urge sejam tomadas medidas decisivas para a erradicação desse flagelo.

            No dia 21 de março de 1988, no lançamento das comemorações do Centenário da Abolição:

Escolhemos o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial para dar início a essas comemorações. Meu Governo tem afirmado o repúdio do Brasil ao racismo e ao apartheid. Assinei, inclusive, decretos proibindo as relações culturais, artísticas e esportívas com a África do Sul.

Essa medida prática de repúdio ao apartheid está em harmonia com os princípios que sempre adotei nesta matéria.

Devo recordar que, em 1961, contava eu 31 anos e participava, como delegado especial do Brasil nas Organizações das Nações Unídas, da XVI Assembléia Geral.

Integrante da delegação brasileira, tive a oportunidade de então ser um dos pioneiros que ocuparam a tribuna das Nações Unidas para condenar o apartheid.

Naquele discurso pronunciado há quase três décadas, referi-me ainda ao processo de formação de nossa democracia racial, e ressaltei a orientação seguida pelo Brasil para aprofundar a política de integração. Um dos instrumentos mais notáveis dessa política -- então observava -- era precisamente a Lei Afonso Arinos, que caracteriza a política de discriminação racial como um crime.

Como Presidente da República, tive também o orgulho e a honra de assinar, nas Nações Unidas, a adesão do Brasil, como XII País do mundo, ao tratado contra qualquer forma de discriminação.

            Em 7 de junho de 1988, na Assembleia Extraordinária da ONU:

A África quebrava os seus grilhões. Em nome do meu País, fui um dos primeiros oradores a protestar contra a mancha na história da humanidade que é o apartheid, que começava naquele instante a mostrar ao mundo a sua face trágica. A África, enfim, assumia sua grande dimensão com a presença do homem negro no centro das decisões, protestando, lutando e afirmando-se. Aqui estive em 1985 para, chefe de Estado, prestigiar os 40 anos da Organização e expor as grandes linhas da política exterior do meu Governo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 07/12/2013 - Página 92102