Discurso durante a 55ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Indignação com o espancamento e assassinato, por populares, de jovem acusado de estupro no Estado do Espírito Santo; e outro assunto.

Autor
Ana Rita (PT - Partido dos Trabalhadores/ES)
Nome completo: Ana Rita Esgario
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA. HOMENAGEM, IGREJA CATOLICA.:
  • Indignação com o espancamento e assassinato, por populares, de jovem acusado de estupro no Estado do Espírito Santo; e outro assunto.
Publicação
Publicação no DSF de 17/04/2014 - Página 225
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA. HOMENAGEM, IGREJA CATOLICA.
Indexação
  • REPUDIO, FATO, ESPANCAMENTO, HOMICIDIO, VITIMA, ADOLESCENTE, ACUSAÇÃO, ESTUPRO, LOCAL, ESTADO DO ESPIRITO SANTO (ES), APREENSÃO, RELAÇÃO, AUMENTO, VIOLENCIA, COMENTARIO, NECESSIDADE, SENADOR, DEBATE, PROVIDENCIA.
  • COMENTARIO, CERIMONIA, IGREJA CATOLICA, RECONHECIMENTO, SACERDOTE, ORIGEM, BRASIL.

            A SRª ANA RITA (Bloco Apoio Governo/PT - ES. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores aqui presentes, Srªs Senadoras, ouvintes da Rádio Senado, telespectadores da TV Senado, com cenas de horror ainda em mente e com sentimento de grande pesar, subo à tribuna desta Casa hoje para contar a história de Alailton Ferreira, um menino de 17 anos que trabalhava como flanelinha no bairro Vista da Serra II, no Município de Serra, do meu Estado, o Espírito Santo.

            Acusado de estupro, ele foi perseguido, espancado por cerca de 50 moradores da região e veio a falecer no hospital. Todo o linchamento do menor, agredido com socos e chutes, foi gravado e o vídeo amplamente divulgado nas redes sociais. Ao fundo, os gritos: “Mata logo!”.

            A polícia constatou que contra Alailton não existe nenhuma denúncia, nem de estupro, nem de qualquer outra natureza, e o irmão da vítima, Dimas Ferreira, conta que os agressores haviam ouvido alguém gritar que o menino era estuprador e partiram para o ataque. Aqui quero registrar que, mesmo no caso de Alailton ter sido considerado culpado, o que só poderia ser efetivamente verificado após ampla investigação sobre o caso, o jovem deveria ter sido preso, processado e julgado a partir do acesso à Justiça e ao devido processo legal. Vale dizer que a pena de morte não está prevista no nosso ordenamento jurídico e que as atrocidades cometidas contra esse jovem são crimes e, por isso, devem ser apuradas e os envolvidos devem ser julgados e condenados.

            A família desse menino, o Alailton, passa por profundo sofrimento com a perda e com a injustiça. A sua mãe, a doméstica Diva Ferreira, no sepultamento do filho, afirma: “ele era muito amado e tinha muitos sonhos”.

            Ou seja, todas aquelas pessoas decidiram fazer o que chamam de justiça com as próprias mãos, passando por cima das leis e da presunção de inocência. Foram inapeláveis! Não lhe deram a mínima chance! Prejulgaram e o condenaram instantaneamente à morte. Retiraram, de forma violenta, a sua presença e a sua companhia junto aos seus irmãos, sua mãe, seus amigos, para sempre, muito precocemente.

            Impressiona a completa distorção dos valores, do que significa a dignidade humana. As pessoas, de forma sádica, tiveram a frieza de filmar tudo e, depois, compartilhar nas redes sociais, ao invés de se preocuparem em denunciar o crime ou mesmo intervir para que o jovem não fosse esmigalhado vivo.

            Não poderia deixar de comentar também a ação da polícia nesse caso, que chegou ao ocorrido com duas horas de atraso, demonstrando total despreparo para lidar com a ocorrência. Os policiais, ao invés de chamar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência, o SAMU, para o devido atendimento, pegaram o jovem, praticamente sem forças, pelos braços e o forçaram a caminhar, retirando-o do local sem o menor preparo, além de o terem trancafiado na grade como se fosse um bandido e não como uma vítima que necessitava de cuidados.

            O caso de Alailton, por si só, já é bastante assustador. Entretanto, a preocupação aumenta quando os dados demonstram que todo dia uma pessoa, acusada ou não de crime, é vítima de linchamento no Brasil. É algo alarmante e exige medidas urgentes para evitar a proliferação de casos como o do menino capixaba.

            O fenômeno, bastante antigo no mundo, é cada vez mais frequente nas cidades brasileiras. Cidades como São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro lideram casos de linchamento em quase 26 anos.

            Segundo o sociólogo José de Souza Martins, o País tem passado por um aumento significativo no número de casos. Em entrevista ao jornal El País, ele revela que há três anos eram três ou quatro por semana e, depois das manifestações de junho do ano passado, passou a uma média de uma tentativa por dia, e ele calcula que, nos últimos 60 anos, um milhão de brasileiros participaram de linchamentos.

            Essas práticas coletivas de execução sumária de pessoas consideradas criminosas, não necessariamente culpadas, são registradas por aqui há bastante tempo. No entanto, as pesquisas a respeito são mais recentes. No Brasil, um estudo feito pelo Núcleo de Estudos da Violência, da Universidade de São Paulo, registrou 1.179 casos de linchamento entre os anos de 1980 e 2006. Ou seja, na época, tínhamos uma média de 45 casos por ano.

            Infelizmente, nenhum pesquisador sabe exatamente a dimensão exata do problema, pois não conta com números ou dados concretos dessa realidade, até porque no Código Penal brasileiro não existe o crime de linchamento, somente o de homicídio. Então, como não aparecem nas estatísticas, esses casos ficam diluídos entre tantos outros crimes.

            E, como na maioria dos crimes que ocorre no País, sabe-se, decerto, que também essas vítimas de linchamento são, em sua maioria, são jovens, negros, de bairros da periferia das grandes cidades. São casos como o do menino Alailton, do Município da Serra, e do adolescente de 15 anos que foi preso com uma tranca de bicicleta, pelo pescoço, a um poste no Aterro do Flamengo, no Rio, que levantam suspeitas e acabam nas mãos dos chamados justiceiros.

            Outra vítima do discurso do ódio foi Gilbercan Mezini, de 24 anos, suspeito de matar uma menina de 10 anos, em março do ano passado, em Vargem Alta, também no Espírito Santo. Um vídeo, que circulou nas redes sociais, exibia imagens fortes do linchamento e mostrava a ira dos envolvidos.

            Afinal, o que está acontecendo? Há quem atribua tal violência ao senso de justiça, por falta de justiça ou insegurança e descrédito nas instituições, mas nada justifica tamanha violência e atos abomináveis como esse.

            Para a Presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-ES, Nara Borgo, estamos passando por um momento em que as pessoas se acham no direito de fazer justiça com as próprias mãos. Ela diz que o Brasil é um país tradicionalmente violento, mas lembra que esse discurso do ódio viola a Constituição Federal.

            Na opinião da professora em estudos da segurança do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) Jaqueline de Oliveira Muniz, o fenômeno é uma reação ao medo da violência, quando este toma conta da população. Ela diz que os linchamentos sempre ressurgem diante de ondas de temor. Diante do medo, busca-se uma solução imediata, mesmo tendo de abrir mão das nossas regras. Ou seja, as leis.

            Dados de pesquisas mostram, ainda, que os motivos para que esses linchamentos continuem ocorrendo são, na maioria das vezes, os mesmos de 30 anos atrás. Desde a década de 1980, 25% dos casos de linchamento, em São Paulo, foram por causa de roubo e/ou sequestro relâmpago. A segunda razão mais comum para esse tipo de violência é o próprio homicídio, que representa 17% dos casos que aconteceram entre 1980 e 2009. E, no Rio de Janeiro, a situação é bem parecida: 30% dos casos registrados aconteceram após populares flagrarem roubos ou sequestros.

            Destaco, ainda, Srs. Senadores, outra pesquisa divulgada, em 2012, pelo Núcleo de Estudos de Violência, da USP, que comprova a tolerância da sociedade brasileira com relação à violência, que, de certa forma, auxilia-nos a compreender os motivos pelos quais a sociedade age de forma tão bárbara. O estudo aponta que, ao mesmo tempo em que a sociedade está mais exposta à violência, ela também está mais conivente com práticas como a tortura e a pena de morte, bem como com o endurecimento das penas.

            De acordo com a pesquisa, três em cada quatro pessoas acreditam que a punição adequada para um estuprador seria a pena de morte ou prisão perpétua. Já, para o marido que mata a mulher, este índice não chega a metade da população. Ou seja, há um inequívoco repúdio ao estupro, mas uma maior aceitação da violência de gênero.

            A pesquisa revela também uma aceitação da sociedade brasileira em relação à tortura. O percentual de pessoas que se diziam completamente contrárias às práticas de tortura baixou de 71% para 52%, enquanto a quantidade de quem concorda totalmente ou em parte subiu de sete pontos percentuais para quase 30%.

            Srªs e Srs. Senadores, precisamos trabalhar muito para acabar, de uma vez por todas, com os linchamentos, oferecendo à sociedade a segurança de que ela tanto precisa, reforçando a infraestrutura das polícias, preparando melhor nossos policiais, fazendo valer nossas leis. Cabe à Justiça julgar e cabe aos poderes constituídos punir com cadeia os criminosos. Precisamos fazer uma grande campanha, ao mesmo tempo, conscientizando a sociedade de que sujar as mãos de sangue é contrário aos nossos princípios morais e é crime, sujeito à pena de prisão. É contra tudo o que pregamos em nome da nossa própria vida.

            É preciso mostrar a quem participa de um linchamento (quem o aplaude ou mesmo quem o aceita) que injustiça é julgar e executar uma pessoa tal como no tempo da Inquisição, sem dar ao réu o direito de defesa. É ignorar a responsabilidade e a possibilidade do Estado de aplicação do devido processo legal, com base na Constituição. Sem esse processo judicial, qualquer julgamento é execrável, pois não tem legitimidade constitucional.

            Mais do que leis, temos consciência das graves consequências desse fenômeno para todos nós, como sociedade, que evoluiu de um estágio primitivo para chegar ao que somos e temos hoje. Precisamos refletir seriamente no que perderíamos se motivados pelo ódio coletivo.

            "Olho por olho, dente por dente, e o mundo acabará cego e banguela", disse Gandhi.

            Para finalizar, gostaria de lembrar que o termo linchamento começou a ser usado após a guerra da independência dos Estados Unidos, em 1782. Na ocasião, o juiz Charles Lynch decidiu castigar, além dos limites da lei, um grupo que havia sido absolvido por outro juiz. Com isso, a palavra passou a designar o ato de condenar, com as próprias mãos, uma pessoa que tenha infringido a lei, ultrapassando o processo judicial.

            No período anterior às reformas dos direitos civis da década de 60, nos Estados Unidos, a prática do linchamento ficou particularmente associada ao assassinato de negros no Sul do país. Menos de 1% dos participantes de linchamentos foram presos. Mais de 85% dos estimados 5.000 linchamentos do período posterior à guerra civil ocorreram nos estados do sul, mas o problema era nacional, com um ápice em 1892, quando 161 negros foram linchados.

            Entretanto, apesar dessa "paternidade" reconhecida a Charles ou William Lynch, a prática de assassinato por uma multidão após uma paródia de justiça já ocorria na Idade Média, na Europa, e, no século XIV, na Irlanda e na Rússia.

            Nos dias atuais, o fenômeno é constatado em diversos países, além do Brasil Só em duas semanas de março deste ano, a vizinha Argentina registrou 10 casos, e entre eles está o de um jovem de 18 anos, atacado e morto por uma multidão, após suposta tentativa de roubo de carteira. Essa onda de linchamento levou, inclusive, o Papa Francisco a se pronunciar sobre a brutalidade dos atos contra suspeitos de roubos.

            Por fim, destaco que mesmo esse tipo de prática tendo amplo respaldo social, como defensora dos direitos humanos e do Estado democrático de direito, reafirmo que não podemos ser omissos em situações como essas. Portanto, é fundamental que o Parlamento se debruce sobre esses fatos, debata com profundidade esses temas e proponha soluções legislativas que inibam esse tipo de prática em nosso País.

            É preciso medidas urgentes que atuem no sentido de promover a segurança e a cidadania a todos e a todas e, de forma muito objetiva, implemente um modelo de educação que tenha como princípio os direitos humanos e a dignidade da pessoa humana. Não podemos naturalizar a morte violenta de uma parcela expressiva da nossa sociedade, considerar que negros e pobres não são sujeitos de direitos e que, portanto, não merecem ser tratados com a dignidade devida.

            Sr. Presidente, este era um dos temas que eu gostaria de registrar neste momento. Há ainda outro assunto que eu gostaria de abordar. Espero que eu consiga fazê-lo nesses quatro minutos que me restam.

            Além desses fatos do meu Estado, que trago nesta tarde, fatos que nos levam a refletir, principalmente como membros do Parlamento brasileiro, embora a sociedade como um todo deva também se debruçar sobre esse comportamento humano de achar que fazer justiça com as próprias mãos é a única alternativa que temos. Todavia, é preciso, sim, fazer com que as leis sejam cumpridas e que os órgãos públicos, as autoridades públicas do nosso País cumpram seu papel, no sentido de garantir que a justiça seja feita.

            O outro tema que trago, Sr. Presidente, muito diferente do anterior e a respeito do qual já deveria ter falado desde a semana passada - e me sinto no papel e no dever de relembrar aqui, hoje - é um fato novo, um fato bonito, um fato que nos anima. Quero aqui dizer do mais novo santo do Brasil, o Padre José de Anchieta, canonizado no dia 3 de abril pelo Papa Francisco.

            Aproveito para saudar a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e as Arquidioceses de Vitória e da cidade de São Paulo, pelo envolvimento na campanha pela canonização do padre jesuíta.

            O que já era fato para os capixabas foi oficializado pelo Vaticano, daí as missas e festas realizadas na cidade de Anchieta, no Espírito Santo, onde viveu e morreu o Santo Padre Anchieta - reconhecido como santo mais de 400 anos após a abertura de seu processo de canonização.

            José de Anchieta é o terceiro brasileiro a ser canonizado como santo, depois de Madre Paulina e de Frei Galvão. Ele era espanhol de origem e chegou ao Brasil aos 19 anos, tendo trabalhado na Bahia, no Espírito Santo e em São Paulo, com especial atenção aos povos indígenas.

            A canonização tem um valor extraordinário para os capixabas e para todos os brasileiros e brasileiras. José de Anchieta foi um homem dedicado à educação, dotado de especial inteligência, que soube promover a convivência entre os povos, sempre servindo aos mais necessitados.

            No meu Estado, o Espírito Santo, acompanhei de perto as emocionantes homenagens a Padre José de Anchieta, na cidade que leva o seu nome no Espírito Santo. Antes, ali existia uma aldeia, fundada por ele em 9 de junho de 1597, chamada, então, de Reritiba. O padre transferiu-se definitivamente para lá em 1587, onde veio a falecer em 9 de junho de 1597.

            Nesse período, produziu grande parte de sua obra literária e dramática, escrevendo cartas, sermões, poemas, peças teatrais e a gramática tupi, que foi usada em todas as missões dos jesuítas.

            Uma curiosidade: Reritiba, nome dado à aldeia que fundou, tem origem tupi e significa “muitas ostras”, que o Padre encontrou no local. Tinha e tem até hoje. Todo mês de outubro, a cidade organiza o Festival de Frutos do Mar, atraindo muitos turistas.

            A propósito, o turista pode visitar o Santuário de Anchieta, onde o Santo Padre viveu grande parte de sua vida. E a cidade é ponto de chegada de turistas religiosos que fazem peregrinação a partir de Vitória, a capital, seguindo os passos de Anchieta, todo ano, no mês de junho. A caminhada dura quatro dias.

            Embora a história de Anchieta esteja relacionada ao Espírito Santo, sua caminhada anterior é bem longa. Com 14 anos de idade, estudou no Real Colégio das Artes, em Coimbra, e ingressou na Companhia de Jesus. Ainda noviço, veio para o Brasil na frota de Dom Duarte da Costa, segundo governador-geral. Dedicou-se ao trabalho de educar os filhos dos colonos e de catequizar os índios. Participou da Fundação de São Paulo, atuou na expulsão dos franceses que haviam invadido o Rio de Janeiro e viajou para a Bahia, onde foi ordenado padre. Em 1577, com 43 anos, tendo passado 24 anos no Brasil, Anchieta foi designado provincial, o mais alto cargo da Companhia de Jesus no Brasil. Com a função de administrar os Colégios Jesuítas do País, viajou para Olinda, em Pernambuco, para a Bahia, para o Rio de Janeiro e para Reritiba, no Espírito Santo. Foi em Reritiba que ele passou seus últimos dias. Já doente, escolheu voltar para a aldeia que havia fundado.

            A cidade de Anchieta não só crê em seus milagres como também é grata por representar o maior passo dado pelo religioso no Espírito Santo. A cidade existe por obra do Padre, hoje nosso Santo! Foi com muita alegria que recebemos a canonização.

            Para finalizar, Sr. Presidente, destaco ainda que o Palácio sede do Governo do Estado leva o seu nome, Palácio Anchieta, local onde foram depositados seus restos mortais e que se tornou um espaço de visita de turistas e de estudantes, que lá buscam conhecer melhor a história de José de Anchieta, hoje Santo José de Anchieta.

            Esperamos aprender com o Santo Padre Anchieta as lições que ele nos ensina para os nossos dias e ter nele um companheiro, alguém que está ao nosso lado também como intercessor, que olha para as nossas necessidades e as apresenta ao nosso Deus.

            É isso, Sr. Presidente, que faço questão de destacar. Ao mesmo tempo em que registramos os casos de linchamento em nosso Estado, também registramos a presença histórica do Santo Padre Anchieta, que muito fez para nosso País e para nosso Estado.

            Muito obrigada, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/04/2014 - Página 225