Discurso durante a 167ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Indignação com o elevado número de vítimas da violência policial e dos acidentes de trânsito no País.

Autor
Roberto Requião (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PR)
Nome completo: Roberto Requião de Mello e Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Indignação com o elevado número de vítimas da violência policial e dos acidentes de trânsito no País.
Publicação
Publicação no DSF de 18/11/2014 - Página 393
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • COMENTARIO, RESULTADO, PESQUISA, AUTORIA, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), RELAÇÃO, AUMENTO, QUANTIDADE, HIPOTESE, VIOLENCIA, POLICIAL, MORTE, LOCAL, BRASIL, FALTA.

            O SR. ROBERTO REQUIÃO (Bloco Maioria/PMDB - PR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Presidente Suplicy, eu fiquei impressionado com o apelo do Senador Anibal Diniz pela internet larga, a internet petebista. Antigamente os petebistas eram os calças-largas. Hoje, o Senador Anibal Diniz reclama uma internet de banda larga para todos os brasileiros.

            Nós podíamos começar melhorando a internet do Senado, que é uma das mais lentas e piores da República, com mil bloqueios e dificilmente apta para ser usada. O Senador que procurar fazer algum trabalho pela internet no seu gabinete hoje vai se arrepender, porque ela não anda, ela é lenta e de péssima qualidade. Se compararmos isso com o que custa todo o serviço de internet do Senado, com o pessoal e os custos, nós vamos ficar estupefatos.

            O Senado ganha prêmios de transparência pelas respostas da internet, e os Senadores não têm condição de usá-la a partir de seus gabinetes. Fica aqui, mais uma vez, o meu apelo. Estou há quatro anos aqui e, qualquer trabalho que tenha que fazer pela internet, ou uso o telefone, que, por incrível que pareça, é mais rápido do que a internet do Senado, ou utilizo a internet paga que instalei na minha residência oficial.

            Mas o objetivo do meu pronunciamento hoje é o outro, Senador Suplicy.

            No dia 26 de setembro, há menos de dois meses, 43 estudantes mexicanos, alunos de uma escola de formação de professores de Ayotzinapa, foram sequestrados e assassinados por policiais acumpliciados com traficantes na cidade de Iguala, no Estado de Guerrero.

            O desaparecimento e a execução dos estudantes comoveram o mundo e, por mais de um mês, foram destaques do noticiário internacional. Até o Papa se pronunciou a respeito desta barbaridade.

            Na madrugada do dia 5 de novembro, depois de terem anunciado a razia pelas redes sociais, policiais militares paraenses varreram a periferia da cidade de Belém em uma expedição de vingança pela morte de um membro da corporação, deixando um saldo de 10 a 35 mortos. Entre as vítimas do massacre, estava o estudante Galúcio Chaves, de 16 anos, que voltava da escola. Portador de necessidades especiais, Eduardo assustou-se com os tiros e, mesmo com dificuldade, pôs-se a correr e foi abatido com cinco tiros pelas costas. Alguns dos executados no Pará receberam mais de 30 tiros.

            Mesmo que a própria PM tenha apregoado a expedição, os assassinatos foram atribuídos à guerra entre traficantes, a mesma versão inicial para o desaparecimento dos normalistas mexicanos.

            Parafraseando Caetano Veloso, Iguala é aqui, com a diferença de que as 10 ou 35 execuções em Belém não ganharam a repercussão quer nacional, quer internacional das execuções mexicanas. Lá e cá, os massacres serão rapidamente esquecidos, enterrados com suas vítimas. Os massacres de ontem serão suplantados pelos massacres de hoje.

            Um estudo há pouco divulgado, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ONG que se dedica ao tema, revelou que, nos últimos cinco anos, a polícia brasileira matou, em média, seis pessoas por dia. Entre 2009 e 2013, foram 11.197 mortes provocadas oficialmente pelos nossos agentes da lei.

            Nos Estados Unidos, nos últimos 30 anos, a polícia matou 11.090 pessoas. Em 30 anos, 11.090 pessoas contra 11.197 mortes provocadas pelos nossos agentes da lei entre 2009 e 2013.

            E olha que, segundo o Fórum, a letalidade de nossas polícias está caindo. Essas estatísticas, no entanto, ressalva a ONG, são imprecisas, já que apenas 11 das 27 unidades da Federação informaram os números pedidos pelo Fórum e, mesmo assim, esses números não são informações confiáveis.

            Afirma o Fórum: “A maioria das polícias do País não tem a prática de fazer o acompanhamento da letalidade policial. Há uma subnotificação. Sabemos que é bem maior do que está registrado.”

            Uma pista para comprovar esta subnotificação: calcula-se que, anualmente, 50.000 brasileiros morram assassinados. E, como no caso de Belém, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador, os massacres serão sempre atribuídos a conflitos entre bandidos ou à tal resistência seguida de morte, os famigerados autos de resistência, uma excrescência criada pela ditadura para mascarar as execuções que sobrevive até hoje.

            Assim como os 500 ou mais assassinatos havidos em São Paulo em apenas dois dias de maio de 2006 jamais foram ou serão investigados, também os assassinatos de Belém permanecerão intocados, assim como os seus autores.

            Os 500 assassinatos em São Paulo ficaram por conta da guerra da Polícia Militar com o PCC. Um levantamento superficial feito à época mostrou que a maioria das vítimas eram trabalhadores sem registros policiais.

            Há um alarido danado nesta Casa e na Casa aqui ao lado contra a corrupção. Compartilho com a inquietação, mas rejeito esta visão seletiva de parte do Congresso, do Ministério Público, do Judiciário e da mídia em relação à corrupção.

            Corrupção não é apenas desvio de dinheiro público, propinas, subornos, manipulação em licitações. É também corrupção a indiferença do Parlamento, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público, da academia, das igrejas e da mídia diante da violência, especialmente da violência dos agentes públicos. Da mesma forma que a impunidade do desvio de dinheiro público provocará mais corrupção, a impunidade da violência policial provocará mais violência, maior instabilidade social e perpetuação da injustiça.

            Sylvia Colombo, repórter especial da Folha de São Paulo que se dedica especialmente a cobrir a América Latina - não sei se foi despedida pela Folha também, que está despedindo dezenas de jornalistas -, fez uma ligação direta entre o massacre dos estudantes em Iguala e o terrível massacre de centenas de estudantes na Cidade do México em 1968, 46 anos atrás.

            O prefeito e os narcotraficantes de Iguala não queriam que os estudantes perturbassem um ato oficial. O Presidente Díaz Ordaz não queria que os estudantes perturbassem as olimpíadas que o México sediava naquele ano. E a impunidade do massacre de 68 é a nutriz do massacre de 2014. A diferença entre uma carnificina e outra é que, agora, os mortos foram contados, enquanto que a sinistra contabilidade de 68 permanece até hoje inconclusa, o massacre mexicano de 46 anos atrás. Quer dizer, o México, 46 anos depois de Tlatelolco, estava preparado para a tragédia de Iguala, como o Brasil, depois das chacinas da Candelária, de Vigário Geral, do Carandiru, está preparado para a chacina de Belém, para a chacina de 2006 em São Paulo e para quantas mais se sucederem nessa terrível crônica de impunidade, de indiferença e de desprezo pelos mais pobres e pelos que estão à margem da sociedade dominante.

            Não se trata, Senador Suplicy, apenas da banalização do mal, da vulgarização da violência, da mediocrização da vida. Trata-se, sim, da institucionalização do mal, da violência e da institucionalização do desapreço à vida. É a reinvenção continuada da barbárie. O desdém em relação aos pobres - quase sempre pardos e negros - não se flagra apenas quando expedições policiais punitivas agem nas periferias das cidades como capitães de mato na captura de escravos fugitivos. Quase sempre as catástrofes que vitimam os humilhados e ofendidos pela sociedade de classes pouco comovem os do topo desta sociedade.

            Srªs e Srs. Senadores, neste 2014, registram-se os 30 anos de uma das piores tragédias do século 20 no Brasil: o incêndio da Vila Socó, favela sobre palafitas na cidade de Cubatão, em São Paulo. Fazia tempo que os dutos da Petrobras que ligam a Refinaria Presidente Bernardes a Cubatão, ao Terminal da Alemoa, em Santos, estavam sem manutenção e vazando gasolina no mangue em que as palafitas haviam sido erguidas. Na noite do dia 24 de fevereiro de 1984, uma falha operacional combinada com a corrosão dos dutos provocou o vazamento, de uma só vez, de 700 mil litros de gasolina no mangue. Alertada pelos moradores, a refinaria informou que, primeiro, precisava da avaliação de um engenheiro que morava em Santos para acionar ou não os Bombeiros. Bastava uma faísca para a tragédia; um fósforo; um isqueiro; um curto-circuito. Seja lá o que tenha sido, essa faísca provocou o fogo que consumiu Vila Socó em poucos minutos. Como sempre, quando se trata de favelados, de pardos e negros, de trabalhadores e pobres, a contabilidade das vítimas até hoje não fechou.

            Assegura-se que o número de mortos ultrapassou os 700, podendo chegar a mil, mais da metade crianças - 300 crianças de zero a três anos; 245 crianças de três a seis anos. Afora uma enorme quantidade de feridos.

            Entre os estertores do regime militar e, embora suspensa a censura, não houve empenho para a investigação da calamidade e o balanço criterioso das vítimas.

            Afinal, o Haiti é aqui. E quem lá quer saber o que acontece no Haiti, na Vila Socó, no Capão Redondo, no Guamá, na Baixada ou no Alemão?

            De vez em quando, alguém se interessa. Noticiam os jornais que, semana passada, a Defensoria Pública de São Paulo fez um apelo urgente às Nações Unidas para que investigue o assassinato, no dia 7 de setembro, de quatro jovens, entre 16 e 21 anos, na favela São Remo na zona oeste da capital paulista. Eles foram inequivocamente executados pela polícia.

            O caso foi entregue a um setor da ONU que investiga execuções extrajudiciais. Será que desta fez teremos novidade? Não terá, com esse apelo, a Defensoria Pública de São Paulo confessado sua absoluta inutilidade, insubsistência? Não terá confessado sua nulidade e absoluta inoperância, quando se dedicam desesperadamente às lutas salariais, aos acréscimos, aos absurdos, aos auxílios-residência e tudo o mais, à semelhança do conjunto do Judiciário e do Ministério Público? Isso realmente não é novidade.

            Seja como for, será pouco o que fizeram. Sempre há de ser pouco, mesmo porque não é a punição fortuita de membros dos sinistros esquadrões da morte que agem impunemente no Brasil que mudará a realidade dos fatos, a natureza verdadeira das coisas.

            E qual é a natureza das coisas, no caso da violência policial, parapolicial, civil ou social?

            Talvez pudéssemos simplificar e, tão pura e simplesmente, endereçar tudo à conta das estruturas econômica e social e, redundantes na simplificação, dizer que nada muda se essas estruturas não forem sacudidas, demolidas ou refeitas.

            Talvez pudéssemos abrir aqui um parêntese e citar Marx ou Toynbee, que, mesmo separados ideologicamente pela distância da Terra à Lua, coincidem quanto à obsolescência dos sistemas, que sinais como esses que diariamente explodem à nossa volta indicam, pressionam por um novo tempo e que é da decadência irresistível do velho que deve nascer o novo. Talvez, na mesma linha, me fosse permitido citar meu velho mestre Guerreiro Ramos.

            Talvez, para entender por que as nossas polícias executam seis pessoas por dia - bem mais, muito mais, na verdade; para saber as razões por que mais de 50 mil brasileiros são assassinados todo ano e outros 50 mil são abatidos pelos acidentes de trânsito, e mais de três mil morrem em acidentes de trabalho, talvez seja o caso - talvez fosse o caso - de dar uma olhada para trás, para a nossa história e, com, ela, Senador Cristovam, aprender alguma coisa.

            Olhar pelo retrovisor, perscrutar, examinar com atenção à busca de explicações para a nossa violência, para as nossas mãos sujas de sangue, para a nossa história, ela mesma empapada de sangue.

            Para tentar descobrir por que somos um dos países mais sanguinários do Planeta Terra, mais até que aqueles que vivem quase que em permanente guerra. Cite-se que a guerra da Síria, que mês que vem entra em seu quinto e sangrento ano, matou até agora, estima-se, 170 mil pessoas. Em cinco anos! Enquanto que a carnificina brasileira nas periferias pobres das cidades e do campo, nas ruas e nas estradas, nas fábricas e construções, ceifa quase que a mesma quantidade de vidas, por ano!

            Para aqueles que se chocam, repito a pergunta: somos ou não somos um país sanguinário, violento, em guerra com o povo? Somos ou não somos? País cordial, Senador Suplicy? Ora, bolas! Não é possível que insistamos nisso.

            Mas parece que isso não interessa às nossas elites, Senador Cristovam. E nós somos a elite. Somos as mulheres e os homens bons. Os pais da Pátria. O escol, como se dizia antigamente. E, como tais, não temos nada a aprender com a história, com o passado, não temos que nos ocupar em escavar o tempo à cata das origens do mal.

            Neste momento, assoberbam-nos assuntos de maior importância para que a morte violenta de mais de cem mil brasileiros anualmente interrompa as nossas atividades. Mesmo porque, esses cem mil brasileiros são quase todos pretos de tão pobres; e pobres são como pretos; e todos sabem como tratamos os pretos.

            Termino aqui este pronunciamento ciente de que minhas palavras vão se dissolver, de que as ideias e os dados que aqui expendi vão se desmanchar antes que cheguem ao plenário, às galerias, à tribuna de honra ou à bancada dos jornalistas.

            Afinal, a oposição tem um Presidente a derrubar; e a situação, um Presidente a sustentar. Os jornalistas estão excitadíssimos demais com tantas prisões e escândalos. Nessa azáfama quem lá está se preocupado se, neste dezembro, contabilizaremos cem mil brasileiros mortos violentamente?

            Quase todos pretos de tão pobres, e pobres são como pretos; e todos sabem como aqui tratamos os pretos.

            Alguém me ouvirá? Alguém os ouvirá?

            Presidente, faço aqui o registro da minha indignação diante do que acontece no País neste momento. Nossa situação é igual, senão pior que a do México, com o assassinato dos 43 estudantes de pedagogia, futuros professores, que emocionaram e provocaram até uma reação do nosso excepcional Papa Francisco.

            Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/11/2014 - Página 393