Discurso durante a 190ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Contentamento com o restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos; e outro assunto

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL. MOVIMENTO SOCIAL.:
  • Contentamento com o restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos; e outro assunto
Publicação
Publicação no DSF de 23/12/2014 - Página 100
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL. MOVIMENTO SOCIAL.
Indexação
  • ELOGIO, RESTABELECIMENTO, RELAÇÕES DIPLOMATICAS, GOVERNO ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), CUBA.
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, SOCIEDADE, BRASIL, OBJETIVO, COMBATE, VIOLENCIA, CORRUPÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, CRITICA, FALTA, LIDERANÇA, POLITICA, REGISTRO, NECESSIDADE, MELHORIA, QUALIDADE, EDUCAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Apoio Governo/PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, hoje, Senador Alvaro, é o último dia do ano. Se eu fosse escolher um fato deste ano que, realmente, tivesse uma transcendência e representasse uma surpresa, entre diversos outros, eu diria que foi o reatamento das relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos. Ninguém esperava. Ao mesmo tempo, é de uma força e de um exemplo que, a meu ver, merece ser colocado como o grande fato do mundo em 2014.

            As forças sociais dentro dos Estados Unidos e de Cuba empurravam para que isso acontecesse. Era uma questão de tempo.

            Mas tempo medido, talvez, em décadas, quem sabe até um século, porque mais de metade chegou a passar com a separação entre esses dois países tão próximos pela geografia e tão distantes pela política. As forças sociais obrigariam isso a acontecer.

            Da mesma maneira que o fim do Leste Europeu, que eu creio foi outra surpresa de dimensão transcendental de nossa geração, também viria, de qualquer maneira, pelas forças sociais que empurravam os diversos países do Leste Europeu à independência em relação à União Soviética. As forças sociais pressionavam os regimes, tanto o soviético, na Rússia, quanto os de caráter soviético nos outros países; as forças sociais empurravam para que aquilo terminasse pela ineficiência econômica que eles demonstravam. Poderia até não ser o fim do socialismo, mas teria de ser uma transformação muito grande.

            As forças sociais empurram a realidade em direção à maior eficiência, à maior harmonia, dependendo da paciência para que isso aconteça. Entretanto, Senador Suplicy, alguns fatos permitem antecipar a realização daquilo que as forças sociais empurram. No caso do Leste, não fosse a presença de três lideranças fundamentais - embora houvesse muitas outras também -, certamente não teria acontecido, naquela época, e talvez não tivesse nem acontecido ainda. Essas três lideranças são: Gorbachev, na Rússia; Lech Walesa, na Polônia, e o Papa João Paulo II. Essas três figuras foram capazes, ao lado de outros como tantos que a gente viu no mundo, naquele momento, como Václav Havel, na Tchecoslováquia. Mas foram aquelas três figuras que permitiram - o que as forças sociais empurravam tão lentamente - virasse realidade.

            Agora, outra vez, as forças sociais empurravam Cuba para quebrar o distanciamento dos Estados Unidos. Não aguentaria muitas décadas, pelo menos. E, dentro dos Estados Unidos, as forças sociais também pressionavam para que houvesse um reatamento das relações com Cuba. Mas, talvez, não tivesse acontecido ainda, como ninguém esperava até semana passada. E isso não teria acontecido se não fosse, entre muitas outras, três lideranças fundamentais: Presidente Obama, Presidente Raúl Castro e o Papa Francisco.

            Não fossem essas três forças morais, não fosse a liderança dessas figuras políticas, as forças sociais, por elas, não fariam com que o fato tivesse ocorrido. Nós temos que respeitar aqui essas lideranças que são capazes de entender o que está no subterrâneo das coisas sociais, empurrando numa direção, e apressam a realização daquilo.

            O Brasil precisa de lideranças como essas, não para reatar relações com outro país, não para desfazer o regime que nós temos. Precisa para atar - nem é reatar, porque nunca houve o atamento - as classes sociais que, no Brasil, são mais distantes entre elas do que Cuba e Estados Unidos. A desigualdade, Senador Suplicy, que nós temos entre nossas classes pobres e ricas nos força a uma distância maior do que a distância entre Cuba e Estados Unidos, do ponto de vista diplomático lá e do ponto de vista social aqui.

            Da mesma maneira que, no Leste Europeu, as forças sociais empurravam para o fim do socialismo real, da mesma maneira que nos Estados Unidos e em Cuba empurravam pelo reatamento, as forças sociais brasileiras empurram em direção do atamento das classes sociais. São forças sociais que reagem à violência que nos assusta, à desigualdade que nos envergonha, à corrupção que nos rouba, à ineficiência que nos aprisiona. Tudo isso é forçosamente vencido, ao longo do tempo, pela necessidade histórica, como se dizia antigamente, digamos pela necessidade social.

            Essas forças sociais que querem barrar a violência, que querem acabar com a corrupção, que querem acabar com a vergonha da desigualdade neste País, que querem ter uma economia eficiente estão aí, estão empurrando o processo. Faltam-nos as lideranças políticas. Faltam-nos as lideranças que sejam capazes de fazer, como no Leste Europeu fizeram as três que eu citei, como agora no caso de Cuba e Estados Unidos fizeram as três que eu citei.

            Nós somos os líderes políticos, mas não temos a ousadia nem a capacidade de fazer com o que as forças sociais desejam para melhorar o País exploda positivamente no sentido de virar realidade. Nós não estamos sendo capazes.

            Talvez por isso a gente precisasse que o Papa Francisco escrevesse uma carta às lideranças brasileiras, da mesma maneira que ele escreveu ao Presidente de Cuba e ao Presidente dos Estados Unidos. Ou que nós próprios nos entendamos no sentido de dizer que o Brasil precisa fazer um reatamento - ou atamento, porque nunca houve antes -, entre as classes sociais brasileiras.

            E está claro, inclusive pelo fato de que essa outra surpresa histórica aconteceu, que, no caso do Brasil, esse encontro das classes sociais, não será como se sonhava nos anos 50, 60 e 70, por meio de uma revolução que estatize a economia. Não é preciso usar a palavra socialismo, inclusive. Não vai ser mesmo pela economia, que tem amarras que não nos permitem fazer coisas que destoem da realidade, de uma força que parece a da gravidade pesando sobre a economia e que não nos dá muitas margens de manobra, como vimos, e o Senador Alvaro foi um dos que mais denunciou aqui ao meu lado, como aconteceu com o Governo brasileiro, brincando com a economia como se ela fosse moldável de barro. Não! Ela é de vidro. E brincar com vidro quebra. E foi o que aconteceu.

            A economia não é o lugar onde a gente vai fazer um reatamento das relações sociais no Brasil. E repito, reatamento para simplificar, na verdade é o atamento, porque é a primeira vez. O que vai possibilitar que as classes sociais se encontrem é a educação de qualidade e igual para todos. É isso que a gente precisa fazer.

            O que houve entre Estados Unidos e Cuba, de reatamento das relações diplomáticas, no nosso caso, é preciso uma coisa simples para essa agregação social: todas as escolas serem da máxima qualidade, independente da renda dos pais das crianças que ali estudam e independente da cidade onde elas estudam. Nós precisamos apagar o CEP e nós precisamos apagar o CPF da testa das crianças brasileiras. O CPF que, ao indicar a renda, indica a qualidade da escola; o CEP que, ao indicar a cidade, indica a qualidade da escola. É isso que precisamos fazer no Brasil.

            Comemoramos tanto, como se vê por aí nos jornais, o fato de que as lideranças americanas e cubanas foram capazes de um encontro. Um encontro que quebrou uma realidade de 53 anos de separação política, apesar da proximidade geográfica.

            No caso do Brasil, a proximidade ainda é maior. Estamos dentro do mesmo território, mas somos países diferentes dentro do nosso território. O país da parte pobre do Brasil está mais distante do país da parte rica do Brasil do que Cuba estava distante, diplomaticamente, dos Estados Unidos.

            Por que a gente não é capaz de quebrar isso, se eles foram capazes de quebrar? Porque a gente não teve, ainda, a dimensão da indignação moral com a tragédia social brasileira. Nós ainda somos políticos sem ousadia, nós ainda somos políticos sem compromissos, porque somos políticos sem indignação moral. Para mim, Senador Suplicy, o que está faltando, realmente, entre nós, é indignação moral. Foi isso que levou ao fim da escravidão.

            Os textos que nós estudamos nos nossos cursos de Economia, o senhor e eu, sobretudo os textos marxistas, diziam que a escravidão acabou porque ficou superada, desnecessária. As forças do mercado e o trabalho livre levaram a que a escravidão fosse um peso para os capitalistas. Eu acho que isso é verdade, mas ela poderia demorar muito mais.

            O que acaba com a escravidão é a indignação com a escravidão. Foi assim que acabou na Inglaterra e foi de lá que chegou aqui o fim da escravidão. A escravidão, como instrumento legal na Inglaterra, existiu até quando uma pessoa chamada Wilberforce, um parlamentar, conseguiu passar a indignação com a escravidão. Ele passou essa indignação ao levar, para dentro do parlamento, o debate sobre um navio negreiro que, diante de uma tempestade, para ficar mais leve, jogou ao mar os escravos que ele transportava da África para as Américas.

            Foi o fato de aqueles escravos, sendo transportados em navios negreiros, terem sido jogados ao mar como mercadoria, foi esse fato que levou, ao se tomar conhecimento dele na Inglaterra, a uma indignação profunda. Foi essa indignação que levou ao fim da escravidão, e foi de lá que chegou aqui o sopro da abolição. Foi de lá, inclusive, que partiu não só o sopro, mas a obrigação de proibir o tráfico. Foi esse, sim, um fato fundamental para o fim da escravidão, porque se não se permitia o tráfico e se libertava quem tivesse mais de 60 anos, era questão de tempo acabarem os escravos. 

            Foi a indignação que acabou com a escravidão. É a indignação que está nos faltando com o fato de que o Brasil tem uma desigualdade que não só nos envergonha, mas faz com que o nosso sistema social não seja harmônico. Daí a violência; daí a corrupção, inclusive; daí a ineficiência da economia. Essa indignação é o que está faltando.

            Eu creio que não é por acaso que o ponto de partida do encontro entre Cuba e Estados Unidos não veio especificamente dos políticos; veio da força moral do Papa Francisco. Foi a sua força moral que levou a um apelo, que pôs os dois Presidentes em encontro entre eles, apesar das pressões internas contrárias. Foi a força moral de João Paulo II que apressou o fim do socialismo real no Leste Europeu. É essa força moral que a gente precisa trazer para dentro do Parlamento, para dentro da cabeça e do coração de cada político. O Natal, que nós estamos vivendo, é um bom momento para fazer um apelo à indignação moral que nós precisamos para fazer com que as forças sociais nos permitam avançar.

            Felizmente, hoje a gente tem uma indignação com a corrupção - felizmente. Surgiu uma indignação moral. Não adianta quererem dizer que todos roubam e, por isso, deixemos que roubem. Não. O povo já não aceita, porque surgiu uma indignação, uma indignação moral com a corrupção. Mas não surgiu ainda a indignação moral com a desigualdade; não surgiu a indignação moral com o fato de que, neste País, alguns vivem mais ou vivem menos, dependendo da quantidade de dinheiro que têm para comprar a medicina e os remédios. É inacreditável. Nós tivemos indignação diante da escravidão, mas não temos indignação diante da desigualdade na chance de viver mais ou viver menos, dependendo do dinheiro que têm. Nós ainda não temos indignação diante do fato de algumas crianças terem uma escola boa, outras crianças terem uma escola ruim; logo, umas crianças têm um futuro bom, outras crianças têm um futuro ruim, conforme o dinheiro que têm, e não conforme o talento que lhes foi dado e que eles usaram, cada um deles, no seu aprimoramento. Nós não temos indignação, ainda, moral com o fato de que, neste País, alguns vão presos e outros estão soltos, cometendo o mesmo crime, se um tiver dinheiro para pagar um bom advogado e o outro não tiver.

            É dessa indignação moral que a gente precisa, e é essa ideia da indignação moral de que somos carentes que eu deixo aqui como mensagem de Natal neste final de ano.

            Quem sabe não consigamos ter, um dia, um grande presente, o presente de um despertar para a necessidade moral - não é política apenas - de erradicarmos aquilo que impede o Brasil de avançar para ser um País, de fato, civilizado, com uma sociedade harmônica e uma economia eficiente. E o caminho disso é a educação - é a educação! A educação é o lado lógico. A indignação é o lado moral. A lógica é uma escola de qualidade para todos - todos! - e a mesma qualidade. Que cada um se desenvolva conforme o seu talento, e não conforme a chance que teve para entrar ou não entrar numa escola de qualidade.

            Essa é a mensagem, Senador Suplicy, que deixo aqui neste Natal, desejando que 2015 seja o ano em que esse despertar que hoje estamos tendo diante da corrupção chegue também na indignação diante da desigualdade que caracteriza a sociedade brasileira ao longo dos séculos. E aí espero que, pelo argumento - não é mais indignação moral -, cheguemos ao convencimento de que o caminho é a educação de qualidade e qualidade igual para todos.

            Essa é a mensagem, Senador Suplicy, que quero deixar aqui como mensagem de final de ano. E fico muito feliz, muito contente que o senhor esteja presidindo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/12/2014 - Página 100