Discurso durante a 120ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem pelo centenário de nascimento do historiador José Calazans.

Autor
Lídice da Mata (PSB - Partido Socialista Brasileiro/BA)
Nome completo: Lídice da Mata e Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM:
  • Homenagem pelo centenário de nascimento do historiador José Calazans.
Publicação
Publicação no DSF de 15/07/2015 - Página 184
Assunto
Outros > HOMENAGEM
Indexação
  • HOMENAGEM, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, CENTENARIO, JOSE CALAZANS BRANDRÃO DA SILVA, ELOGIO, VIDA PUBLICA.

            A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, eu peço licença a V. Exªs para hoje dedicar meu discurso também a uma rememoração, à rememoração do centenário - e o faço, sem dúvida, com o apoio dos outros dois Senadores da Bahia - do historiador, Prof. José Calazans.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no dia 14 de julho de 1915, nascia em Aracaju aquele que viria a ser uma das mais importantes vozes do sertanejo no até então sisudo espaço da historiografia nacional: José Calazans de Brandão da Silva. Homem de múltiplos talentos individuais. O Professor José Calazans foi historiador, biógrafo, ensaísta, pesquisador de campo, etnógrafo, especializado em folclore, sociólogo, antropólogo social e jornalista, tendo exercido, com igual maestria, inúmeros cargos de direção em várias instituições de respeito, tanto em seu Estado de origem, Sergipe, em que presidiu o Instituto Histórico e Geográfico, quanto em seu Estrado de adoção, a Bahia.

            Na Bahia, atuou na Universidade Federal, na Academia de Letras, no Conselho Estadual de Cultura, no Instituto Genealógico, no Instituto Geográfico e Histórico, no Museu Eugênio Teixeira Leal (Memorial do Banco Econômico), no Rotary Clube e no Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), além de ter fundado o Núcleo Sertão do Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia.

            Mesmo com esse currículo exemplar, dizia de si próprio, com a humildade típica dos maiores sábios: "Eu gosto muito é de conversar." Chegava a sugerir que seu nome deveria ser "José Falazans". E, exercendo essa arte de falar e ouvir, aprendida desde a meninice, foi um dos grandes inovadores da historiografia nacional, tendo sido precursor da história oral em nosso País.

            Esse respeito à oralidade como documento e à memória social como instrumento é essencial para a recuperação da verdadeira História do Brasil, num País onde, por séculos, foi negado ao trabalhador braçal o domínio da escrita, restringindo o relato histórico à versão oficial da elite letrada.

            Apesar da formatura jurídica pela Faculdade de Direito da Bahia, em 1937, José Calazans interessou-se muito rapidamente pelos estudos históricos, retornando à sua terra natal, decidido a atuar no magistério. Foi extremamente generoso em partilhar seu saber, conhecimento e erudição, ao tempo em que rapidamente abriu espaço, com brilhantismo, na vida cultural sergipana.

            Retornou à Bahia no final da década de 40, fixando residência definitiva em Salvador. Ali desenvolveu a maior parte de sua carreira profissional, solidamente assentada na Universidade Federal da Bahia, da qual chegou a ser Vice-Reitor.

            O interesse pela questão de Canudos, palco do grande drama do sertanejo no século XIX, veio das quadrinhas populares recitadas em casa por sua mãe, nascida poucos anos antes da época em que o conflito eclodiu e contemporânea da presença, em Aracaju e São Cristóvão, da Coluna Savaget, quarto e derradeiro contingente do Exército montado para combater o povo que seguia Conselheiro.

            O interesse de infância renasceu como objeto de estudo por ocasião do aniversário de 50 anos da destruição de Canudos, quando descobriu vários personagens remanescentes dos combates, por meio de reportagens da revista O Cruzeiro, em 1947, realizadas por Odorico Tavares, com fotos de Pierre Verger.

            Daí à coleta de depoimentos e de poemas populares, tudo passou com grande velocidade e entusiasmo, transformando Calasans no maior especialista no conflito de Canudos que existiu no Brasil, até o momento, batendo até mesmo o próprio Euclides da Cunha.

            Ele viu no tema a oportunidade de dar voz aos excluídos dos relatos oficiais, libertando Canudos da gaiola de ouro imposta até aquele momento pela magistral obra Os Sertões, tratando, ademais, de produzir rigorosa revisão de toda a base documental tradicional existente. Sua fama alcançou até mesmo pesquisadores estrangeiros, que ainda o têm como maior referência sobre Antônio Conselheiro e seus seguidores.

            Depoimento da saudosa historiadora baiana Consuelo Pondé de Sena é precioso:

Jamais alguém discorreu com tamanho conhecimento de causa sobre um tema. Dirse-ia-se [sic] que Canudos, penetrou na sua derme, entranhou-se nas suas vísceras, juntou-se ao seu sangue nele próprio se fundindo como uma segunda natureza. Calasans respirava, dormia, sonhava Canudos.

            Sr. Presidente, a extrema generosidade intelectual deste que hoje homenageamos pode ser resumida em uma frase própria: “Eu gosto muito de pesquisar, mas gosto, sobretudo, de criar condições para que outros pesquisem”.

            Calasans nunca escondeu informações e sempre orientou os que buscavam por seu conhecimento para começar a percorrer os intrincados caminhos do sertão, fosse um escritor internacionalmente conhecido, como o peruano Vargas Llosa, que produziu o magistral romance A Guerra do Fim do Mundo após consultar o mestre Calasans, fossem estudantes recém-admitidos nos cursos de graduação ou pós-graduação da universidade, vários dos quais prestam, ainda hoje, tributo ao antigo professor e orientador.

            Ele teve uma atitude do seu tamanho, grande, de grande desprendimento, quando, ainda em vida, doou todo o seu acervo sobre Canudos para o Centro de Estudos Baianos da Universidade Federal da Bahia, fazendo surgir ali o Núcleo Sertão, onde ainda hoje se produzem conhecimentos essenciais sobre o sertanejo, que é muito mais do que “um forte”, tal qual definido originalmente por Euclides da Cunha.

            O sertanejo calasaniano, por assim dizer, é muito mais vivo, pulsando história e memória nas veias, cantando e contando a sua vida enquanto troca uma palavrinha com aquele professor simpático e bom de prosa, que entende o que ele fala.

            Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, nesta manifestação em homenagem ao centenário de seu nascimento, deixo, aqui, o registro da gratidão do povo baiano para com José Calasans, também ele baiano de coração, embora nascido em Sergipe. Ele, que deixou dezenas de trabalhos publicados em suas diversas especialidades, conhecimento multiplicado em centenas de conferências que produziu ao longo de sua fértil vida intelectual e, certamente, em milhares de conversas com seus alunos, colegas, entrevistados e interlocutores, merece a reverência do povo brasileiro.

            Assim, caro Sr. Presidente e Srs. Senadores, reverenciamos o mestre Calasans; mestre na verdadeira acepção da palavra, formador de gerações de novos e eternamente gratos herdeiros do seu generoso legado.

            Sr. Presidente, tive a possibilidade de conviver com o mestre Calasans, não como uma de suas alunas, nem como pesquisadora. Convivi com o mestre Calasans como Vice-Reitor da Universidade Federal da Bahia, no período em que exerci a presidência do diretório central dos estudantes daquela universidade.

            Tivemos, além de inúmeros encontros, em que colocávamos as nossas reivindicações, em reuniões com o Reitor Macedo Costa e o Prof. Calasans, a oportunidade de um convívio específico numa situação e não me saem da memória a sua generosidade e a sua postura.

            Era 1981. A cidade de Salvador viveu o episódio conhecido na história da nossa cidade como quebra-quebra de ônibus. Em manifestação, o Movimento contra a Carestia e o movimento dos estudantes cruzaram o centro da cidade de Salvador, saindo da Praça do Campo Grande em direção à Praça da Sé, para ter uma audiência com o então prefeito da capital, para discutir a tarifa do transporte.

            Na oportunidade em que chegamos à Praça Municipal, nós não conseguimos falar com o Prefeito. Algumas pessoas passavam pelo movimento, ouvindo os discursos inflamados daquela manifestação, e uma pessoa desavisada terminou jogando uma pedra contra um ônibus, o que levou a uma situação de apedrejamento geral dos ônibus que se encontravam naquele local.

            A partir daí, o então Governador deflagrou um processo de perseguição aos militantes do Movimento contra a Carestia, do Movimento Estudantil e a personalidades políticas do nosso Estado.

            Foi determinada a prisão do Deputado Federal Haroldo Lima - que à época ainda não era Deputado -, de diversos outros militantes do Partido Comunista do Brasil, de militantes da esquerda, de militantes do Movimento contra a Carestia.

            O Movimento Estudantil reagiu numa grande assembleia na porta da reitoria. E, ao final daquela assembleia, quando os estudantes dissipavam aquele movimento, a Polícia Federal, agentes da Polícia Federal e da Polícia Militar cercaram a saída da Reitoria da Universidade Federal, com a ideia de prender as lideranças do movimento, entre eles, esta Senadora e outros militantes dirigentes do Movimento Estudantil, do DCE, alguns como o hoje empresário Sidônio Palmeira, Carlos Andrade, Clara Araújo e outros militantes naquele momento.

            Sabendo que, se nós saíssemos, seríamos presos, voltamos para a reitoria, e não tinha como dar uma resolução àquela questão. Solicitamos, então, falar com o reitor. O reitor estava ausente, numa audiência com o Ministro da Educação, à época o Reitor Macedo Costa.

            E nós, então, encontramos o Vice-Reitor, Prof. Calazans, que nos recebeu e que, diante daquele impasse, ouviu de nós, estudantes, que não sairíamos daquela reitoria, que permaneceríamos em vigília, não fosse negociada a nossa saída, negociação que ele tentou, não obtendo êxito.

            E, então, consultando o reitor da Universidade e em comum acordo com ele, decidiu por nos dar abrigo naquela Universidade, de forma que a diretoria do DCE toda dormiu na reitoria, sob a proteção do Vice-Reitor José Calasans.

            E é com essa imagem daquele professor, reitor, que se deparava diante de jovens que lutavam pela liberdade e por melhores condições de vida, e que lhes deu abrigo, e que igualmente foi generoso com tudo o que ele conseguiu fazer nos estudos do povo de Canudos, que mudou definitivamente o olhar sobre a história de Canudos e que fez com que surgissem hoje diversos núcleos universitários de estudo sobre Canudos, como efetivamente ocorreu com a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), é que eu quero saudar, nesse caso, com alegria, a oportunidade que tenho, como Senadora da Bahia, de poder  homenagear esse grande mestre do nosso Estado e do Estado de Sergipe, que deu tantas contribuições ao conhecimento e à historiografia nacional.

            Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/07/2015 - Página 184