Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Apelo por ações do Governo Federal no combate aos casos de hanseníase, em especial no Estado do Mato Grosso, e comentários acerca das doenças negligenciadas que afligem os pobres, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde.

Autor
José Medeiros (PPS - CIDADANIA/MT)
Nome completo: José Antônio Medeiros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE:
  • Apelo por ações do Governo Federal no combate aos casos de hanseníase, em especial no Estado do Mato Grosso, e comentários acerca das doenças negligenciadas que afligem os pobres, segundo a Organização Pan-Americana de Saúde.
Publicação
Publicação no DSF de 17/02/2016 - Página 26
Assunto
Outros > SAUDE
Indexação
  • SOLICITAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, COMBATE, HANSENIASE, ENFASE, ESTADO DE MATO GROSSO (MT), COMENTARIO, RELAÇÃO, DOENÇA, APREENSÃO, ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAUDE (OPAS), MOTIVO, NEGLIGENCIA, TRATAMENTO, PESSOAS, POBREZA.

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - MT. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, todos que nos assistem pela Agência Senado e também pelas redes sociais, na Idade Média, os cruzados da Europa cristã invadiram a Terra Santa e ocuparam Jerusalém. Nessa época, por volta do século XII, viveu por lá um garoto chamado Balduíno. Como toda criança, Balduíno era adepto de brincadeiras de gosto duvidoso, como uma tal guerra de beliscões, em que os garotos se beliscavam para ver quem era o mais forte. Certo dia, alguém percebeu que Balduíno se machucava, mas não reclamava. As pessoas se preocuparam e suspeitaram de algum tipo de doença, e o tempo se encarregou de revelar o diagnóstico. Nos anos seguintes, Balduíno perdeu um braço, as pernas e a visão e ficou conhecido como Balduíno IV, o rei leproso de Jerusalém, tendo morrido aos 24 anos de idade.

    A história do Rei Balduíno nos leva a refletir sobre duas questões. Em primeiro lugar, por que essa doença - que, naquela época, se chamava lepra e que hoje, no Brasil, por força da Lei nº 9.010, de 1995, se chama hanseníase - sobreviveu aos séculos e, ainda hoje, no século XXI, continua sendo um grave problema de saúde pública nas regiões mais pobres do Planeta? Esta é uma das questões que fazemos aqui: o porquê de ter surgido no passado e, até hoje, estar aí. A segunda questão é: por que, ainda hoje, no Brasil, milhares de meninos e meninas continuam se infectando com o bacilo de Hansen e enfrentando as consequências da doença? Essa é a grande pergunta.

    A hanseníase produz lesões na pele, no nariz, nos olhos, nos pés e nas mãos e causa cegueira, perda dos dedos e dos dentes, paralisias e outras enfermidades. No mundo inteiro, só a Índia nos supera em número de casos. Tivemos, no ano retrasado, 25 mil novos casos de hanseníase, sendo 8% deles em crianças com menos de 15 anos de idade.

    Essa questão me incomoda profundamente, Sr. Presidente. Incomoda-me como brasileiro, claro, mas me incomoda também como mato-grossense, pois meu Estado, Mato Grosso, é o recordista em prevalência da doença, e Rondonópolis, cidade onde me criei, é um dos Municípios com a maior incidência.

    Quem também se incomoda com a situação da hanseníase no Brasil e no mundo é a Organização Mundial da Saúde. Nos idos de 1991, eles aprovaram uma resolução acreditando que seria possível controlar a hanseníase até o ano 2000. Nove países da Ásia, África e América Latina, incluindo o Brasil, não foram capazes de superar o desafio.

    Em 2009, a Organização Pan-Americana de Saúde - por meio da Resolução CD49.R19 - estabeleceu a meta de reduzir os casos existentes de hanseníase para menos de 1 para cada 10 mil habitantes. No Brasil, apenas as Regiões Sul e Sudeste, além de o Distrito Federal e o Rio Grande do Norte, atingiram a meta. É verdade que o número de casos por 10 mil habitantes vem caindo, lentamente, no País: eram 4, em 2001; e foi 1,56 em 2014. A despeito dessa queda, ainda restam grandes bolsões de hanseníase espalhados pelo Brasil, pelas Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Mato Grosso, por exemplo, apresentou 10 casos para cada 10 mil habitantes no ano de 2014.

    Por que em pleno século XXI, com todos os recursos tecnológicos de que dispomos, milhares de crianças - nossos pequenos balduínos - ainda se infectam com o bacilo? A resposta, por surpreendente que possa parecer, não se encontra nem na doença, nem nos doentes. A resposta está em cada um de nós. A hanseníase, infelizmente, faz parte de uma família, com uma sombria parentela, de doenças que atendem pelo nome de doenças negligenciadas. Este é o termo: doenças negligenciadas. Talvez você que esteja nos ouvindo ou nos vendo pela TV Senado não tenha nunca ouvido falar em doenças negligenciadas. Pois é, talvez você não tenha visto esse termo, mas você conhece muitas delas: a tuberculose, a hanseníase, a leishmaniose. Todas essas são doenças velhas conhecidas, porém muito negligenciadas.

    A Resolução CD49.R19, da Organização Pan-Americana de Saúde, a que me referi há pouco, não se limitou a propor a eliminação da hanseníase. Textualmente, ela dizia o seguinte - abro aspas: "a OPAS e a OMS resolvem convocar os Estados Membros para que se comprometam a eliminar ou reduzir as doenças negligenciadas e outras infecções relacionadas à pobreza (...) a níveis tais que não sejam mais consideradas como um problema de saúde pública até o ano de 2015". E fecho aspas.

    Esse termo - doenças negligenciadas - foi criado na década de 70 para distinguir uma série de doenças infectoparasitárias que compartilham algumas características cruéis: 1º) elas estão associadas à pobreza; 2º) são endêmicas nas regiões tropicais e subtropicais do Globo; 3º) não recebem a devida atenção por parte da saúde pública; 4º) não recebem investimentos suficientes para pesquisa e desenvolvimento; e 5º) costumam ter alta morbidade e baixa mortalidade, o que significa que são doenças que, via de regra, não matam, mas aleijam.

    E ainda há um agravante: no caso da hanseníase - e estou aqui em frente ao Senador Romário, que tem sido um baluarte na defesa dos deficientes deste País -, há uma injustiça muito grande. No caso das pessoas que ficam mutiladas por causa da hanseníase, elas não se enquadram como pessoas deficientes. Como a hanseníase é uma doença que ataca principalmente os nervos, às vezes, a pessoa está totalmente debilitada, sem conseguir segurar um copo, mas não é considerada deficiente. Então, ela fica incapacitada para o trabalho, mas sem a possibilidade de receber qualquer benefício ou de usufruir de qualquer direito, por ventura, do Marco Legal da Pessoa com Deficiência, por exemplo. Então, essa é uma preocupação, pois nós precisamos evoluir para uma legislação que possa contemplar essas pessoas.

    Com base nessa resolução da Opas e da OMS, o Brasil se propôs a eliminar, até 2015, as seguintes doenças negligenciadas: a hanseníase, a filariose linfática, a esquistossomose, a oncocercose, o tracoma e as geo-helmintíases. Alguns podem até estranhar a ausência da malária e da dengue nessa lista, mas, segundo a maioria dos especialistas, essas doenças têm recebido atenção suficiente nos últimos anos e acabaram perdendo o privilégio de pertencer à família das doenças negligenciadas. Agora, vocês vejam bem a situação em que estão as outras.

    Hoje, o País está mobilizado, até com o Exército, as Forças Armadas, as prefeituras, o Governo Federal nas ruas...

(Soa a campainha.)

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - MT) - ... justamente para combater a dengue. A dengue infectou, considerando apenas os casos prováveis, 1.649.008 pessoas no Brasil no ano passado. Atualmente, com a recente associação dos vírus da febre chikungunya e do zika ao mosquito Aedes aegypti e com todas as atenções do mundo voltadas para o mosquito e seus indesejados passageiros, podemos dizer que a negligência, nesse caso, é o menor dos problemas.

    Tentarei fazer, se me permitirem, um breve apanhado sobre as doenças negligenciadas que ainda afligem, como disse a Organização Pan-Americana de Saúde, "os mais pobres entre os mais pobres" de nossos cidadãos. Começarei pela filariose linfática, popularmente conhecida como elefantíase...

(Interrupção do som.)

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - MT) - ... que é uma doença transmitida pela picada de um pernilongo.

    No Brasil, o único local onde ainda se encontram pessoas infectadas é a região metropolitana de Recife - incluindo Jaboatão dos Guararapes e Olinda.

    A estratégia atual é tratar grandes contingentes populacionais com um medicamento capaz de eliminar a infecção. Apesar de termos conseguido reduzir bastante o número de infectados nos últimos anos, surgiu no horizonte um fato novo: a chegada ao Brasil de grandes quantidades de imigrantes haitianos, o que, inclusive, foi tema de vários discursos do Senador Jorge Viana, aqui, nesta tribuna, pela questão do caos social que estava sendo criado em Basileia, no seu Estado. O Haiti é o País com a maior prevalência de filariose linfática do mundo, e vários desses imigrantes foram diagnosticados com a infecção. É um novo desafio que se apresenta ao Brasil.

    Peço só mais um minuto, Sr. Presidente, para que eu possa concluir.

(Interrupção do som.)

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - MT) - A esquistossomose, por sua vez, antigamente chamada de "barriga d'água", é uma velha conhecida de muitos de nós. É causada por um verme - o xistossomo - que se esconde em um caramujo de águas paradas e infecta as pessoas que têm contato com essas águas. É uma doença endêmica nos Estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe, Espírito Santo e Minas Gerais. Existem, no País, entre 2 e 6 milhões de pessoas infectadas e 25 milhões em situação de risco para se infectar. A doença é potencialmente fatal, Sr. Presidente.

    A razão para ainda termos esquistossomose em nosso País é uma das mais rasas questões de saneamento básico: trata-se de evitar que as fezes das pessoas cheguem, sem tratamento, aos rios e lagos. A abordagem atual tem sido tratar, coletivamente, a população dos mais de duzentos Municípios com mais de um quarto de seus habitantes contaminados pelo xistossomo.

(Soa a campainha.)

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - MT) - Já encaminho-me para o final, Sr. Presidente.

    O tracoma é outra dessas doenças negligenciadas.

    Peço que V. Exª possa dar meu discurso como lido - já encaminho-me para o final -, porque há muitas outras aqui e eu falei destas doenças todas porque nós fizemos, hoje, uma audiência pública tratando justamente sobre o tema destas doenças que teimam em ficar como se fossem residentes eternos aqui em nosso País.

    Para finalizar, Sr. Presidente, a Associação Brasileira de Educação Médica e o Ministério da Educação estiveram presentes para discutir o assunto hoje na audiência pública e parte da solução passará pelo fortalecimento da formação médica.

    Achei muito importante o que os representantes do Ministério da Educação e do Ministério da Saúde estavam justamente discutindo. Pasmem, foi ali dito que na formação dos nossos médicos, hoje, às vezes não há 12 horas de aula sobre essas doenças. Pela formação de profissionais capazes de diagnosticar e de tratar as doenças negligenciadas com um pensamento voltado para a saúde pública. A palavra "negligência" vem do latim e significa "não ler", "não eleger", "não reunir para si". Negligenciados são aqueles indivíduos que não foram escolhidos, que não foram acolhidos, que não foram incluídos. O Brasil tem uma dívida antiga com esses indivíduos, uma dívida que cabe a nós, brasileiros de hoje, resgatar.

    Por incrível que pareça, nós mudamos o nome da doença. Antigamente o leproso era tido como uma pessoa que deveria ficar apartada.

(Soa a campainha.)

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - MT) - Mudamos para hanseníase. Um nome até pomposo, vindo do bacilo de Hansen e tal. Só que continua da mesma forma. Eles continuam negligenciados e nós precisamos avançar.

    Faço essa ressalva aqui para fazer até um pedido de socorro. O meu Estado, o Estado de Mato Grosso, precisa encarecidamente de aporte do Governo Federal, do Ministério da Saúde, porque está em uma... - não é nem em uma endemia, já é hiper, está extrapolando todos os indicadores que registram os índices de contaminação por essa doença.

    Muito obrigado, Sr. Presidente.

SEGUE, NA ÍNTEGRA, PRONUNCIAMENTO DO SR. SENADOR JOSÉ MEDEIROS.

    O SR. JOSÉ MEDEIROS (Bloco/PPS - MT. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, na Idade Média, os cruzados da Europa Cristã invadiram a Terra Santa e ocuparam Jerusalém. Nessa época, por volta do século 12, viveu por lá um garoto chamado Balduíno.

    Como toda criança, Balduíno era adepto de brincadeiras de gosto duvidoso, como uma tal "guerra de beliscões": os garotos se beliscavam para ver quem era o mais forte. Certo dia, alguém percebeu que Balduíno se machucava, mas não reclamava. As pessoas se preocuparam, suspeitaram de algum tipo de doença, e o tempo se encarregou de revelar o diagnóstico. Nos anos seguintes, Balduíno perdeu um braço, as pernas e a visão. Ficou conhecido como Balduíno IV, o Rei Leproso de Jerusalém, e morreu aos 24 anos de idade.

    A história do Rei Balduíno nos leva a refletir sobre duas questões. Em primeiro lugar, por que essa doença - que, naquela época, se chamava lepra e que hoje, no Brasil, por força de (Lei n° 9.010, de 1995), se chama hanseníase - por que a hanseníase sobreviveu aos séculos e ainda hoje, no século 21, continua sendo um grave problema de saúde pública nas regiões mais pobres do planeta? A segunda questão é: por que, ainda hoje, no Brasil, milhares de meninos e meninas continuam se infectando com o bacilo de Hansen e enfrentando as consequências da doença?

    A hanseníase produz lesões na pele, no nariz, nos olhos, nos pés e nas mãos; e causa cegueira, perda de dedos e de dentes, paralisias e outras deformidades. No mundo inteiro, só a índia nos supera em número de casos. Tivemos, no ano retrasado, 25 mil novos casos de hanseníase, sendo 8% deles em crianças com menos de 15 anos de idade. Essa questão me incomoda profundamente. Incomoda-me como brasileiro, claro, ninas incomoda-me também como mato-grossense de coração, pois meu Estado, Mato Grosso, é o recordista em prevalência da doença e Rondonópolis, cidade onde me criei, é um dos municípios com a maior incidência.

    Quem também se incomoda com a situação da hanseníase no Brasil e no mundo é a Organização Mundial da Saúde. Nos idos de 1991, eles aprovaram uma resolução acreditando que seria viável controlar a hanseníase até o ano 2000. Nove países da Ásia, África e América Latina, incluindo o Brasil, não foram capazes de superar o desafio. Em 2009, a OPAS - Organização Pan-Americana da Saúde -, por meio da resolução CD49.R19, estabeleceu a meta de reduzir os casos existentes de hanseníase para menos de 1 para cada 10 mil habitantes. No Brasil, apenas as regiões Sul e Sudeste, além do Distrito Federal e do Rio Grande do Norte, atingiram a meta. É verdade que o número de casos por 10 mil habitantes vem caindo, lentamente, no País: eram 4, em 2001; e foi 1,56, em 2014. Mas, a despeito dessa queda, ainda restam grandes bolsões de hanseníase espalhados pelas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Mato Grosso, por exemplo, apresentou 10 casos para cada 10 mil habitantes no ano de 2014.

    Por que, então, em pleno século 21, com todos os recursos tecnológicos de que dispomos, milhares de crianças - nossos pequenos balduínos - ainda se infectam com o bacilo? A resposta, por surpreendente que possa parecer, não se encontra na doença, nem nos doentes. A resposta está em cada um de nós. A hanseníase, infelizmente, faz parte de uma família, de uma sombria parentela de doenças que atende pelo nome de doenças negligenciadas.

    A resolução CD49.R19, da Organização Pan-Americana de Saúde, a que me referi há pouco, não se limitou a propor a eliminação da hanseníase. Textualmente, ela dizia o seguinte, abro aspas: "a OPAS e a OMS resolvem convocar os Estados Membros para que se comprometam a eliminar ou reduzir as doenças negligenciadas e outras infecções relacionadas à pobreza (...) a níveis tais que não sejam mais consideradas como um problema de saúde pública até o ano de 2015", fecho aspas.

    Esse termo - doenças negligenciadas - foi criado na década de 70 para distinguir uma série de doenças infecto-parasitárias que compartilham algumas características cruéis: 1º) elas estão associadas a pobreza; 2º) são endêmicas nas regiões tropicais e subtropicais do globo; 3º) não recebem a devida atenção por parte da saúde pública; 4º) não recebem investimentos suficientes para pesquisa e desenvolvimento; e 5º) costumam ter alta morbidade e baixa mortalidade, o que significa que são doenças que, via de regra, não matam, mas aleijam.

    Com base nessa resolução da OPAS/OMS, o Brasil se propôs eliminar, até 2015, as seguintes doenças negligenciadas: a hanseníase, a filariose linfática, a esquistossomose, a oncocercose, o tracoma e as geo-helmintíases. Alguns podem estranhar a ausência da malária e da dengue nessa lista, mas, segundo a maioria dos especialistas, essas doenças têm recebido atenção suficiente nos últimos anos e acabaram perdendo o privilégio de pertencer à família das doenças negligenciadas. A dengue, por exemplo, infectou - considerando apenas os casos prováveis - 1milhão, 649 mil e 8 pessoas no Brasil no ano passado. Atualmente, com a recente associação dos vírus das febres de chikungunya e do Zika ao mosquito Aedes aegypti, e com todas as atenções do mundo voltadas para o mosquito e seus indesejados passageiros, podemos dizer que a negligência, nesse caso, é o menor dos problemas.

    Tentarei fazer, se me permitirem, um breve apanhado sobre as doenças negligenciadas que ainda afligem - como disse a Organização Pan-Americana de Saúde - "os mais pobres entre os mais pobres" de nossos cidadãos. Começarei pela filariose linfática, popularmente conhecida como elefantíase, que é uma doença transmitida pela picada de um pernilongo. No Brasil, o único local onde ainda se encontram pessoas infectadas é a região metropolitana de Recife - incluindo Jaboatão dos Guararapes e Olinda - em Pernambuco. A estratégia atual é tratar grandes contingentes populacionais com um medicamento capaz de eliminar a infecção. Apesar de termos conseguido reduzir bastante o número de infectados nos últimos anos, surgiu no horizonte um fato novo: a chegada ao Brasil de grande quantidade de imigrantes haitianos. O Haiti é o país com a maior prevalência de filariose linfática do mundo, e vários desses imigrantes foram diagnosticados com a infecção. É um novo desafio que se apresenta.

    A esquistossomose, por sua antigamente chamada de "barriga d'água", é uma velha conhecida de muitos de nós. E causada por um verme - o Shistosoma - que se esconde em um caramujo de águas paradas e infecta as pessoas que têm contato com essas águas. E uma doença endêmica nos Estados de Alagoas, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe, Espírito Santo e Minas Gerais. Existem, no País, cerca de 2 a 6 milhões de pessoas infectadas, e 25 milhões em situação de risco para se infectar. A doença é potencialmente fatal. A razão para ainda termos esquistossomose em nosso País é uma das mais rasas questões de saneamento básico: trata-se de evitar que as fezes das pessoas cheguem, sem tratamento, aos rios e lagos. A abordagem atual tem sido tratar, coletivamente, a população dos mais de municípios com mais de um quarto de habitantes contaminados pelo Shistosoma.

    Voltando do caramujo aos mosquitos, mencionarei a oncocercose. A oncocercose é uma doença transmitida pela picada de um tipo de mosca hematófaga infectada por um verme. Esse verme se multiplica intensamente dentro do corpo humano e, quando chega aos olhos, pode causar cegueira. É a chamada cegueira dos rios. Existem regiões na África em que praticamente 100% das pessoas estão infectadas e 10% estão cegas. No Brasil, a doença está restrita ao Parque Indígena Ianomâmi, que ocupa o norte dos Estados do Amazonas e de Roraima e que se estende para além da fronteira com a Venezuela. O tratamento é bastante simples: basta tomar um comprimido, em dose única, e repeti-lo, periodicamente, durante algum tempo. Há 20 anos, a prevalência de infectados nessa região era de 60%; E hoje, apesar da aparente simplicidade do tratamento, é de cerca de 5%.

    O tracoma é outra dessas doenças fáceis de controlar, mas que continuam causando enorme sofrimento. Trata-se de uma infecção bacteriana que atinge os olhos, deforma as pálpebras, e também pode cegar. E, na verdade, a maior causa infecciosa de cegueira do mundo, com cerca de 40 milhões de pessoas afetadas, e mais de 1 milhão de pessoas com perda profunda da visão. É transmitida por contato com pessoas infectadas, com objetos manipulados por elas, ou com moscas contaminadas que pousam nos olhos. A doença é encontrada em todos os Estados brasileiros. A prevalência média, no último inquérito realizado, era de cerca de 5% das crianças em idade escolar, havendo um grande número de municípios com prevalência acima de 10%. O tratamento é muito simples - bastam alguns comprimidos de antibiótico administrados antes que a doença evolua para lesões irreversíveis das pálpebras - e a estratégia epidemiológica é tratar todas as crianças nos municípios com maior prevalência, além de qualquer pessoa que apresente sinais e sintomas compatíveis.

    Outras dessas doenças negligenciadas são as geo-helmintíases, as parasitoses intestinais, as famosas verminoses. Seus principais representantes são a lombriga e o ancilóstomo. Cerca de 70% das crianças em municípios com baixo índice de desenvolvimento humano sofrem com a infestação desses vermes e a quantidade de vermes é tão grande que chega a prejudicar o desenvolvimento físico e o desempenho escolar dessas crianças. A estratégia consiste em administrar vermífugos em massa para as pessoas dos municípios mais afetados, e resta evidente que se trata, mais uma vez, de doença relacionada à falta de saneamento básico e de educação em saúde. E outra doença relacionada à pobreza.

    Poderíamos falar dos 3 milhões e meio de brasileiros afetados pela Doença de Chagas. Em 2006, a OPAS/OMS emitiu um certificado dizendo que não há mais transmissão da doença pela picada do barbeiro em território brasileiro. Nos últimos anos, entretanto, lemes observado diversos casos de infecção aguda relacionados à ingestão de barbeiros misturados a alimentos como açaí, caldo de cana, bacaba, jaci e palmito de babaçu. Poderíamos falar, também, da leishmaniose visceral, que costumava ser uma zoonose rural, mas que, nos últimos anos, invadiu as cidades e, em 2013, infectou 3.253 pessoas e matou 231.

    Poderíamos falar dos resultados de um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), demonstrando que o Brasil gastava, em anos recentes, mais de 200 milhões de reais com tratamento de hepatites virais; quase 600 milhões de reais com tratamento da AIDS; e apenas 2 milhões com a hanseníase, e 1 milhão com a malária. Poderíamos falar das mais de 100 milhões de pessoas afetadas por doenças negligenciadas nas Américas, ou das mais de 1 bilhão de pessoas afetadas por essas doenças no mundo.

    Poderíamos falar desses e de outros assuntos, mas vou aproveitar o tempo que resta para reforçar uma ideia fundamental: a ideia de que as doenças negligenciadas são doenças da pobreza. São doenças que, segundo a Organização Mundial da Saúde, afetam "os mais pobres, os marginalizados (...), os que vivem nas zonas rurais e na periferia das grandes cidades". São doenças que se nutrem da miséria e que perpetuam a própria miséria. São doenças que se alimentam de nossas crianças e que as transformam em criaturas tristes e adoecidas. São doenças tiram as crianças da escola, as estigmatizam e as fazem perder sua melhor chance de escapar círculo vicioso a que seus pais, provavelmente, já foram condenados: o círculo vicioso da pobreza. São doenças, enfim, que nosso país tem condições técnicas e obrigação moral de eliminar.

    Acredito que o Senado Federal pode, e deve contribuir para mudar essa realidade. Organizamos uma Audiência Pública na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa que debateu o tema. Convidamos especialistas e representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Medicina, da Organização Pan-Americana da Saúde, Associação Brasileira de Educação Médica e do Ministério da Educação para discutir o assunto. Parte da solução, passará pelo fortalecimento da formação médica; pela formação de profissionais capazes de diagnosticar e de tratar as doenças negligenciadas com o pensamento voltado para a saúde pública.

    A palavra negligência vem do latim e significa "não ler", "não eleger", "não reunir para si". Negligenciados são aqueles indivíduos que não foram escolhidos, que não foram acolhidos, que não foram incluídos. O Brasil tem uma dívida antiga com esses indivíduos, uma dívida que cabe a nós, brasileiros de hoje, resgatar.

    Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/02/2016 - Página 26