Discurso durante a 180ª Sessão Especial, no Senado Federal

Sessão Especial destinada a comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra e à entrega da Comenda Senador Abdias Nascimento.

Autor
Lídice da Mata (PSB - Partido Socialista Brasileiro/BA)
Nome completo: Lídice da Mata e Souza
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS E MINORIAS:
  • Sessão Especial destinada a comemorar o Dia Nacional da Consciência Negra e à entrega da Comenda Senador Abdias Nascimento.
Publicação
Publicação no DSF de 25/11/2016 - Página 7
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS E MINORIAS
Indexação
  • SESSÃO ESPECIAL, COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, GRUPO ETNICO, NEGRO, PROTEÇÃO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA, IMPORTANCIA, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

    A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) – Meu caro Presidente e companheiro de lutas, Senador Paulo Paim, uma das principais referências da luta contra o racismo no Parlamento brasileiro porque dedicou todos os seus mandatos a esta causa, entre outras, e que recebeu, recentemente, no 20 de novembro deste ano, na nossa terra, na Bahia, o título de cidadão baiano por sua participação destacada, como aqui disse, por ser reconhecidamente um dos principais líderes nacionais da luta antirracismo no Brasil.

    Quero saudar a todos os companheiros, companheiras, representantes dos movimentos, da sociedade civil organizada, líderes, que estão aqui conosco na Mesa, ou fora dela, entendendo este Plenário como uma extensão desta Mesa.

    Dizer da nossa alegria de poder estar aqui hoje, marcando essa data no Senado Federal, marcando essa data que é de luta do povo negro da sociedade brasileira democrática no País inteiro e que, neste ano, aconteceu em um dia de domingo. Nós não tivemos a oportunidade de poder, portanto, fazê-lo exatamente na data de 20 de novembro.

    Eu quero iniciar o meu pronunciamento com uma frase de uma pessoa muito conhecida na Bahia: “Não sou descendente de escravos. Eu descendo de seres humanos que foram escravizados” (Makota Valdina).

    Com essa frase de Makota Valdina, líder comunitária, militante da liberdade religiosa e porta-voz das religiões de matriz africana, dos direitos das mulheres e da população negra, abro este pronunciamento. Essa frase representa o rompimento de uma cultura ainda existente em nosso País e em todo o mundo: a do racismo institucionalizado, que permeia frases como as que dizem que o negro descende de escravos.

    Senhoras e senhores, hoje esta sessão homenageia pessoas que contribuem para a proteção da população negra e a promoção da cultura afro-brasileira.

    Hoje entregamos a Comenda Senador Abdias Nascimento, que leva o nome de um negro que liderou projetos pioneiros na luta pela igualdade racial, como o teatro experimental do negro e o Jornal Quilombo, e que passou 13 anos de sua vida no exílio após a edição do Ato Institucional nº 5 pelo regime militar em 1968. Também foi um dos principais idealizadores do Dia Nacional da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro – que também marca as comemorações desta sessão –, de que tive a honra, juntamente com o Senador Paulo Paim, de ser a autora em 2013.

    Assim, nossas homenagens hoje com esta Comenda vão para o cantor Lazzo Matumbi, indicado por mim e representando o movimento negro da Bahia; para o Instituto de Mulheres Negras de Mato Grosso (Imune); para a atriz Zezé Motta; in memoriam, para o percussionista Naná Vasconcelos, de tanta contribuição à cultura afro-brasileira no Brasil e à música brasileira; e também para o ator Lázaro Ramos, que foi indicado e declinou de participar desta homenagem, em uma referência aos momentos difíceis por que passa a política no Brasil.

    Eu concordo com a dificuldade dos momentos em que vivemos. No entanto, escolho a manutenção desta sessão e destes homenageados todos, inclusive do Lázaro, para mostrar à sociedade brasileira, dar visibilidade à sociedade brasileira da contribuição destas pessoas à vida do povo brasileiro, com sua contribuição na cultura, com sua contribuição na religião, com sua contribuição nas artes, na educação, na arquitetura, em tudo. O negro brasileiro contribuiu para a formação do Brasil de maneira tão especial.

    Afinal, em 300 anos de escravidão, há um legado extremamente doloroso para a civilização; há um legado extremamente nefasto à identidade, à formação deste País, escravizando seres humanos. Mas, por outro lado, há o legado dessa população enorme que veio para o Brasil e conseguiu erguer esta Nação.

    Sobre Lazzo Matumbi, o nosso homenageado pela Bahia, quero falar de maneira especial. Quero lembrar que esse cantor e compositor da música baiana se tornou referência para uma geração de cantores de blocos afro-baianos desde a década de 1980. Os blocos afro da Bahia são expressão dessa cultura de resistência e, ao mesmo tempo, da denúncia do racismo no Brasil.

    Quando nós tínhamos blocos em que havia quase exclusivamente a presença de brancos no nosso Carnaval, surgem, com a força, com o vigor da resistência política, democrática e de combate ao racismo, os blocos afro da Bahia, para dizer que a negritude tinha e tem uma enorme contribuição na nossa sociedade soteropolitana, baiana e no Brasil, especialmente nos seus ritmos e na sua música.

    A música de Lazzo tem a cadência do samba, a pulsação do coração do jazz, o batuque dos tambores africanos, a mandinga da capoeira, a pegada do maracatu, ijexá, agoerê, alujá e tantas outras células rítmicas da nação iorubaiana, e, por toda a sua contribuição, ele é merecedor desta comenda, assim como todos os outros homenageados.

    Mas, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, homenageados, convidados, eu gostaria de pontuar algumas questões que permeiam a reflexão sobre a vida dos negros e a negritude no Brasil e o Dia da Consciência Negra. O Dia da Consciência Negra foi iniciativa do poeta e militante do movimento negro gaúcho Oliveira Silveira, no ano de 1971, do grupo Palmares de Porto Alegre. A celebração do dia 20 de novembro, como data maior da luta contra a escravidão e o racismo no Brasil, corresponde à importância que o movimento quilombola, simbolizado pelo Quilombo dos Palmares, possui para a história do Brasil.

    Zumbi é a representação viva da resistência permanente, da luta contra a escravidão, e sua morte representou um legado da luta sem tréguas em defesa da liberdade. Em verdade, a celebração do dia 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra representa, a um só tempo, tanto aqueles que morreram lutando quanto aqueles que, liderando o maior movimento de massa do século XIX, também obtiveram grande vitória com a abolição da escravatura no Brasil em 1888, assinada pela Princesa Isabel, mas que foi também uma conquista da luta abolicionista.

    Nós não podemos nos esquecer de que a abolição, independentemente de quem a proclamou, libertou mais de 800 mil pessoas, mesmo não tendo dado a elas as condições de cidadania necessárias.

    Foram todos movimentos históricos que se completaram, o Movimento Quilombola e o Movimento Abolicionista, que são, na verdade, filhos da mesma matriz: a luta pela liberdade plena do ser humano.

    O movimento negro, neste momento, sofre, como todos os outros movimentos sociais do nosso Partido, as dores e as vicissitudes da situação política conjuntural, que é muito singular, porque tivemos em curso um processo de mudança traumático do Governo brasileiro.

    Não quero transformar isso aqui em um debate sobre impeachment ou não impeachment, mas é impossível discutir-se um movimento popular neste dito momento no Brasil sem levar em conta que houve uma ruptura de acordos, de programas, de políticas que estavam sendo desenvolvidas por um governo que foi eleito e que, portanto, pactuou essas políticas públicas com a sociedade brasileira e com o movimento negro, que, neste momento, sofre um revés nessas conquistas; um revés que, às vezes, me assusta. Eu vinha para esta sessão, Senador Paulo Paim – estava dizendo isso a V. Exª –, e me assustei com o que vi pela televisão.

    Sabia que ia haver uma audiência pública para discutir a implantação da EBC no País. A criação da TV Brasil, no País, foi um debate político e ideológico. Muitos eram contra o Brasil ter um canal de televisão, que o Governo brasileiro pudesse adotar como política ter um canal de televisão, embora diversos países do mundo desenvolvido e capitalista o tenham. Os principais países da Europa o têm como um vetor ou canal essencial de divulgação e de transmissão de notícias confiáveis para o seu país e para o mundo.

    Vi na televisão, ao dirigir-me a esta Casa, um verdadeiro processo de censura – e mais do que isso –, de discurso de ódio e de perseguição, identificando pessoas que faziam parte da EBC, quais os seus salários, quais os salários dos jornalistas, se são grandes ou se são pequenos.

    Quem discute isso não é mais o Sindicato dos Jornalistas, que, aliás – coitado! –, diante da situação da Comunicação no Brasil, está hoje bastante fragilizado, nem a Federação Nacional dos Jornalistas. Ele é, em si e em princípio, condenado por alguns que apontam: o jornalista tal é filiado ao partido tal; o cantor ou o artista tal também é filiado ao partido tal. Ora, isso é típico dos regimes ditatoriais. É uma situação que o Brasil e o mundo conheceu nas décadas de 40, 50 e 60. É fruto do ideário do ódio do mundo que viveu o fascismo. Essa foi uma política dos fascistas que se estendeu nos Estados Unidos para o macartismo, e que aqui no Brasil – não se espantem! – está presente nesse discurso do ódio e da perseguição em apontar as pessoas pelo partido a que elas foram ou são filiadas ou pelo tipo de pensamento que têm. Tempos difíceis, companheiros do movimento social! Tempos difíceis! E esses tempos porão as nossas lutas e a nossa capacidade de resistir à prova.

    Como legados importantes deste momento por que passamos, que vivemos, é preciso lembrar o Decreto nº 4.887, de 2003, que regulamenta as terras quilombolas; a Lei nº 10.639, de 2004, que inclui, na grade curricular do ensino fundamental, as disciplinas de História da África e Cultura Africana; a Lei de Cotas para o Ensino Superior, aprovada, por unanimidade, pelo Supremo Tribunal Federal.

    É importante também a aprovação do Estatuto da Igualdade Racial, cujo autor está presente aqui na Mesa, e que, embora incompleto pelas necessidades de negociação do Parlamento, não deixa de ser um avanço que precisa ser aprimorado com a criação do Fundo Nacional de Promoção da Igualdade Racial; a inclusão da questão racial na agenda política da sociedade brasileira, bem como a própria instituição desta Comenda Abdias Nascimento pelo Senado, como a mais alta condecoração dada pelo Legislativo àqueles que lutam pelas causas da negritude.

(Soa a campainha.)

    A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) – Essas são igualmente iniciativas que contribuem para o combate ao racismo e pela igualdade racial promovidas por pessoas e entidades da sociedade brasileira.

    Quero ressaltar, para finalizar, problemas atuais. Fui Presidente, Sr. Presidente, há pouco tempo, da CPI que investigou a morte de jovens no Brasil. A radiografia daquela CPI é absolutamente chocante em relação à situação da juventude negra do nosso País. São mais de 50 mil jovens que são assassinados por ano no Brasil; destes, mais de 80% são jovens negros. Nós estamos finalizando, na gráfica, o relatório para que possamos, juntamente com o Relator, o Senador Lindbergh, entregar ao Supremo Tribunal Federal e ao Ministério Público Federal o resultado desses debates e dessas investigações.

    Durante os trabalhos da CPI, nós pudemos constatar que um jovem negro é morto a cada 23 minutos no Brasil. Dados divulgados pelo IBGE da Anistia Internacional e da Secretaria de Segurança Pública mostram que os negros são 76% dos mais pobres, o que significa dizer que três em cada quatro pessoas que estão no grupo dos dez mais pobres são negras. Essa população possui renda média 2,5 vezes menor que a população branca e soma mais de 60% da população penitenciária. Há um processo fortíssimo de discriminação, com recrudescimento do racismo na sociedade brasileira, em particular, nas redes sociais e nos esportes de massa, a exemplo do futebol e do vôlei, em que os nossos atletas são xingados.

    Além disso, tem se ampliado, de forma perigosa, a intolerância religiosa em relação às religiões de matriz africana e seus adeptos, ensejando, inclusive, invasões e expulsões de regiões controladas pelo tráfico e agressões físicas aos adeptos dessas religiões. O nosso País é um País em que a Constituição garante a liberdade de culto. E é esta Constituição que precisa ser garantida ao povo negro e branco que pratica a religião de matriz africana.

    Como retrocessos, temos a reação dos setores conservadores aos avanços conquistados pelos negros. Em particular, nas Casas Legislativas, surge com muita força a discussão da redução da maioridade penal, sem que se discuta em que população vão incidir as consequências dessa redução da maioridade penal.

    Outro aspecto importante a ser ressaltado é que tem havido uma convivência – ora sutil, ora explícita – dos mais variados setores dos Poderes constituídos – no Legislativo, no Executivo, no Judiciário –, ao desclassificar manifestações da condição de racismo para a famigerada injúria racial, promovendo, assim, a impunidade.

    Diante disso, meus amigos e meus companheiros, nós temos que resistir e estabelecer a nossa nova agenda de luta.

    Na próxima terça-feira, tenho notícias que será lançado aqui, em Brasília, um novo Fórum Permanente das Entidades do Movimento Negro do Brasil, que se reorganizou para, com uma pauta nova e antiga, garantir a aplicação daquilo que nós já conquistamos na lei no nosso País e pôr adiante uma pauta de novos avanços na luta contra o preconceito.

    Eu destaco algumas delas e finalizo: políticas de permanência dos cotistas nas universidades, com o objetivo de consolidar uma classe média negra intelectual, com vistas ao enfrentamento ideológica e cultural, visando estabelecer uma nova narrativa histórica para a presença negra no Brasil; a inclusão, no mercado de trabalho, de jovens negros, oriundos, muitos deles, das políticas de cotas no ensino superior; criação de políticas públicas no campo econômico para estimular os empreendedores e empresários negros; ocupação de espaços políticos, com o objetivo de defesa da legislação antirracista existente e ampliação de mecanismos de proteção à diversidade racial, religiosa e cultural da sociedade brasileira; luta pela redução da violência, em particular contra a juventude negra, por meio de políticas públicas de inclusão, de educação e cultura; inclusão de uma agenda específica das mulheres negras, em particular a luta contra o machismo e o empoderamento feminino negro; combate à intolerância religiosa em todos os campos – já temos o dia 21 de janeiro como o Dia Nacional de Luta Contra a Intolerância Religiosa e vamos torná-lo efetivo.

(Soa a campainha.)

    A SRª LÍDICE DA MATA (Bloco Socialismo e Democracia/PSB - BA) – Liberdade religiosa, liberdade de ter acesso à vida e dignidade à vida, é isso que exigem os negros do Brasil.

    Para finalizar, Sr. Presidente, diferente do que alguns analistas dizem – que Trump venceu nos Estados Unidos, porque a maioria branca não queria continuar sendo governada pela minoria negra –, no Brasil nós somos maioria, somos 52% da população, e... (Palmas.)

    ... isso não se reflete nas conquistas, no Parlamento, no Executivo, no Poder Judiciário, na participação em nenhum dos Poderes e nem nas oportunidades para o povo negro do nosso País.

    Muito obrigada. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/11/2016 - Página 7