Discurso durante a Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações acerca da crise de segurança pública que atinge o país, com destaque à situação do sistema prisional.

Autor
Antonio Carlos Valadares (PSB - Partido Socialista Brasileiro/SE)
Nome completo: Antonio Carlos Valadares
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA:
  • Considerações acerca da crise de segurança pública que atinge o país, com destaque à situação do sistema prisional.
Publicação
Publicação no DSF de 15/02/2017 - Página 110
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA
Indexação
  • ANALISE, CRISE, SEGURANÇA PUBLICA, SISTEMA PENITENCIARIO, PENITENCIARIA, LOTAÇÃO, TRAFICO, VIOLENCIA, CRIME, DEFESA, IMPLEMENTAÇÃO, MUTIRÃO, JUDICIARIO, CONSTRUÇÃO, PRESIDIO.

    O SR. ANTONIO CARLOS VALADARES (Bloco Parlamentar Socialismo e Democracia/PSB - SE. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o ano de 2017 começou marcado por uma sequência triste e lamentável de acontecimentos - de extrema violência - que mais uma vez chocaram o Brasil e o mundo e que refletem o verdadeiro flagelo que é o sistema prisional brasileiro. As rebeliões e os massacres ocorridos nos presídios lançam a atenção da opinião pública de volta aos velhos problemas de nossas unidades prisionais: superlotação, estruturas precárias e incapacidade de o Estado assegurar condições mínimas de dignidade àqueles que estão sob sua custódia.

    As rebeliões, planejadas de forma coordenada, revelam o domínio exercido pelo crime organizado sobre a dinâmica interna dos presídios e colocam em xeque o sistema de justiça criminal, impondo grandes desafios ao Estado brasileiro.

    A crise atual começou a desenhar-se em meados do ano passado, quando o PCC e o Comando Vermelho romperam um pacto que mantinham para a compra de drogas e armas em regiões de fronteira e entraram em conflito pelo domínio de redes de comercialização e distribuição de maconha e cocaína na América do Sul, bem como pelo controle rotas de tráfico dessas drogas para a Europa.

    As rebeliões recentes, nos presídios, somam 144 mortos. É mais que o massacre do Carandiru, ocorrido em 1992, quando 111 foram mortos.

    É possível evitar as rebeliões e as carnificinas de presos? Digo que sim, mas é preciso que algumas medidas sejam adotadas, conjugando esforços e reconhecendo a responsabilidade das três esferas de poder: Executivo, Legislativo e Judiciário.

    Investimentos emergenciais são necessários para que os presídios tenham uma estrutura mais adequada para separar os presos e disponham de equipamentos de segurança para o trabalho dos agentes penitenciários.

    O número de servidores por unidade prisional também deve ser ampliado - em geral está muito aquém do que recomenda o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que é um agente para cada cinco presos. O Ministério da Defesa colocou as Forças Armadas à disposição dos governadores. O Ministério da Justiça criou uma espécie de “Força Nacional” para as penitenciárias, que é o Grupo Nacional de Intervenção Penitenciária. São iniciativas importantes para ajudarem a debelar a crise, mas é fundamental que haja estrutura de pessoal capaz de agir não para apagar incêndios, mas para evitar que as tragédias aconteçam.

    A construção de novos presídios é necessária, sobretudo porque precisamos aliviar a superlotação carcerária, além de desativar as chamadas cidades-presídios, que têm dimensões que impedem qualquer tipo de controle pelos agentes estatais.

    O Presidente Michel Temer anunciou, em janeiro, a liberação de recursos do Fundo Penitenciário Nacional (Funpen) na ordem de R$ 800 milhões, para a construção de pelo menos uma penitenciária em cada estado, R$ 200 milhões para a construção de presídios federais e R$ 150 milhões para a instalação de bloqueadores de celulares em pelo menos 30% dos presídios de cada estado.

    Com isso, o Governo mostra liberará o saldo acumulado do Funpen e não realizará novos contingenciamentos dessas verbas, cumprindo o que determinou o STF na ADPF 347. Nessa importantíssima ação, a Corte reconheceu que existe um "quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais" no sistema penitenciário, "decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas". Para o STF, está caracterizado um "estado de coisas inconstitucional", cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária. Por isso, os recursos anunciados são importantes.

    Espero que esses recursos sejam efetivamente aplicados na construção de um outro modelo prisional. Para além da construção de unidades prisionais mais modernas, eles devem ser utilizados para garantir um mínimo de salubridade para o ambiente prisional. Há relatos de presos sem acesso, sequer, à água potável. Falta atendimento médico e, mesmo, acesso à saúde básica.

    Isso sem falar na carência de vagas para trabalho e estudo. O que podemos esperar de prisões que se encontram nessas condições?

    Sr. Presidente, a crise do sistema penitenciário não é novidade. As rebeliões de janeiro não são acontecimentos isolados ou pontuais. E por mais que destinemos recursos para a ampliação de vagas no sistema, não vamos conseguir resolver o problema, pois é o mesmo que atacar suas consequências e não suas causas. Ficaremos, sempre, "enxugando gelo".

    Ainda que tenhamos que construir novos presídios, para melhorar a qualidade geral das unidades, temos que reconhecer, assim como o fizeram, recentemente, os ministros Gilmar Mendes e Marco Aurélio Mello, que a causa da crise penitenciária é, em última instância, do "punitivismo do Estado", ou seja, é resultado de uma política de Estado que acredita no encarceramento como fórmula mágica para enfrentar a criminalidade.

    Esse é um raciocínio equivocado. Não apenas por contrariar princípios humanitários e conquistas civilizatórias, mas também porque não percebe que resulta no fortalecimento das facções do crime organizado, com reflexos, inclusive, no aumento da violência nas cidades.

    Também pelo viés econômico, o punitivismo não se sustenta. Se considerarmos que o déficit atual é de mais de 250 mil vagas no sistema prisional e que o custo médio para abrir uma nova vaga é de R$ 50 mil, precisaríamos R$ 12,5 bilhões para zerar o déficit. E, a cada ano, teríamos que construir 50 mil novas vagas (R$ 2,5 bilhões) para dar conta do ritmo de crescimento da população carcerária, que é de 8%, como veremos. Isso sem contar o custo de manutenção desses presos.

    Assim é que não há outro caminho a seguir senão construir um sistema mais racional, que pondere a necessidade de encarceramento com a perspectiva de eficácia dessa medida extrema, reservando a prisão àqueles que realmente não são capazes de permanecer no convívio social - os que cometem crimes violentos e os que causam grandes prejuízos à coletividade. Há alternativas e elas precisam ser consideradas.

    No Brasil, prendemos muito e prendemos mal.

    O país tem a 4ª maior população carcerária do mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. E o que mais preocupa é a tendência histórica de crescimento. Em um período de dez anos, entre 2005 e 2014, a população carcerária saltou de 361.402 para 622.202 pessoas presas, um crescimento médio de 8% ao ano (no mesmo período, a população total do país cresceu, em média, menos de 1% ao ano), segundo dados oficiais. Se esse ritmo se manteve nos anos de 2015 e 2016, é possível que a população carcerária já tenha chegado a mais de 720 mil pessoas. Portanto, seria correto dizer não só que "prendemos muito", mas que "prendemos muito mais a cada ano".

    Tínhamos um déficit de 250 mil vagas no sistema prisional do país, em 2014. Temos aproximadamente 1,7 presos para cada vaga. O Estado do Amazonas, onde houve a rebelião com 56 mortos, tem a maior superlotação, com mais de 3 presos para cada vaga. Em Sergipe, são mais de 2 presos por vaga. O Estado precisaria mais que dobrar o número de vagas, para zerar o déficit.

    A política de encarceramento em massa, todavia, não gerou uma melhoria nos índices de violência e criminalidade em geral. Pelo contrário, fortaleceu as facções do crime organizado, favoreceu a arregimentação de novos criminosos e tornou o sistema mais caro e menos ineficaz na recuperação dos condenados.

    Segundo o 10º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 9 minutos morre uma pessoa vítima de violência, no país. Entre 2011 e 2015, o Brasil teve mais mortes violentas do que a Síria em guerra, no mesmo período. Enquanto lá foram verificadas 256 mil mortes violentas, aqui foram registradas quase 279 mil ocorrências de mortes causadas por homicídio, latrocínio, lesão corporal ou por ações policiais.

    Sergipe, de acordo com as estatísticas, tornou-se o Estado mais violento do Brasil, com o lamentável índice de 57,3 mortes violentas intencionais para cada grupo de 100 mil habitantes. Por essas, razões, Sergipe é um dos Estados escolhidos pelo governo federal para o início do Plano Nacional de Segurança Pública. Ele começará por onde os governos estaduais vêm fracassando nas políticas de segurança pública.

    Sr. Presidente, quando digo que, no Brasil, prende-se mal, refiro-me, por exemplo, à enorme quantidade de presos provisórios no sistema: 40% da população carcerária não tem contra si uma condenação judicial. Não é um número razoável.

    Aqui chegamos às medidas que devem ser adotadas pelo Poder Judiciário e pelo Poder Legislativo.

    De imediato, é preciso que o Judiciário organize mutirões carcerários, a fim de verificar a situação de presos que já poderiam ter saído em liberdade ou semiliberdade. Por exemplo: libertar condenados que já cumpriram suas penas mas continuam encarcerados; conceder progressão de regime para aqueles que já cumpriram os requisitos legais; avaliar a situação de presos provisórios que poderiam cumprir uma medida cautelar alternativa à prisão, como o uso da tornozeleira eletrônica.

    Também é fundamental que o Judiciário aplique, com rigor, lei das medidas cautelares, que é de 2011, e faz da prisão preventiva uma opção apenas quando as medidas alternativas, como o uso de tornozeleira ou restrições de direitos, mostrarem-se insuficientes.

    A lei das cautelares penas será mais efetiva quando o Judiciário disseminar a realização as audiências de custódia em todas as varas judiciais que tratam de processos penais no país. Além de prevenir torturas e prisões ilegais, a apresentação do preso ao juiz, sem demora, serve para aplicação, imediata, de medidas cautelares. Ao ter contato pessoal com o preso, o juiz tem melhores condições de avaliar se é o caso de mantê-lo preso, preventivamente, ou de aplicar medidas alternativas à prisão.

    A experiência tem se mostrado bem-sucedida onde já está em funcionamento. Isso sem impor riscos à segurança pública, o que se comprova pelo índice de reincidência de quem passou por uma audiência de custódia. No Rio de Janeiro, por exemplo, a reincidência de pessoas que saíram em liberdade, na audiência de custódia, é de apenas 1,4%, segundo dados divulgados pelo CNJ.

    O que ainda precisa ser feito em relação às audiências de custódia? Elas precisam se tornar lei, para que passem a ser realizadas em todas as cidades do país. Até agora, a prática ocorre em capitais e grandes cidades, em razão de um projeto iniciado, em 2015, pelo CNJ, pelo Ministério da Justiça e pelos Tribunais de Justiça dos Estados. Por isso, é fundamentai que a Câmara dos Deputados aprove, com brevidade, o PLS 554, que apresentei no ano de 2011 e foi aprovado pelo Senado, como uma das medidas necessárias ao enfrentamento da crise carcerária. O projeto cria a audiência de custódia no processo penal e obriga sua realização em todas as varas e sessões judiciárias do país.

    Sr. Presidente, precisamos chamar a atenção de todos para a parcela da responsabilidade que recai sobre o Poder Legislativo.

    Uso como exemplo a lei de drogas, de 2006. Apesar de ter retirado a pena de prisão para usuários de drogas, ela é apontada como responsável por ter aumentado em quase seis vezes o número de pessoas presas por crimes relacionados a drogas, em um período de doze anos.

    Esse salto ocorreu porque a lei endureceu as penas aplicáveis aos traficantes e não ofereceu critérios objetivos para diferenciar o grande do pequeno traficante, nem o pequeno traficante do simples usuário de drogas - a lei não estabeleceu, por exemplo, qual a quantidade de drogas que uma pessoa deve portar para ser considerada um pequeno ou grande traficante. No Projeto de Lei da Câmara nº 37, de 2013, procuramos dar um passo, buscando diferenciar o usuário do traficante, no substitutivo que apresentei como relator e que recebeu aprovação da CCJ. Mas o projeto segue sua tramitação pelas comissões e o debate continua aberto.

    De acordo com o padre Valdir João Silveira, coordenador da Pastoral Carcerária, os presos são cada vez mais pobres e mais jovens. Muitas vezes entram nos presídios primários (sem antecedentes) e sem terem praticado crimes com violência, mas logo são cooptados pelas facções e passam a integrar o exército dos grupos criminosos. Não é à toa que os presídios são chamados de "escolas do crime".

    Devemos, portanto, chamar a atenção para a responsabilidade do Poder Legislativo. O Congresso Nacional precisa comprometer-se com políticas de segurança pública baseadas em evidências empíricas, sopesando com muito cuidado as consequências de suas decisões legislativas, especialmente quando quer criar novos tipos penais, aumentar penas e agravar o regime de progressão. Deve exigir a apresentação de estudos de impacto legislativo, na instrução dessas propostas.

    Deve pensar alterações legislativas que reservem a prisão para os crimes violentos ou que causem danos significativos à coletividade. Para crimes não violentos ou de pouca repercussão na vida social, seria muito mais efetivo adotar, como regra, ao invés do encarceramento, medidas alternativas à prisão como monitoramento eletrônico, restrições de direitos, multas, participação em atividades educacionais e reparação do dano como medida de extinção da punibilidade.

    Vale lembrar que 55% da população carcerária tem entre 18 e 29 anos e 60% são analfabetos ou não chegaram a completar o ensino fundamental. Para esses jovens, a pena imposta pela prática de crimes patrimoniais não violentos, mais que voltar-se à repressão de um erro cometido no passado, deveria mirar seu foco nos efeitos que poderá causar em suas vidas, no futuro.

    Sr. Presidente, desejo que, um dia, o Estado brasileiro possa dizer que, aqui, o sistema prisional é eficaz na recuperação e reinserção social de detentos. Esse é, certamente, um horizonte distante. O cenário que temos, hoje, chega a ser paradoxal: o sistema, que deveria recuperar detentos, mais contribui para que eles ingressem e reforcem seus laços na criminalidade.

    O Plano Nacional de Segurança Pública, lançado pelo Ministério da Justiça em meio à crise do sistema prisional, é uma iniciativa importante.

    Considero que também são necessárias políticas públicas de longo prazo, estruturantes, como diz o STF, para debelar o "estado de coisas inconstitucional" em que o sistema penitenciário se encontra.

    Precisamos estar democraticamente abertos à participação e às recomendações de entidades da sociedade civil (a Pastoral Carcerária, por exemplo, que há tanto tempo presta serviços da maior importância nesse setor), da OAB, da ONU, do CNPCP, do Poder Legislativo e do Judiciário.

    Somente com a conjunção de esforços o poder público poderá oferecer soluções satisfatórias à sociedade brasileira.

    Com esses esforços, o Estado brasileiro poderá retomar o controle sobre a rotina e a dinâmica interna dos presídios, será capaz de superar a cultura do encarceramento em massa e promoverá as condições necessárias para que a pena criminal cumpra função de ressocializar os condenados, preparando-os para o reingresso no convívio social.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/02/2017 - Página 110