Pela Liderança durante a 54ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre o direito às cotas raciais.

Autor
Randolfe Rodrigues (REDE - Rede Sustentabilidade/AP)
Nome completo: Randolph Frederich Rodrigues Alves
Casa
Senado Federal
Tipo
Pela Liderança
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS E MINORIAS:
  • Comentários sobre o direito às cotas raciais.
Publicação
Publicação no DSF de 03/05/2017 - Página 109
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS E MINORIAS
Indexação
  • COMENTARIO, DIREITO, SISTEMA, COTA, OBJETIVO, IGUALDADE RACIAL, HIPOTESE, INGRESSO, NEGRO, UNIVERSIDADE, RESPEITO, PRINCIPIO CONSTITUCIONAL, IGUALDADE, CRITICA, REFORMULAÇÃO, LEGISLAÇÃO TRABALHISTA, MOTIVO, AUSENCIA, JUSTIÇA DO TRABALHO, LEITURA, TRECHO, VOTO, AUTORIA, RICARDO LEWANDOWSKI, MINISTRO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), REFERENCIA, MATERIA, DESAPROVAÇÃO, DECISÃO, JUSTIÇA FEDERAL, ESTADO DO AMAPA (AP), OBJETO, SUSPENSÃO, APLICAÇÃO, LEGISLAÇÃO, RAÇA, PEDIDO, DESTINATARIO, TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL (TRF), ASSUNTO, ALTERAÇÃO, SENTENÇA JUDICIAL.

    O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/REDE - AP. Como Líder. Sem revisão do orador.) – Nobre Senador Elmano Férrer, que preside esta sessão; os meus cumprimentos também às Srªs Senadoras, aos Srs. Senadores, em especial ao meu colega de Bancada, Senador Davi Alcolumbre, e ao colega Deputado André Abdon, que nos visita neste momento.

    Dizem, Presidente Elmano, que o Deputado André está se acostumando com essas cadeiras azuis aqui do Senado, já próximo da eleição do ano que vem – não é, Deputado André?

    O SR. PRESIDENTE (Elmano Férrer. PMDB - PI) – Quem vai ceder o lugar para ele?

    O SR. RANDOLFE RODRIGUES (Bloco Socialismo e Democracia/REDE - AP) – É que um dos Senadores aqui será Governador, e não serei eu, Presidente. Então, já declino, porque essa disputa caberá ao meu caro colega Davi Alcolumbre.

    Sr. Presidente, senhoras e senhores, eu lamento ter que vir à tribuna tratar de um tema que eu esperava já superado no debate brasileiro, o tema do chamado direito às cotas, que eu considero uma conquista civilizatória por parte do Direito brasileiro, por parte da sociedade brasileira.

    As cotas, e em especial as cotas raciais, se tornaram conquista institucional, à luz da Lei 12.711, de 2012, que instituiu, em especial nas instituições federais de ensino, nas universidades federais, o direito ao povo negro de ter acesso às universidades, através da chamada Lei de Cotas.

    Mais do que uma lei que assegura um direito, ela é a interpretação do caput do art. 5º da Constituição, Sr. Presidente.

    A Constituição de 1988, no caput do art. 5º, estabelece um princípio fundador da nossa República, o princípio da igualdade jurídica, que diz que todos são iguais perante a lei.

    Entretanto, Sr. Presidente, esse princípio da igualdade jurídica que está expresso no art. 5º da Constituição não é somente um legado do texto da Carta Magna de 1988. É mais que isso. Ele é um legado das democracias liberais, surgidas no mundo a partir da Revolução Inglesa, da Revolução Americana e da Revolução Francesa. Uma das conquistas elementares das democracias liberais foi esse princípio da igualdade jurídica, de que todos são iguais perante a lei. Sobre essa igualdade jurídica, as próprias democracias liberais avançaram para compreensão de que ela, como está nos textos constitucionais, era apenas igualdade jurídica formal. Ela, mais do que igualdade jurídica formal, teria que ser transformada e evoluída para igualdade material, igualdade fática.

    Ela, ao se elevar para igualdade fática, torna-se esse princípio que dá origem ao direito do trabalho, que tem sido questionado pelo Governo Temer... Aliás, tem sido aviltado pelo Governo Temer, com a reforma trabalhista. De todos os pecados da reforma trabalhista, o mais grave é que ele omite a existência da Justiça do trabalho no seu princípio elementar e primeiro. A Justiça do trabalho existe pela compreensão e pelo princípio da existência de uma parte mais fraca chamada de trabalhador.

    Só existe Justiça do trabalho porque a parte mais fraca, dita no juridiquês de hipossuficiente, precisa da proteção do Estado. É o princípio que rege a origem do direito do consumidor. Só existe, Presidente Dário, direito do consumidor porque, na relação entre consumidor, entre aquele que oferece o bem de consumo e o consumidor, existe uma parte mais forte, que é daquele que oferece o bem de consumo, e uma parte mais fraca, que é daquele que adquire o bem de consumo, o consumidor. Por isso é que existe o direito do consumidor.

    Ou seja: o nosso Direito evoluiu, para compreender que o art. 5º da Constituição estabelece uma igualdade jurídico-formal, quando simplesmente proclama que todos são iguais perante a lei, e que é necessária a evolução dessa igualdade jurídico-formal para a igualdade material e fática.

    E como se faz a evolução da igualdade jurídico-formal para a igualdade material fática? Quando, derivado do art. 5º da Constituição e dessa compreensão, surge o Direito do Trabalho reconhecendo a parte mais frágil, o trabalhador, surge o Direito do Consumidor, reconhecendo a parte mais frágil, o consumidor, e surge a necessidade de políticas de cotas raciais para a inclusão daqueles que historicamente foram excluídos da sociedade. É por isso. O nosso Direito já evoluiu, já avançou para assim entender sobre o princípio regulamentador da lei de cotas. É a interpretação do art. 5º, com a belíssima poesia que diz: "O princípio do art. 5º é tratar os desiguais desigualmente na medida em que se igualam". Se o Estado brasileiro tratasse os desiguais igualmente na medida em que estão desigualados, produziria desigualdade. Esse é um princípio consagrado na Constituição e consagrado, inclusive, pelo Supremo Tribunal Federal.

    Faço questão, Sr. Presidente, de destacar o voto do Ministro Ricardo Lewandowski no julgamento sobre a chamada lei de cotas no Supremo Tribunal Federal. Naquela ocasião, S. Exª muito bem definiu a necessidade da lei de cotas da seguinte forma – abro aspas:

As ações afirmativas, portanto, encerram também um relevante papel simbólico. Uma criança negra que vê um negro ocupar um lugar de evidência na sociedade projeta-se naquela liderança e alarga o âmbito de possibilidades de seus planos de vida. Há, assim, importante componente psicológico multiplicador da inclusão social nessas políticas.

A histórica discriminação dos negros e pardos, em contrapartida, revela igualmente um componente multiplicador, mas às avessas, pois a sua convivência multissecular com a exclusão social gera a perpetuação de uma consciência de inferioridade e de conformidade com a falta de perspectiva, lançando milhares deles, sobretudo as gerações mais jovens, no trajeto sem volta da marginalidade social. Esse efeito, que resulta de uma avaliação eminentemente subjetiva da pretensa inferioridade dos integrantes desses grupos repercute tanto sobre aqueles que são marginalizados como naqueles que, consciente ou inconscientemente, contribuem para sua exclusão.

    Presidente Dário, o que o Ministro Lewandowski proclamou quando emitiu esse brilhante voto em julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a lei de cotas foi que, além do papel de inclusão social, além de reconhecer historicamente a discriminação dos negros, a lei de cotas tem um papel psicológico de inclusão, a lei de cotas tem um papel redentor, na medida em que cria para as gerações que virão a consciência de que elas podem ascender socialmente.

    Lei de cotas, acesso às universidades pela lei de cotas não é favor do Estado brasileiro. É direito conquistado por anos de senzala, por anos de discriminação, por anos de escravidão a que o povo negro, a que o povo preto foi submetido em nosso País, colocado e trazido sob o jugo da escravidão, dos porões dos navios negreiros da África, transladado para cá, retirado de sua terra, tendo sua identidade mutilada. É um reconhecimento histórico de que esse povo tem que ser tratado com a possibilidade de acesso: acesso à universidade, acesso às políticas públicas, porque historicamente foi discriminado.

    Sr. Presidente, faço esse preâmbulo para trazer mais uma vez uma discussão que deveria ser superada, superada neste Parlamento, superada no Judiciário brasileiro, pela decisão do Supremo Tribunal Federal, superada em qualquer outro âmbito de discussão, porque me parece, trazida pelos ventos do retrocesso que têm sido esses tempos de Governo Temer até agora, que uma conquista do povo brasileiro, que é a lei de cotas, começou a ser questionada.

    Recentemente, a Justiça Federal do meu Estado, em primeira instância, tomou uma decisão suspendendo a aplicação do Edital nº 2, de 2017, que reservava metade das vagas da Universidade Federal do Amapá para alunos cotistas, como determina a lei.

    Um dos orgulhos que nós temos no Amapá é que a nossa universidade federal foi uma das primeiras a adotar a lei de cotas, a aplicar a lei de cotas. Isso é motivo de orgulho, principalmente para um Estado que, proporcionalmente, é o terceiro Estado negro, é o terceiro Estado preto do País. É esse um motivo de orgulho para todos nós. A nossa universidade adotou, até antes da adoção por parte da lei nacional.

    Lamentavelmente, uma decisão da Justiça Federal em primeira instância suspendeu a aplicação do Edital nº 02, da Universidade Federal, e coloca em xeque na nossa universidade federal a própria aplicação da lei de cotas.

    A Unifap, quando publicou esse edital, estava claramente agindo em prol do interesse público, em prol do interesse público e do interesse social. A Unifap cumpria uma determinação do Parlamento, do Estado brasileiro, quando aprovou a Lei nº 12.711.

    Lamentavelmente, não vejo justificável, e sou do princípio... Como também sou do Direito, eu sou o primeiro a adotar o princípio de que decisão judicial se cumpre e se recorre. Decisão judicial não se questiona. Mas, ao mesmo tempo que decisão judicial pode não ser questionada, tem que ser recorrida, ela deve ser lamentada. Essa decisão da Justiça Federal de primeira instância do meu Estado tem que ser totalmente lamentada. Eu não aceito. E quero acreditar que a Justiça Federal vai seguir a lógica do que já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, com votos como esse que acabei de destacar aqui, do Ministro Ricardo Lewandowski.

    Existe um recurso por parte da Universidade Federal do Amapá, pendente de decisão junto ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Eu rogo desta Tribuna ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região que, o quanto antes, reforme essa decisão da Justiça Federal de 1ª instância, restabeleça a Justiça, restabeleça o cumprimento da Lei nº 12.711 e, mais do que isso, restabeleça, na Universidade Federal do meu Estado, o cumprimento da Constituição, porque é o Direito brasileiro, é este Parlamento que já entendeu que se tratam os desiguais desigualmente na medida em que se igualam, que essa é a interpretação do art. 5º. É o Direito brasileiro que evoluiu para entender que a igualdade jurídica formal já é uma etapa superada da nossa formação enquanto República, enquanto estado democrático de direito, e que nós já vivemos a égide da igualdade material. É por isso que temos, repito, Direito do Consumidor e Direito do Trabalho, embora o Governo do Senhor Temer queira subjugá-lo de vez, encaminhando para o Congresso reformas que derrogam o Direito do Trabalho, como é o caso da reforma trabalhista.

    É o caso de aqui dizer que leis como a lei de cotas são leis consagradas pelo Direito brasileiro como sucedâneo cumpridor do princípio da igualdade material do art. 5º.

    Portanto, Sr. Presidente, venho a esta tribuna e rogo ao Tribunal Regional da 1ª Região que reforme o quanto antes a decisão da Justiça Federal de 1ª instância do meu Estado, que reforme essa decisão em respeito inclusive ao povo amapaense, que tem muito orgulho de ser o terceiro... Aliás, não só temos muito orgulho de ser o terceiro Estado do País em população negra, como temos muito orgulho de que o principal símbolo... Os meus colegas Parlamentares André e Davi sabem disso. Temos muito orgulho de que o principal símbolo cultural e histórico do nosso Estado seja uma manifestação cultural trazida da África, atravessando o Atlântico e sobrevivendo, em toda a América, somente no Amapá. O Marabaixo é a manifestação cultural símbolo do nosso Estado. E temos orgulho de dizer que o tambor do Marabaixo só toca em nosso Estado, legatário da tradição negra.

    É por isso, é em nome desse legado, é em nome dessa cultura, é em nome dessa entidade que eu faço um clamor desta tribuna ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região para reformar a decisão da Justiça Federal do meu Estado.

    Além disso, eu diria que está em xeque, com essa decisão da Justiça Federal do meu Estado e com a decisão do Tribunal Regional Federal, a própria continuidade da política de cotas, a primazia da Constituição Federal, a primazia da Lei nº 12.711, que, como eu já disse, foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, vide o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 186, a ADPF 186, na qual foi reconhecida essa lei como constitucional.

    Por isso, na data de hoje, movimentos sociais negros, não negros, estudantes, acadêmicos e a sociedade civil do meu Estado estão realizando um ato público em favor da política de cotas.

    Eu diria, Sr. Presidente, que, a essa altura, esse ato público organizado pela comunidade acadêmica da minha Universidade Federal não é somente em favor da política de cotas. Esse ato público é em favor da Lei nº 12.177, aprovada neste Parlamento. Esse ato público é em favor da Constituição e é a favor de um tema que já foi superado pelo Supremo Tribunal Federal.

    Termino, Sr. Presidente, acreditando na Justiça brasileira, na Justiça Federal do meu País e acreditando que, o quanto antes, o Sr. Desembargador que for escolhido como relator desta matéria no Tribunal Regional Federal reformará essa decisão, porque ela é em si absurda e atinge de morte um princípio de evolução do nosso Direito. O nosso Direito evoluiu da igualdade jurídico-formal para a igualdade material. E não é possível, em nosso País, tolerarmos um retrocesso sequer. Não é possível. Eu não posso aceitar no nosso País que retrocessos e agressões sejam banalizados e tratados como normais. É como diz a letra de uma poesia de um dos melhores poetas brasileiros, que é Flávio Venturini: "Não se pode aceitar que qualquer sacanagem se torne algo normal".

    Nós não podemos aceitar como normal que um jovem na luta pelos seus direitos, como é o caso de Mateus, seja agredido, estar entre a vida e a morte semana, isso ser banalizado como algo normal e ninguém se revoltar contra isso. Se nós aceitarmos isso, vamos aceitar violência contra manifestações. Se aceitarmos isso, daqui a pouco nós refutaremos que o direito de manifestação seja realidade.

    Não posso aceitar que a legislação trabalhista do nosso País, conquista de um tempo em que este Brasil tinha um projeto de nação, seja aviltada. Não posso aceitar que conquistas civilizatórias do nosso Direito e da sociedade brasileira sejam jogadas no lixo, como é o caso da lei de cotas.

    Termino mais uma vez apelando para a Justiça Federal o quanto antes reformar essa decisão da Justiça Federal de 1ª instância do meu Estado.

    Agradeço, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/05/2017 - Página 109