Discurso durante a 58ª Sessão Especial, no Senado Federal

Sessão especial destinada a celebrar a passagem do ducentésimo ano da Revolução Pernambucana de 1817.

Autor
Cristovam Buarque (PPS - CIDADANIA/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM:
  • Sessão especial destinada a celebrar a passagem do ducentésimo ano da Revolução Pernambucana de 1817.
Publicação
Publicação no DSF de 09/05/2017 - Página 12
Assunto
Outros > HOMENAGEM
Indexação
  • SESSÃO ESPECIAL, OBJETIVO, CELEBRAÇÃO, ANIVERSARIO, CENTENARIO, REVOLUÇÃO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Socialismo e Democracia/PPS - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Bom dia! Bom dia a cada uma e a cada um! Quero cumprimentar inicialmente o Senador Humberto Costa, que teve a iniciativa – e o parabenizo por isso – de fazer esta sessão solene pelos 200 anos da Revolução Republicana de nosso Pernambuco. Cumprimento também o Sr. José Luiz Mota Menezes, de quem assisti a uma belíssima palestra, algum tempo atrás, em que ele recuperou a arquitetura daquela época – um belo trabalho de arqueologia arquitetônica e urbanística; o Sr. George Félix Cabral de Souza, que é Presidente do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco; Luiz Carlos Villalta, professor do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais; meu professor Vamireh Chacon, membro da Academia Pernambucana de Letras e professor emérito da Universidade de Brasília; Paulo Santos de Oliveira, escritor pernambucano; o Sr. Leonardo Dantas Silva, historiador e consultor do Instituto Ricardo Brennand, que honra Pernambuco; o Sr. Flávio José Gomes Cabral, doutor em História e coordenador do Departamento de História da Universidade Católica de Pernambuco; todos os presentes. Não posso deixar de citar também o Primeiro Secretário da Embaixada da República da Costa do Marfim, o representante do Governador do Piauí e a Deputada Federal pelo Estado de Pernambuco, Creuza Pereira.

    O que significava república 200 anos atrás? Duas coisas fundamentais: independência do Brasil e escolha do dirigente nacional pelo povo. Dois sonhos utópicos de um grupo de sonhadores desvairados que pensavam o que parecia absolutamente impossível: um país da América Latina, o Brasil, independente de Portugal. Já havia movimentos nesse sentido, mas era uma ideia muito distante. Agora, além de ser república e não continuar sendo monarquia, era um sonho muito ousado. É certo que no resto das Américas já se havia conseguido república: nos Estados Unidos já havia; na América Latina, havia em diversos países – Bolívar já estava em plena atividade; mas, no Brasil, era um sonho desvairado. Eram tão fortemente enlouquecidos, como tinha sido Tiradentes, que foram mortos. Deram a vida. E o que é ser republicano hoje? Creio que essa reflexão, meu caro Humberto Costa, é a melhor homenagem que podemos fazer àqueles nossos conterrâneos de 200 anos atrás, que deram a vida.

    Sem ordem de importância no que vou colocar como itens que definiriam um ser republicano de hoje, eu começaria dizendo que tem que ser um humanista, mas um humanista no sentido global, no sentido da humanidade inteira. Não é mais tempo de republicano prisioneiro do seu grupo nacional apenas; não é mais, a meu ver, republicano quem foi isolacionista em relação ao resto do mundo. Ser republicano, no mundo de hoje, exige ser participante da humanidade inteira. Para isso, outro item que deve caracterizar ser republicano é a solidariedade em terra nacional. Não é republicano quem quer uma república e não deixa os imigrantes entrarem nela. Não é plenamente republicano. O republicano é aquele que é capaz de aceitar o desafio de incorporar, nas fronteiras da sua república específica, os seres humanos de onde forem, que precisam de uma pátria, que precisam de um lugar. A solidariedade internacional é uma condição necessária para ser republicano.

    Lembrem-se de que os nossos republicanos – o Prof. Menezes pode dizer se estou certo errado – de 1817 conviviam com escravocratas. Havia escravocratas entre eles. Hoje, não se pode imaginar alguém republicano que não seja capaz da solidariedade de reconhecer o direito de cada ser à liberdade, de cada ser ao seu trabalho, de cada ser à sua educação, de cada ser à saúde. Não é republicano. Não é republicano quem não lutar pela distribuição igualitária de, pelo menos, educação e saúde. Até que podemos aceitar – não vejo problema ético nenhum – a desigualdade na roupa, a desigualdade até mesmo no transporte, mas a desigualdade no acesso à educação, a desigualdade no acesso à saúde, essas desigualdades negam a república. Não é republicano aquele que não luta pela igualdade plena no acesso à educação e no acesso à saúde. 

    Claro que, depois, uns têm mais saúde que outros, seja pela natureza, pelo DNA, seja pelos cuidados com a sua vida, mas o acesso tem que ser igual. Claro que uns se educam mais do que outros, seja pelo talento, pela persistência, pela vocação intelectual, mas o acesso tem que ser igual. Ser republicano é defender a igualdade plena no acesso à educação e à saúde.

    Ser republicano, a meu ver, é ter austeridade republicana. Não é republicano um País que não dá saneamento e faz palácios, seja com recursos públicos, seja com recursos privados também, construindo palácios no lugar de atender à habitação popular, no lugar de atender ao saneamento. Não é republicano o País que faz palácios quando ainda não há casas para todos. Por isso, nós não somos ainda plenamente republicanos. Não é à toa que, aqui, o lugar onde moram os Presidentes e os governadores chama-se "palácio". Nos Estados Unidos, chama-se "casa". Nós não somos ainda plenamente republicanos, porque continuamos com edificações suntuosas em diversos setores públicos, quando, ao redor, não há ainda água e esgoto.

    Não é republicano o País onde a política não se faz com ética. A corrupção nega a república. A corrupção é uma característica natural dos impérios antigos, porque, no mundo de hoje, se formos olhar os países onde há mais ética na política, como os países do norte da Europa, veremos que há reis, como é o caso da Suécia, mas eles são mais republicanos, a meu ver, do que nós, que ainda temos essa maldade imperial de ter palácios antes das casas.

    Para mim, não é republicano o sistema que não compreende que a gratuidade é paga pelo povo, e, por isso, às vezes, ela é injusta. Nós nos acostumamos a defender que as coisas sejam todas gratuitas, esquecendo-nos de que alguém paga por elas e que, nem sempre, quem se beneficia delas é o povo que paga. Temos que defender a gratuidade para que os filhos do povo adentrem os serviços gratuitos, mas temos que lembrar que o povo está pagando por serviços públicos que servem mais a quem tem acesso a eles por influência, e até por dinheiro, do que o povo em geral. A República exige que saibamos que tudo que é gratuito é pago pelo povo e, por isso, deve servir ao povo.

    Não é republicano, para mim, o sistema em que serviços públicos são privatizados e deixam de servir ao público. Mas aqui é preciso lembrar que há duas formas de privatização não muito visíveis. Quando a gente vende um sistema de água potável para uma empresa, é bem visível; mas há uma outra: quando a gente entrega um serviço de água potável aos funcionários daquela empresa estatal, mas que não é pública, porque não serve ao público.

     Nem tudo que é estatal é republicano. Uma república moderna tem-se de entender que ser república é servir ao público, como diz o próprio nome: res publica. Não servir ao público não é republicano, mesmo que seja estatal.

    E hoje sabemos que muitos serviços, no Brasil, foram privatizados por pessoas, por grupos, por corporações, por sindicatos, e passaram a servir aos funcionários mais do que aos usuários. Isso não é republicano.

    Para ser republicano, é preciso a gente colocar, hoje, o sentimento de equilíbrio ecológico. Não dava para imaginar, em 1817, aqueles nossos conterrâneos desvairados – uso "desvairados" no sentido positivo – pensando no equilíbrio ecológico. Mas hoje, no tempo em que as ferramentas que o homem fez são capazes de mudar o clima, são capazes de inundar áreas, são capazes de acabar com geleiras, danificar a agricultura... No tempo de hoje, um republicano não pode ficar preso só ao presente; tem que olhar a longo prazo. Não pode ficar preso só à produção; tem que olhar o equilíbrio ecológico.

    Eu quero concluir, meu caro Humberto, dizendo que, no século XXI, ser republicano exige – e V. Exª tocou nisto em seu discurso – absoluto compromisso com liberdade de opiniões, de imprensa, de credo.

    Não é republicano um sistema que tolera corrupção, seja no comportamento dos políticos, seja nas prioridades das políticas. E aqui a gente esquece que, muitas vezes, existe uma corrupção que a gente não percebe, que é a de fazer uma obra sem roubo, para o bolso do político, mas que não serve ao povo, usando dinheiro público. É corrupção usar dinheiro público para fazer obras que não interessam ao povo e não o beneficiam, mesmo que o político ou dirigente não fique com a propina. Existe a corrupção no comportamento, mas existe a corrupção nas prioridades. E a república exige a ética nos dois.

    Não é republicano um País que tem uma das colocações mais elevadas na concentração de renda. Não conseguiremos dizer que isto aqui é uma república, enquanto tivermos uma concentração de renda tão vergonhosa como a que temos no Brasil. A distribuição de renda tem que ser um propósito fundamental da república, 200 anos depois daqueles pernambucanos.

    Finalmente, eu creio que o resumo de tudo isso é que não é republicano um País onde o filho do rico tem uma escola melhor do que o filho do pobre. E, nesse sentido, as monarquias do norte da Europa são mais republicanas que o Brasil.

    O grande lema, hoje, da república deveria ser: o filho do pobre na mesma escola do filho do rico. E que pelo talento, pela persistência, pela vocação, pelo esforço, se diferenciem. Deixem surgir suas diferenças, deixem surgir e realizar suas desigualdades – mas não pela herança. A herança não é republicana. A herança é intelectual, porque compra a escola de qualidade. Por isso, eu resumo dizendo: ser republicano, hoje, é ser educacionista. Ser republicano, hoje, é ter como bandeira que não haverá desigualdade no acesso à escola por causa da renda dos pais ou por causa da localização. Ser republicano é não ter nem CEP, nem CPF, para definir a qualidade da escola de uma criança: o CEP de onde mora, o CPF dos pais. Por isso, do mesmo jeito que aquele desvairados defendiam uma república, quando todo mundo imaginava império, e defendiam independência, quando todo mundo imaginava que continuaríamos colônia, eu continuo insistindo: ser republicano, hoje, é defender que a educação de base seja uma questão nacional, e não municipal, não estadual, porque aí as desigualdades continuarão.

    Ser republicano é querer uma escola republicana em todo o Território e a serviço de todos os brasileiros, não importa a renda dos pais nem a cidade onde mora.

    Eu creio que essa é uma proposta, um sonho. Outros devem existir. E temos, hoje, um bom momento para lembrar daqueles pernambucanos, graças à iniciativa do Senador Humberto Costa, a quem eu agradeço, concluindo.

    Muito obrigado, Senador Humberto Costa, por trazer aqueles pernambucanos, nossos conterrâneos, para esta tribuna, este plenário, lembrando-se do esforço deles, da luta deles, dos sonhos deles, da coragem deles, e lembrando que eles deixaram ainda muita coisa para nós fazermos, como ser republicanos nos tempos de hoje, com as características que ser republicano significa hoje, como eu coloquei que é a minha maneira: com solidariedade internacional, reconhecendo a necessidade de proteger a ecologia, garantindo educação e saúde igual para todos, a liberdade plena de expressão de imprensa, a ética na política. Isso é ser republicano hoje; isso é dar continuidade aos sonhos daqueles velhos, que deram a vida lutando para que o Brasil fosse uma república e que nos deixaram ainda a tarefa de construir esta República, que ainda não está feita.

    Muito obrigado, Senador Humberto Costa.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/05/2017 - Página 12