Discurso durante a 170ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Preocupação com a crise institucional instalada entre os Poderes da União

Autor
Simone Tebet (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/MS)
Nome completo: Simone Nassar Tebet
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ADMINISTRAÇÃO PUBLICA:
  • Preocupação com a crise institucional instalada entre os Poderes da União
Publicação
Publicação no DSF de 08/11/2017 - Página 36
Assunto
Outros > ADMINISTRAÇÃO PUBLICA
Indexação
  • APREENSÃO, ORADOR, SITUAÇÃO, CRISE, PODERES CONSTITUCIONAIS, PAIS.

    A SRª SIMONE TEBET (PMDB - MS. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) – Obrigada, Sr. Presidente. E que hoje, se estivesse vivo, estaria fazendo exatamente 81 anos.

    Srªs Senadoras, Srs. Senadores, Presidente em exercício Hélio José, 1m2, talvez dois: esse talvez seja o tamanho reservado à tribuna do Senado. Neste pequeno, mas fundamental, espaço, já passaram inúmeros grandes homens públicos, estadistas que aqui falaram, discursaram e decidiram os destinos da Nação, escrevendo as mais belas e importantes páginas da história do Brasil e também conseguindo impedir as piores.

    Desta tribuna, grandes homens públicos fizeram um juramento e sempre disseram a verdade. Mais do que isso, através da verdade, ajudaram a conduzir os destinos do País. É, portanto, que, neste sacrossanto espaço da democracia, não cabe outra coisa senão dizer a verdade. Mas mais do que isso, não omitir a verdade.

    E a verdade, por mais que doa, é que infelizmente, nos últimos tempos, o que nós estamos vendo é que o Senado está perdendo a sua identidade, a sua essência, a sua alma. A Câmara dos Deputados, o Congresso Nacional está perdendo a sua identidade, a sua alma. As instituições estão perdendo a sua alma. Estamos todos, políticos e cidadãos.

    A verdade é que infelizmente tudo isso está ligado a uma causa que alguns chamam de crise. Eu prefiro um termo que engloba a crise, chamado anomia social. Prefiro o termo anomia, porque tem a capacidade de englobar esta crise, que tem múltiplas facetas, que é uma e muitas ao mesmo tempo. Se perguntar para um desempregado, vai dizer que a crise é econômica; para os menos favorecidos, que estamos diante de uma crise social; se perguntarem para nós, diremos que a crise é política; perguntem a um cientista político, e ele dirá que a crise é institucional. Mas a crise, como unidade, é mais difícil de ser visualizada. E ela só pode ser explicada pela causa. A causa maior é a anomia que grassa o seio da sociedade brasileira.

    Esse termo é um termo criado já no século passado por um sociólogo – e a Sociologia explica –, o sociólogo francês Durkheim.

    Esse estado de anomia social nada mais significa do que o estado em que a sociedade, os cidadãos, a população não mais acreditam nas suas instituições, nas suas normas, nas suas regras, nas suas leis, nos poderes constituídos e simplesmente as ignoram. Ignoram as normas, não obedecem às regras, simplesmente não veem a sua vontade representada naquilo que os poderes fazem, agem ou decidem.

    Essa anomia social está no seio da sociedade brasileira, está nas ruas, basta andarmos nelas. Essa anomia social é refletida não apenas – e não significa isso – na violação da regra, porque isso é delito ou crime. Simplesmente ela se verifica diante simplesmente da ignorância por parte da sociedade do que está constituído, e isso é extremamente perigoso, Sr. Presidente. Essa anomia leva a que a sociedade faça suas próprias regras, busque seus líderes, muitas vezes falsos profetas. Neste momento, é toda a sociedade que perde a sua coesão, já não sabe o que é certo, o que é errado, o que é legítimo, o que é ilegítimo. E, nesse aspecto, o Estado passa a perder a autoridade, a capacidade de controlar, faltam freios, limites e o próprio Estado perde a sua capacidade de garantir segurança aos seus cidadãos na sua própria base.

    Estou dizendo tudo isso, porque hoje, andando nas ruas, conversando com as pessoas no cotidiano, nós vimos que, com uma virulência inédita e nunca vista antes, nós estamos diante dessa anomia, que divide famílias, que separa amigos, que faz com que a própria sociedade não mais se entenda, todos falam, ninguém ouve. Quando ouve, apenas ouve aquilo que lhe interessa, não aceita o contraditório, não aceita a diferença, não aceita a contradita.

    Mas hoje é esta razão da minha vinda a este plenário: hoje eu diria, de forma muito triste, que o Brasil está a um passo além dessa anomia social.

    Ouso aqui criar um termo. Estamos hoje vivendo diante do que aqui eu chamo de anomia institucional, porque agora não é mais a sociedade, são os próprios poderes que não se entendem, poderes constituídos – constituídos, é bom lembrar, pelo povo brasileiro. Os poderes estão mergulhados numa crise de identidade, em que um poder entra no vácuo, nos espaços vazios deixados pelo outro, um poder interfere naquilo que é da alçada, da esfera do outro poder.

    Diante disso, nós temos as funções, os papéis, as atribuições e a própria identidade dos poderes embaralhada. Vamos começar falando pelo Poder Legislativo. Comecemos com o Poder Legislativo, a nossa Casa. Quando podemos dizer que o Poder Legislativo perdeu o seu norte ou perde seu rumo, a sua identidade, a sua alma? Nós estamos perdendo a nossa identidade quando, por exemplo, nos deixamos levar pela fúria legiferante de fazer leis e normas dos demais Poderes, do Judiciário e do Legislativo. Perdemos a nossa alma, Sr. Presidente, quando deixamos que o Poder Executivo baixe medidas provisórias que nada têm com o que está escrito na Constituição Federal de relevante e urgente e legisle em nosso lugar.

    Mas, mais do que isso, perdemos a nossa alma quando transformamos as medidas provisórias naquilo que nos interessa no particular, apresentando emendas que atendem interesses privados, interesses de grupos de pressão, fazendo das medidas provisórias uma verdadeira colcha de retalhos.

    Mas, ainda em relação a elas, nós estamos aqui perdendo a alma quando deixamos essas medidas provisórias tramitarem, perderem o prazo e, com isso, trancarem a pauta. Como hoje, há uma medida provisória trancando a pauta do Congresso, do Senado, que, se não for votada, não vai permitir que o Senado vote outros projetos de lei. E, ao trancar a pauta, deixamos de votar projetos de relevância da sociedade brasileira, projetos relacionados à segurança, à saúde, à habitação, a políticas públicas, enfim.

    Mas, mais do que isso, nós perdemos a nossa alma não por fatores externos, mas por culpa própria, por inoperância, por incapacidade, por inércia. Os exemplos são muitos. Primeiro, quando fazemos projetos ou aprovamos emendas, repito aqui, de interesses individuais, de grupos a cuja pressão, apesar de conhecida por nós, não conseguimos reagir ou mesmo até de grupos legítimos que, por mais legítimos que sejam, vão comprometer o orçamento – sim, estou falando das corporações – e vão inviabilizar que o pouco do recurso de hoje que não é vinculado ao orçamento possa ser destinado ao seu fim máximo e maior, que é o interesse público; a investimentos em projetos que alavanquem o desenvolvimento econômico e social do País.

    Ainda, nós perdemos a nossa alma quando nos omitimos, quando deixamos um vazio que, um dia aqui, já ocupando a tribuna, ousei chamar de limbo.

    Ainda – e aqui me reporto a episódios muito pontuais que aconteceram recentemente nesta Casa e na Câmara dos Deputados – perdemos a nossa alma quando nós mesmos descumprimos o nosso Código de Ética, quando o Regimento Interno do Senado, da Câmara ou do Congresso Nacional torna-se letra morta.

    Fico com três recentes episódios das dezenas deles que, apenas este ano, citaríamos aqui.

    Semana passada, um Deputado Federal, assumindo a Presidência da Câmara, disse nos microfones, microfones abertos – portanto, foi divulgado para toda a Nação –, sem ter legitimidade para tal – um Deputado do meu Partido! –, disse, nos microfones, ao lado do Presidente do Congresso Nacional, que não haveria mais sessão já convocada do Congresso Nacional.

    O que é isso se não uma anomia institucional? Nós mesmos desrespeitando as nossas regras; nós mesmos desrespeitando o nosso Regimento Interno. E, com isso, como vamos exigir da sociedade que respeite as normas e as leis que fizemos e, mais ainda, que respeite esta instituição, esta Casa?

    Ainda nesse mês passado, um Senador, ainda em sessão desta Casa, abriu os microfones a quem não foi eleito Senador da República para que pudesse falar e, com isso, levar à sessão um assunto que, por mais relevante, não estava pautado na Ordem do Dia.

    Outro episódio recente, talvez há dois meses ou um pouco mais que isso, Senadoras da República assumiram a Presidência e a Mesa Diretora, impedindo que mais de 70 Senadores pudessem exercer o seu direito e o seu dever de votar projetos de relevância, de interesse nacional.

    O Parlamento está perdendo a sua alma ao tornar menor aquilo que, não por acaso, chamamos de Carta Maior, que é a nossa Constituição Federal. É o caso, por exemplo – e aqui nós precisamos chamar a atenção a esse problema que por enquanto está velado, não é assunto que pauta a mídia nacional, mas que nós já estamos sentido na pele –, dessa anomia institucional o fato de a Câmara dos Deputados, numa interpretação errônea, ilegítima e inconstitucional da Constituição Federal, entender, Senador Hélio José, que o Senado é apenas uma Casa revisora. E o faz, não nos microfones, mas faz, repito, de forma velada, quando deixa tramitando, não tramitando, quando deixa dormindo nos escaninhos das comissões da Câmara dos Deputados projetos de iniciativa de um Senador da República. Difícil um projeto de grande relevância de um Senador da República hoje ser aprovado na Câmara dos Deputados, porque entendem eles que nós somos apenas Casa revisora. Fosse assim, a Constituição não garantiria a iniciativa de um projeto de lei do Senado Federal. Também nesse caso o Senado Federal, que é a Casa maior, se torna uma Casa menor.

    Em qualquer dos casos o importante é dizer que o Parlamento está perdendo a confiança e a credibilidade: a confiança do povo brasileiro e a credibilidade nossa e da própria instituição.

    O Executivo também está perdendo a sua alma quando ele se torna refém de grupos, de dirigentes de partidos políticos, de grupos na Câmara e no Senado Federal, e é obrigado a votar, a modificar projetos relevantes para atender grupos e interesses pessoais. Não que o presidencialismo de coalizão não seja necessário, ele é, mas infelizmente hoje ele é mal interpretado porque, na prática, o que nós estamos vendo é apenas o presidencialismo de coalizão se transformar num balcão de negócios e negociatas. Mas, na realidade, o presidencialismo de coalizão, na forma como foi teoricamente constituído, nada mais significa do que colocar ao lado de um Presidente eleito outros partidos e aliados que tenham o mesmo posicionamento político-ideológico para governar junto, porque ninguém governa sozinho. Na prática, o presidencialismo de coalizão virou, repito, um balcão de negócios, um toma-lá-dá-cá, cargos por votos, ministérios inteiros, porteira fechada... Mais grave ainda – e é vergonhoso dizer isto neste momento da Tribuna do Senado – é a barganha de emendas de verbas para se garantir a governabilidade.

    Mas o Judiciário também, nesse papel de protagonismo nunca antes visto na história do Brasil, em se inserindo em esfera que não é sua, está perdendo a sua alma. Perde a sua alma quando inova na lei, fazendo interpretações heterodoxas, dizendo aquilo que não diz a lei, relativizando princípios jurídicos constitucionais consagrados há mais de um século, como o princípio da legalidade, o princípio da impessoalidade, do devido processo legal e da presunção da inocência. Também perde a sua alma quando entra na esfera da política pública, que é da alçada única e exclusiva do Poder Executivo. E esse alerta, esse puxão de orelha também serve para o Ministério Público.

    Estamos todos perdendo a nossa alma. É a anomia institucional instalada nos poderes constituídos deste País. As virtudes do Judiciário, que são a moderação, o equilíbrio, a equidistância das questões políticas e ideológicas, das paixões políticas e ideológicas, hoje estão, infelizmente, sendo deixadas de lado.

    O que não são os episódios largamente anunciados, mesmo pela televisão, pelos sites brasileiros, que não uma anomia social, institucional, quando o Judiciário através de uma decisão monocrática de um ministro do Supremo Tribunal Federal interfere numa decisão da Mesa Diretora? Um erro! E também um erro da Mesa Diretora, quando não cumpre uma decisão judicial, porque decisão judicial não se discute: deve-se cumprir e depois recorrer.

    Tudo isso está levando à politização...

(Soa a campainha.)

    A SRª SIMONE TEBET (PMDB - MS) – Eu já estou no meu... Se me permitir cinco minutos, comprometo-me a encerrar, Sr. Presidente.

    Tudo isso leva à politização da Justiça. A politização do Judiciário está matando a alma da Justiça.

    Sr. Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, Durkheim, quando falou em anomia social, estava tentando definir, na sua teoria, e tentando explicar o suicídio. Imaginem, o suicídio, que é um ato unilateral de vontade; o suicídio, que nada mais é do que infelizmente uma manifestação de desespero de um ser humano! E ali, na tentativa de explicar o suicídio, ele diz que os suicídios têm muito a ver com o que ele chamou de anomia social, porque o suicídio está atrelado aos fatos do cotidiano que acontecem no seio de uma sociedade.

    E aí, quando ele trata da anomia social e nós trazemos essa questão para o dia a dia, para o hoje, para a política, eu diria: nós, se não tomarmos cuidado, estaremos provocando o suicídio das instituições brasileiras e, com isso – o que é mais grave –, cometendo o assassinato da nossa democracia.

    Temos que evitar esse crime múltiplo ou duplo: o suicídio das instituições e o assassinato da nossa democracia. Isso nós só faremos, se revirmos o nosso posicionamento nesta Casa.

    Falei de filosofia, falei de sociologia, falei de política. Quero recorrer, nas minhas palavras finais, ao bom e velho bom senso, conclamando, fazendo um apelo aos nossos pares, para que possamos refletir.

    A reflexão começa em tentarmos entender que estamos todos do mesmo lado, que fazemos parte de uma única e mesma Nação, que aquilo que nos une é muito maior do que o que nos separa. O povo brasileiro, o Brasil, o interesse público, a vontade de servir é muito maior do que as nossas posições político-partidárias, da nossa forma diferente de ver o mundo.

    Mais do que isso, está na hora de, ao invés de reforçarmos os muros já existentes, voltarmos a reconstruir as pontes que hoje precisam ser reconstruídas.

    Nós não superaremos a crise, não acabaremos com a desigualdade social, se não repensarmos o nosso posicionamento, a nossa conduta e chamarmos para nós a responsabilidade.

    É preciso lembrar que é uma missão árdua, é verdade. Vai haver necessidade de um amplo diálogo, de muito consenso, de muita paciência, mas a tarefa é política, portanto é nossa. Não é tarefa do Poder Judiciário, nem mesmo, diria, neste momento enfraquecido, é tarefa do Poder Executivo. A essência da alma do Legislativo é a de ser uma Casa plural, de ter aqui o pluralismo de ideias.

    Portanto, aqui, diante de uma Casa que representa todos os segmentos da sociedade, não tenho dúvida de que essa mesma sociedade, hoje dividida, vivendo em anomia, é uma sociedade que clama por resultado, que clama por solução, que quer a paz, que quer a pacificação, que quer a retomada do desenvolvimento, que quer o País sendo olhado por aquilo que efetivamente importa.

    Como eu disse, sei que o momento é grave, gravíssimo. Mas é por isso mesmo que, para nós, não há outra saída a não ser a saída da coragem. Não estão abertas aqui as portas da covardia. Isso tudo – volto a repetir – só será alcançado se nós voltarmos à velha prática da boa política, que exige amor à democracia e respeito à Constituição Federal.

    Eu termino a minha fala não com descrença, Sr. Presidente, mas com ampla esperança, lembrando de uma das frases preferidas do Dr. Ulysses Guimarães: "Navegar é preciso."

    É com isso que encerro a minha fala.

    Que cada um de nós possa assumir a sua responsabilidade nessa travessia! Que possamos trilhar o caminho da solidariedade e da comunhão e que possamos assumir o Brasil como Pátria comum, chão compartilhado, mesa de comunhão, porque precisamos estar acima e além de todas as nossas diferenças.

    A hora da travessia chegou, Srªs e Srs. Senadores.

    Era o que eu tinha a dizer.

    Muito obrigada, Presidente, pelo tempo que me foi deferido.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/11/2017 - Página 36