Discurso durante a 175ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Comemoração do dia nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro.

Autor
Regina Sousa (PT - Partido dos Trabalhadores/PI)
Nome completo: Maria Regina Sousa
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM:
  • Comemoração do dia nacional da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro.
Aparteantes
José Medeiros.
Publicação
Publicação no DSF de 21/11/2017 - Página 19
Assunto
Outros > HOMENAGEM
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, CONSCIENTIZAÇÃO, IMPORTANCIA, POPULAÇÃO, NEGRO, DEFESA, NECESSIDADE, COMBATE, RACISMO.

    A SRª REGINA SOUSA (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) – Sr. Presidente, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, ouvintes da Rádio Senado, telespectadores da TV Senado, outras pessoas que nos acompanham pelas redes sociais.

    Hoje eu não poderia falar de outra coisa – já falamos na Comissão de Direitos Humanos – que não fosse sobre o dia de hoje. Não sobre o dia em si, mas sobre a luta da população negra para ser reconhecida, ser vista, ser enxergada neste País como uma população igual a qualquer outra.

    E eu trouxe mais dados para refletirmos. Não fiz um discurso seguido, mas trouxe algumas questões para serem tematizadas, porque a temática do racismo gera, ainda hoje, grande polêmica quando se discute, no caso brasileiro.

    O País tido e havido como uma verdadeira democracia racial, durante grande parte do século passado, viu-se, a partir da redemocratização, nos anos 80, diante de seus próprios fantasmas. O patrimonialismo secular, o autoritarismo de suas elites, a histórica desigualdade e a mobilidade social seletiva são estorvos à concretização de um verdadeiro ambiente democrático.

    O Brasil precisa enfrentar o desafio de purgar o mais importante dos seus problemas sociais, que é o racismo, questão que se relaciona fundamentalmente às sequelas provenientes de mais de três séculos de vigência do regime escravista.

    A escravidão acarretou tanto a chaga do racismo quanto a do preconceito e da discriminação racial.

    Até os dias de hoje, as desigualdades sociais, notadamente as de renda e principalmente as de oportunidade, têm, na diferenciação racial, a sua principal raiz explicativa.

    Os dados do IBGE, através do PNAD, sobre a pobreza no Brasil mostram que 76% das pessoas mais pobres são negras. O índice de mortalidade infantil da população negra é 40% maior do que o da população branca, de acordo com os dados do Unicef. Os negros percebem, em média, rendimentos 40% menores do que os brancos, e o desemprego é 50% acima, se comparado com o percentual dos trabalhadores brancos. E, nas crises, são os negros os primeiros a perderem o emprego. Está provado agora, nesta última crise.

    A despeito de tudo isso, o debate sobre a questão racial mantém-se, em grande medida, interditado nos principais fóruns de discussão do País. A alegação da existência do racismo faz parte do discurso hegemônico.

    Já em 1950, a Unesco fez um relatório sobre a propalada democracia racial no Brasil e concluiu que não era a nossa realidade cotidiana. Viu que a situação da população negra estava associada às piores condições de vida, vivenciando um quadro de pobreza e miséria, tanto no campo quanto nas cidades, e sem qualquer perspectiva de ascensão social.

    Os resultados do trabalho do projeto Unesco, naqueles anos 50, apresentaram um cenário que, infelizmente, não se diferencia muito da realidade atual. Mesmo com os avanços acadêmicos acerca da existência do racismo no Brasil, o discurso governamental continua embasado na ideia de democracia racial. A reduzida ou nenhuma importância dada à questão racial, inclusive pelos setores mais progressistas, demonstra a força do racismo na sociedade brasileira.

    O racismo está encrustado nas relações sociais em geral, atuando como uma espécie de filtro social, abrindo oportunidades para uns, fechando portas para outros, a desenhar uma sociedade extremamente desigual e injusta, cujas bases dessa iniquidade estão assentadas na clivagem racial.

    O racismo no Brasil tem o poder de naturalizar a realidade vigente, proporcionando um ambiente de ausência de mudança social e de perpetuação de desigualdades da pobreza e da miséria.

    A sociedade brasileira não consegue perceber a existência de tamanho contingente de pobres, de mendigos, de população ou habitantes de lixões como situação que mereça enfrentamento ou solução. Ao contrário: tudo isso parece fazer parte de uma natural e secular paisagem social brasileira.

    Na área da saúde pública, dados divulgados pelo Governo Federal mostram que, no SUS, às mulheres negras tem sido destinado menos tempo de atendimento médico do que às mulheres brancas. As mulheres negras correspondem a 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil. Enquanto a mortalidade materna das mulheres brancas caiu, a das mulheres negras aumentou. Tem que haver uma razão para isso.

    No que se refere à gravidez e ao parto, somente 27% das negras tiveram acompanhamento pré-natal, contra 46% no caso das brancas.

    As diferenças persistem mesmo quando se trata de procedimentos de anestesia, tempo de espera e informações pós-parto, como aleitamento materno. Esses são dados do Ministério da Saúde.

    Também no âmbito do Judiciário, a presença do racismo institucional é visível, seja pelas penas mais rigorosas impingidas aos negros, seja ainda pela costumeira desqualificação do crime de racismo por parte da maioria dos juízes.

    Segundo os dados do Mapa da Violência, a taxa de homicídio entre adolescentes negros é quase quatro vezes maior do que a taxa entre os brancos: 36,9 contra 9,6. Por isso que dá quase quatro.

    O fato de ser homem multiplica o risco de ser vítima de homicídio em quase 12 vezes.

    As mortes por assassinato da juventude negra estão diretamente relacionadas à ação ou à omissão do Estado. De um lado, a proliferação do tráfico de drogas nas comunidades de baixa renda, sobretudo nas favelas – e são os jovens negros que são recrutados para o tráfico, é bom que se diga –, resultado da falta de segurança pública e da ausência de órgãos do Estado. Em um ambiente onde a omissão do poder público suscita o aparecimento de grupos organizados de traficantes, bem como de milícias, os índices de violência contra a juventude negra atingem o paroxismo. De outro lado, o crescimento da violência policial contra esses jovens também é uma chocante realidade. O expediente dos autos de resistência tem sido utilizado de forma recorrente pelos policiais, para justificar a morte dos jovens negros. Houve uma CPI que constatou isso, que é uma coisa alarmante a mortalidade da juventude negra.

    A própria ONU denunciou a existência do racismo institucional. Em 2014, em relatório sobre a situação da discriminação racial no Brasil, mostrou que os negros são os que mais são assassinados e os que têm menor nível de instrução, os menores salários, o menor acesso à saúde, os que morrem mais cedo e os que menos participam do Produto Interno Bruto. E, no caso específico dos jovens negros, o relatório chama a atenção para a atuação violenta da polícia. Abro aspas: "Frequentemente empregada contra jovens negros, o direito à vida sem violência não está sendo garantido pelo Estado para os afro-brasileiros."

    Recentemente, um ator negro, essa semana que passou, foi espancado após seguranças de terminal de ônibus negarem ajuda. A violência racista manifesta-se todos os dias. O crime aconteceu na última quinta-feira, mas neste 20 de novembro fomos impactados pelas imagens divulgadas de um ator negro sendo espancado, após seguranças de um terminal de ônibus da capital paulista julgarem que ele era um criminoso e se recusarem a ajudá-lo. Ele é negro, estava vestido de forma simples, mas é um ator. Claro, não é famoso, ninguém o reconheceu, não socorreram o rapaz.

    Sem falar no racismo explícito do jornalista da Globo. Eu diria que escapou porque está nele. Ele não teve tempo de pensar, porque estava ao vivo. Então, acho que está introjetado.

    Diogo Cintra – ainda falando do jovem – fugia dos bandidos que tentaram assaltá-lo. Mas, por ser negro, os seguranças imaginaram que o assaltante fosse ele e, literalmente, viraram as costas para o crime.

    E que falar das mulheres negras no Brasil?

    As mulheres negras acumulam os piores indicadores sociais. São as mais pobres, as que têm menos oportunidades, as que ganham menos e que vivem numa situação de praticamente nenhuma mobilidade social.

    De acordo com os dados do Ligue 180, representamos – as mulheres negras – 58,8% das vítimas de caso de violência doméstica. Segunda a Fiocruz, 65% das negras sofrem com a violência obstétrica, e o Ministério da Saúde mostra que morremos mais em decorrência do parto, pois 53,9% dos casos da morte no parto são de mulheres negras. O IBGE mostra o rendimento médio de R$800 ao mês para as mulheres negras, enquanto que para as brancas é R$1.559 a média.

    Para enfrentar os problemas, criamos, em 2003, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres – o governo Lula criou –, reconhecendo a necessidade de um olhar mais cuidadoso para a melhoria da qualidade de vida das mulheres negras. Porém, a pasta foi extinta no atual Governo.

     Na população carcerária, a estatística mostra que a maioria absoluta é de negros.

    Quantos jovens ainda vão morrer por causa da cor da pele? Quantas pessoas vão ser agredidas, ter seus terreiros queimados, por causa de sua opção religiosa de matriz africana? E a reparação que o Poder Público dá? Recentemente, houve uma portaria liberando o trabalho escravo. Adivinha quem vai ser escravizado?

    Qual é a saída? Educar as crianças, porque os adultos já estão com esse sentimento racista introjetado. A gente até se policia, mas às vezes escapa. Há as piadas que se contam na maior, as frases que se dizem sem pensar, porque está introjetado.

    A criança aprende, incorpora as ideias para sempre. Portanto, há que se educar, para não se sentir diferente. É preciso dizer que a criança negra não é diferente da criança branca, sentar os dois, mostrar que têm o mesmo corpo, os mesmos órgãos, braço, perna, olho, nariz, boca... Só têm a cor da pele diferente, e isso não pode fazer um agredir o outro. Então, a criança precisa não sentir vontade de agredir.

    E eu quero terminar lendo a letra de uma música de uma dupla piauiense, dois professores negros, o Prof. Cineas Santos e o Prof. Feliciano Bezerra, em que eles ironizam os ditados populares, porque há um ditado popular muito corrente: "negro de alma branca." Quem ainda não ouviu isso? A pessoa diz sem nem sentir que está cometendo racismo. "Negro de alma branca." Aliás, um Ministro do Supremo disse mais ou menos isso a respeito do Ministro Barbosa.

    E, aí, outro dito popular, agora já discriminatório, debochado, com negro. Gostam de dizer que "negro, quando não suja na entrada, suja na saída." Claro que a palavra não é "suja," mas eu não vou dizer aqui a palavra mais forte. "Negro, quando não suja na entrada, suja na saída."

    Então, saiu essa música. É uma música que ganhou um festival universitário, do Prof. Cineas e do Prof. Feliciano Bezerra, que diz assim:

Negro de alma preta, sim

Negro de alma preta sou

Negro assumido

Negro atrevido

Sem patrão e sem senhor!

Eu não sujei lá na entrada

Eu não sujei pela vida

Mas só para aborrecer,

Só para ver feder,

Vou sujar na saída

E eu quero ver,

Quando feder,

Quem vai limpar

    Muito obrigada, Sr. Presidente.

    Senador Medeiros.

    O Sr. José Medeiros (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PODE - MT) – Muito obrigado, Senadora Regina. Eu queria parabenizá-la pela sua fala. E é interessante a gente lembrar que... Eu, por exemplo, trabalhei 23 anos atendendo a acidentes em rodovias. E, nesses momentos difíceis da vida, às vezes a pessoa se vê numa UTI, desesperada por sangue. E quando a pessoa está desesperada para conseguir sangue, Senador Elmano Férrer, por doação de sangue, ela não quer saber qual é a cor da pele da pessoa. Ela precisa do sangue. Então, essas coisas, nesses momentos da vida, se tornam todas menores. Então, passou da hora de a gente passar uma borracha nessas coisas todas. E, como V. Exª falou, todos esses dizeres aí, eu, desde a minha infância, cresci ouvindo essas coisas. E eu vejo, com grata satisfação, que as nossas crianças, hoje, e os nossos adolescentes já vêm com um entendimento bem mais diferente, já abominando esse tipo de coisa. Essas coisas já estão ficando bem para trás, e eu não tenho dúvida de que, em breve, nós vamos, inclusive, mudar a questão da desigualdade que a senhora tão bem colocou e sobre a qual a revista Veja também fez um estudo muito bem feito, na edição desta semana. E eu não tenho dúvida de que, dentro em breve, nós vamos trabalhar a primeira infância, para que as crianças negras tenham tanta oportunidade de ter acesso a aprendizado quanto as outras crianças. Muito obrigado.

    A SRª REGINA SOUSA (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - PI) – Obrigada, Senador.

    Eu havia encerrado, Senador, mas quero, diante da fala dele, fazer uma recomendação, até porque há plateia aqui, um grupo de visitantes ali. A ONU fez uma série de vídeos sobre racismo – Vidas Negras é o título. Então, entrem no YouTube da ONU, pois há vídeos maravilhosos. Eu penso que as televisões deviam ter a iniciativa de passar, pelo menos uma vez nessa semana da consciência negra, aqueles vídeos. Há um vídeo com a Taís Araújo falando da questão de vidas negras que é fantástico, é educativo e precisa ser visto. Então, todo mundo que puder reproduza os vídeos da ONU no YouTube, nas redes sociais, para que criemos essa sociedade sem racismo para, quem sabe, daqui a 15, 20 anos, nós tenhamos uma sociedade mais saudável, uma juventude mais saudável, que não discrimine as pessoas pela cor da pele.

    Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/11/2017 - Página 19