Discurso durante a 176ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Anúncio da criação da Frente Nacional Contra a Censura.

Autor
Marta Suplicy (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/SP)
Nome completo: Marta Teresa Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ATIVIDADE POLITICA:
  • Anúncio da criação da Frente Nacional Contra a Censura.
Publicação
Publicação no DSF de 22/11/2017 - Página 83
Assunto
Outros > ATIVIDADE POLITICA
Indexação
  • CRITICA, PROCESSO, MORAL, SOCIEDADE, AUSENCIA, RESPEITO, OPINIÃO, DEMOCRACIA, APREENSÃO, ASSUNTO, OPORTUNIDADE, PROXIMIDADE, ELEIÇÃO, COMENTARIO, PESQUISA, COMPORTAMENTO, PESSOAS.

    A SRª MARTA SUPLICY (PMDB - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) – Muito obrigada, Sr. Presidente.

    Muito obrigada, Senador Valadares, cujo gesto foi simpático.

    Vocês que estão nos assistindo em casa ou aqui no Senado, hoje, às 6 da tarde, houve a criação da Frente Nacional Contra a Censura. Foi em Belo Horizonte. Pelo horário, está sendo. Ainda deve estar ocorrendo. Não estou acompanhando o que está acontecendo agora lá.

    Vou retomar esse tema da censura. No final de outubro, escrevi um artigo para a Folha que falava sobre essa questão. Vivi a questão da censura durante muito tempo na TV Mulher, tive que lidar com o censor. Era o final da ditadura, mas estamos longe disso agora. Mas a censura, de repente, na sociedade, aparece e é muito nociva, como todos sabemos. Ninguém quer essa volta.

    O que a gente tem é uma moralidade hoje impregnada de certo e errado. Dogmas religiosos sempre existiram, vão continuar a existir. Agora, o que estamos tendo é um acirramento, uma polarização e um ódio que, há muito tempo, não se via no País sobre esses temas.

    Temos também muita desinformação. Muitos cidadãos de bem acreditam piamente que a exposição de um corpo nu em uma obra de arte vai causar danos a uma criança. Fico me perguntando quem são essas pessoas? São vítimas de um movimento? O que é isso? Acho que seria melhor perguntar quem são e o que pretendem os incentivadores desse falso moralismo. Eu acho que é falso mesmo. Duvido que as pessoas acreditem no que apregoam sobre o perigo da arte para as crianças ou sejam tão desinformadas a ponto de chamar um artista que se expõe como escultura viva de pedófilo.

    Não estou falando isso porque sou psicóloga, psicanalista, porque estudei sexualidade. Estou falando porque faz parte da vida o nu. Faz parte da vida nos museus como faz parte de obras de arte, de performances de arte. Essa que deu tanta confusão é uma performance que remete a uma obra de Lygia Clark, artista consagrada. A mãe estava presente, uma multidão, não havia ato de pedofilia nenhum. A criança tocou o pé da pessoa, o braço da pessoa. Era uma criança muito pequena, com menos de cinco anos. Não significa nada para uma criança nessa idade. Mesmo que fosse um adolescente também não significaria nada ver um homem nu. Veem na internet muito mais. O máximo que iriam fazer era zoar e criar confusão para cima do artista e não iam ser impactados por nada que tivessem visto. Então, é essa falta de informação. Aí vem uma manipulação que transforma tudo em uma coisa de doença, de perversão, de crime, como é o crime da pedofilia, e desinforma.

    A gente deveria estar mais preocupado em introduzir a questão do abuso sexual na formação dos professores, para saberem detectar abuso sexual na escola. Isso produziria muito mais consequências positivas. É a capacidade de a professora detectar aquela criança que antes era exuberante e ficou tímida, a criança que vomita toda hora na sala de aula. São situações que fazem com que a escola passe a ter essa preocupação de investigar o que está acontecendo em casa. Isso seria muito mais producente do que ficar tentando colocar pedofilia onde não existe pedofilia. Aliás, quem está fazendo um brilhante trabalho sobre pedofilia, e sério, é o Ministério Público, que conseguiu encontrar mais de cento e poucos pedófilos. Esse é um trabalho com começo, meio e fim, consequente, e de quem tem essa responsabilidade, de fato, pela lei.

    O que eu quero dizer é que a pedofilia é uma perversão, ela é crime pela nossa lei. Além de tudo, como pessoa que trabalhou nessa área, a pedofilia é muito difícil, inclusive, de cura, é uma das perversões mais difíceis de cura. Então, realmente, nós temos que ter uma postura de proteção à criança, mas onde tem que estar, e não fazendo onde não tem que estar e inventando coisa para tornar confusa a mente das mães desinformadas, que ficam, claro, querendo proteger os filhos de um mal, mas um mal que não está ali. O mal pode estar dentro da própria casa. Como muitas vezes nós sabemos, a pedofilia ocorre, muito mais, perto da família, com pessoas que a criança conhece, do que em exposição ou coisas assim, ou pela criança ver um nu e achar que aquilo vai fazer mal para ela.

    Nós estamos vivendo, na verdade, um retrocesso civilizatório ou, pelo menos, uma ameaça de. E eu espero que, agora que foi constituída também essa frente nacional civil, pode dar certo e podermos rebater. No Congresso, nós estamos com dificuldades de aprovar os direitos para grupos minoritários, LGBT. As mulheres também estão com dificuldade em relação à questão...

    Aliás, hoje há um artigo excelente na Folha sobre a questão do aborto, o que significa, e essa possibilidade que estão votando na Câmara de tornar crime o aborto desde a concepção, quando as pessoas até hoje não têm uma clareza se a vida existe desde a sua concepção, desde que o coração bate, desde que haja uma consciência. A medicina diz uma coisa, a ciência outra, a religião outra. O que sabemos é que, se a mulher não aborta, a criança nasce. Então, não é uma questão de vida, é uma questão do direito da mulher.

    E nós já estivemos muito mais à frente nessa questão, muito mais lúcidos, muito mais de acordo com países onde as mulheres têm direitos iguais. E, nesses países, os direitos da mulher em relação ao aborto também são muito mais avançados do que aqui. Agora, nós temos o direito, que foi conquistado com muita dificuldade, quando a mulher for estuprada, quando ela correr risco de vida, quando se tratar de feto anencefálico. E até há um projeto que foi meu, depois acabou no Supremo, onde conquistamos. Mais uma vez, o Supremo deu a palavra final. São direitos hoje da mulher brasileira que estão ameaçados.

    Agora, no processo moralista que a gente está vivendo, eu acho que hoje há um claro oportunismo eleitoral. Há manipulação da boa-fé e está sendo servido um prato pronto de intolerância, de ódio. Por trás dessa censura que querem nos impor, está também a morte do pluralismo político, a possibilidade de termos liberdade, igualdade, como vemos em obras extensas, importantes, fundamentais, como a de Hannah Arendt, que está em compreendermos a inclusão do outro. Estamos diante de um processo que fragiliza a nossa democracia.

    Por isso, nós não podemos aceitar. E, por isso, não podemos nos calar. Se nos calarmos, aceitando essa censura que querem erguer, vamos aceitar todo dia mais restrição: hoje é isso que não pode; depois, amanhã, aquilo que faz não sei o que, da cabeça de cada um que acha alguma coisa. Até quando? E vamos nos calar para não discutir o que uns consideram tabu? Gente, isso, já em 1980, faz mais de 30 anos, já se falava na TV Mulher, já era discutido na TV Mulher. Quer dizer, nós estamos... O que é isso que está acontecendo no País? Trinta e poucos anos, foi em 1980 que começou, nós já discutíamos essas questões, e agora um retrocesso desse porte?

    Ninguém tem direito de impor seu pensamento ao outro. A sociedade democrática respeita opiniões divergentes, e, agora, vamos passar a regredir e tratar arte como obscenidade?

    Essa manifestação a que nós temos assistido, retrógrada, eu considero que envergonha o Brasil. Eu, como ex-Ministra da Cultura estaria muito sem jeito de representar o País com uma situação dessa ocorrendo. Parece um País que... O que é isso? É um vexame, um vexame mesmo, não é?

    Essas manifestações, eu fico pensando: então, você proíbe... Vamos ver, de repente, começam as pessoas, internacionalmente, a falarem que, então, no Brasil, se fosse no Brasil, o Louvre seria proibido; o Museu Picasso certamente seria proibido; o Museu do Quai Branly, que é um museu que tem toda a manifestação da arte africana, com muito nu, também seria proibido – imagine, cheio de nus?; o Museu Rodin, então, nem se fala – se você for ver aquela escultura maravilhosa do beijo, um homem e uma mulher se abraçando, nus, também seria proibido. O que aconteceria com as crianças, vendo um homem e uma mulher pelados se beijando?

    Gente, é patético estar havendo essa discussão aqui. Patético – patético! – é o mínimo que se pode falar. E, também, o Museu d'Orsay, em que você vê aquele quadro, tão bonito, A Origem do Mundo, do Coubert, que seria também um escândalo. Provavelmente, esses movimentos todos cobririam a nudez, ou sei lá o que é que eles fariam.

    Aliás, eu lembro... Isso me remete a minha infância, porque havia, na piscina, havia uma estátua do Rapto das Sabinas em tamanho natural, enorme, que são dois homens tentando raptar uma mulher, uma sabina, e a minha avó mandou pôr folha de parreira porque era muito feio que os netos pudessem ver aquelas figuras. Os netos não estavam nem aí. A gente usava os braços da estátua para pular, como trampolim. É isso que é para a criança.

    Então, a quem interessa isso? Nisto que a gente tem que pensar: para quem está interessando fazer essa confusão? E eu acredito que é um movimento de quem não tem voto, de quem quer se colocar, de quem não tem proposta para o País, mas sabe como manipular uma parcela da população, nela colocando esses medos.

    Só que eu acho que a Ministra do Supremo, a Presidente Cármen Lúcia, já colocou, há muito tempo, que o cala a boca já acabou e que numa democracia não há isso. A gente tem que ter liberdade de querer ir num museu ou não ir, de levar criança ou não levar, e nós evoluímos, e custou muito essa evolução.

    Não, os LGBTs não vão voltar para o armário, esqueçam! Não, nenhum direito a menos para as mulheres, esqueçam! Não, nenhuma censura à arte, esqueçam! Não vamos aceitar censura sob justificativa de proteção ao público, porque não é verdade, é manipulação.

    Agora, eu quero dizer aqui uma coisa boa em que eu estou pensando: é que os brasileiros não estão sendo mais tão manipulados, Senador Cássio. Saiu uma pesquisa interessante da Ideia Big Data, publicada pelo Valor, no dia 17. E a pesquisa diz o seguinte: pessoas do mesmo sexo... Não é só sobre isso, porque há 20 itens pesquisados. A pesquisa vai de "se bandido bom é bandido morto" a "não existe salvador da pátria em política". Há uma parte mais sobre política e há uma parte mais sobre comportamento. Eu vou ler a de comportamento, que me interessou muito. E eu fiquei surpresa com o que avançamos.

    Pessoas do mesmo sexo devem ter o direito de se casar? E 65,5% responderam "sim", e 29,7%, "não". A última pesquisa que eu tinha visto era de 55,5%. Isso faz algum tempo, acho que faz uns dois anos. Eu fiquei impressionada com essa pesquisa. Ela foi feita por esse grupo novo que se chama, acho, Agora.

    A outra pergunta era: casais de pessoas do mesmo sexo devem ter direito de adotar crianças? E 62,6% responderam "sim"; 34,6%, "não".

    Mulheres que fazem aborto não deveriam ser punidas criminalmente. E 60% acham que elas não deveriam ser punidas.

    Eu estava conversando com uma pessoa que me falou assim: "Mas como ser punida criminalmente se as pessoas nem sabem que mulher que faz aborto pode ir para a cadeia"? Não sabem disso, porque não obedecem a essa lei. Mas a questão é que as mulheres fazem aborto... Porque, como é fora da lei, podem ser criminalmente imputadas. Mas o pior de tudo é que elas fazem em lugares... Principalmente as mulheres que não têm recursos, porque as que têm recursos fazem em lugares seguros, e não ocorre nada com elas em termos de lei nem de saúde. Agora, as outras podem muitas vezes até morrerem ou ficarem estéreis por fazerem um aborto em mãos de pessoas não qualificadas.

    E outro item da pesquisa que achei interessante é em relação ao aborto: ou seja, 60% acham que não deveriam ser punidas criminalmente, e 31% acham que deveriam.

    Ser a favor de cotas para negros nas universidades públicas? E 57,2% são a favor de cotas, e 39,2% são contra as cotas.

    Bom, há vários itens que eu achei superinteressantes porque estão mostrando como o Brasil está evoluindo.

    Eu estava falando da TV Mulher, quando a gente falava com muita liberdade sobre todos os temas. Depois veio a censura acirrada, e houve mulher se rebelando, dizendo que não se podia falar disso e daquilo. Mas se fôssemos ver esses itens, principalmente em relação ao casamento homossexual, isso não dava nem para falar. O que a gente tentava explicar é que não era uma doença. Era um jeito de ser diferente dessas pessoas e que isso tinha que ser respeitado. Mas eu lia as cartas, as pessoas sofriam muito, não falavam para as famílias. Isso mudou muito. As famílias hoje já aceitam. As pessoas têm mais coragem de se expor. Claro, não vou dizer que não há um tabu ainda: existe – existe –, e não adianta tapar o sol com a peneira. É como o racismo, a mesma coisa. Nós temos as leis que avançaram até mais do que para os homossexuais, mas a gente vê na pauta, a toda hora, uma escorregada e muitas vezes... Eu não estou lembrando os dados exatos da pesquisa. Não é essa que eu estava lendo. É uma outra pesquisa que mostra que, no Brasil, mais de 90% das pessoas acham que existe racismo, mas a maioria acha que ela não tem preconceito nenhum. Então, onde está o racismo? Eu acredito que nós estamos superando se formos comparar como era.

    Ainda quero dizer que nós temos um belo atraso quando não se quer discutir gênero nas escolas. Mas isso tudo tem dias contados. Essa pesquisa está mostrando que os dias estão contados e nós só vamos caminhar para frente. Existem esses aborrecimentos, existem esses movimentos, mas esses movimentos não grudam mais.

    Muito obrigada, Senador Cássio, pelo tempo.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/11/2017 - Página 83