Discurso durante a 35ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexão sobre a insegurança jurídica gerada pela decisão recente do STF relativa à possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância.

Autor
Ricardo Ferraço (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/ES)
Nome completo: Ricardo de Rezende Ferraço
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
PODER JUDICIARIO:
  • Reflexão sobre a insegurança jurídica gerada pela decisão recente do STF relativa à possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância.
Publicação
Publicação no DSF de 28/03/2018 - Página 67
Assunto
Outros > PODER JUDICIARIO
Indexação
  • ANALISE, AUSENCIA, SEGURANÇA, ORDEM JURIDICA, BRASIL, MOTIVO, DECISÃO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), RELAÇÃO, POSSIBILIDADE, PRISÃO, REU, CONDENAÇÃO, SEGUNDA INSTANCIA.

    O SR. RICARDO FERRAÇO (Bloco Social Democrata/PSDB - ES. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Muito obrigado, Sr. Presidente, pela concessão da palavra.

    As manifestações recolhidas pela Senadora Ana Amélia e pelo Senador Armando Monteiro são de muita relevância, porque eles são de fato empreendedores que contribuíram e que contribuem para o desenvolvimento econômico, para o desenvolvimento social do nosso País. Portanto, trata-se de uma justa e merecida homenagem a esses dois empreendedores que são figuras presentes não apenas na economia dos Estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas também são dois empresários de classe nacional e até global, pela capacidade que tiveram de construir empresas brasileiras multinacionais com elevada reputação em nosso País e mundo afora.

    Portanto, cumprimento o Senador Armando Monteiro e, de igual forma, a Senadora Ana Amélia por esse exercício de gratidão e reconhecimento ao valor desses extraordinários empreendedores.

    Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, dentre os mais caros direitos fundamentais tão vilipendiados em nossos dias está o direito à segurança jurídica, que consiste na obrigação de o Estado dar estabilidade à convivência social, o que pressupõe, entre outras coisas, principalmente o vigor de uma ordem jurídica justa e estável.

    Desde a mais remota antiguidade, as normas escritas em pedras, indeléveis, características do Código de Hamurabi, na antiga Babilônia, visavam precisamente a esse fim. Essas regras eram fonte de segurança, na medida em que permitiam que os súditos da época antevissem as consequências de suas condutas individuais. Podiam saber, de antemão, como deveriam agir, bem como identificar as consequências a serem geradas no caso de eventual transgressão de tais regras.

    Contudo, a lei por si só não é capaz de gerar os efeitos que pretende, exigindo do Estado, conforme seu comando, a intervenção na ocorrência de conflito decorrente da aplicação da norma. Daí a fundamentalidade da atividade jurisdicional. Ao dizer o direito ante o caso que lhe é submetido e que merece a intervenção estatal para a solução civilizada do conflito, o Estado juiz deve decidir segundo a lei, a lei existente, que se presume conhecida por todos. Na ausência da lei, o juiz, ainda assim, deve considerar o ordenamento jurídico buscando nele a solução ideal. É sempre a lei a âncora da Justiça e da segurança jurídica.

    Tem papel fundamental, Senador Medeiros, na efetividade do direito difuso, o da segurança jurídica, o Supremo Tribunal Federal, que, como corte constitucional, tem o dever de zelar pela Constituição, lei que está no vértice do ordenamento jurídico e democrático, dando a palavra final sobre a aplicação da norma de acordo com os preceitos constitucionais.

    Daí deriva a ideia de que suas decisões, por serem terminativas na interpretação constitucional, tragam segurança, apaziguando interpretações sobre a aplicação das normas constitucionais. Deve, nesse sentido, inclusive, decidir sobre aparentes conflitos entre normas e princípios constitucionais que a priori têm o mesmo valor e o mesmo peso.

    Infelizmente, vivemos em tempos de muita incerteza e muita insegurança. "Um direito incerto é também um direito injusto", observou Theóphilo Cavalcanti Filho em pioneiro livro de 1964 sobre a questão – a segurança jurídica, pela capacidade que tem de impactar no dia a dia das pessoas, dos governos, das relações empreendedoras, comerciais, empresariais e assim por diante. A relação incerto/injusto é que faz da segurança jurídica um valor de primeira grandeza em qualquer ordenamento democrático. A segurança jurídica, pois, é a norma das normas.

    Pois bem, Srªs e Srs. Senadores, em 2016, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral no agravo regimental que trata da execução provisória de condenação em segunda instância. Por seis votos a quatro, no julgamento em questão, S. Exªs os ministros entenderam existir "reafirmação de jurisprudência" no caso, o que fez com que o mérito do recurso fosse, inclusive, julgado no pleno virtual, sem a necessidade de se remeter o recurso ao plenário físico. Desde então, a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância passou a valer como regra geral, como repercussão geral para todo o País.

    Ao decidir, a Suprema Corte, usando de suas prerrogativas constitucionais, resolveu aparente conflito entre princípios constitucionais, ou seja, o da presunção de inocência e o da segurança jurídica, da estabilidade, da efetividade das decisões judiciais em segundo grau.

    O Relator do caso foi o Ministro Teori Zavascki, que rechaçou o argumento de que a prisão, como execução provisória da pena, feriria a cláusula constitucional da presunção de inocência e afetaria os mais pobres. Disse de maneira clara, cristalina, afirmativa o hoje saudoso Ministro Teori Zavascki – aspas:

A presunção de inocência, encampada pelo art. 5º [...], é uma garantia de sentido processualmente dinâmico, cuja intensidade deve ser avaliada segundo o âmbito de impugnação próprio a cada etapa recursal, em especial quando tomadas em consideração as características próprias da participação dos Tribunais Superiores na formação da culpa, que são sobretudo duas:

[Primeiro:] a impossibilidade da revisão de fatos e provas; [segundo:] a possibilidade da tutela de constrangimentos ilegais por outros meios processuais mais eficazes, nomeadamente mediante habeas corpus.

    De forma ainda mais acertada e precisa, o saudoso Ministro Teori Zavascki ensina, pelo menos a meu juízo, o verdadeiro sentido da presunção de inocência e o momento em que ela se exaure, porque não pode ser, não deve ser, não tem cabimento ser um princípio ou um direito sem limites.

    Aspas:

A eventual condenação representa, por certo, um juízo de culpabilidade que deve decorrer da logicidade extraída dos elementos de prova produzidos em regime de contraditório e no curso da ação penal. Para o sentenciante de primeiro grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa – pressuposto inafastável para condenação –, embora não definitivo, já que sujeito, se houver recurso, à revisão por Tribunal de hierarquia imediatamente superior [, no caso, o segundo grau]. É nesse juízo de apelação que, de ordinário, fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da responsabilidade penal do acusado. É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, [aquilo que está consagrado na Constituição Federal, ou seja,] o duplo grau de jurisdição, destinado ao reexame de decisão judicial em sua inteireza, mediante ampla devolutividade da matéria deduzida na ação penal, tenha ela sido apreciada ou não pelo juízo [...]. Ao réu fica assegurado o direito de acesso, em liberdade, a esse juízo de segundo grau, respeitadas as prisões cautelares porventura decretadas [consagra o saudoso Ministro Teori Zavascki].

    No meu entender, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, brasileiros e capixabas que nos acompanham pela TV Senado, até aqui a posição do Supremo Tribunal Federal espelha o desejo de que os poderosos não fiquem impunes, pois são os poderosos que conseguem, através de bons e bem remunerados advogados, arrastar até a exaustão os processos em que são réus, gerando, assim, a sensação de impunidade sentida por todos.

    O Supremo, em 2016, na verdade, produziu uma interpretação possível, diante da necessidade da integração de dois direitos fundamentais, o da presunção da inocência e o da segurança jurídica decorrente de decisões de mérito já estabilizadas pelo julgamento em segunda instância. Entendeu que os recursos extraordinário e especial, que se prestam ao exame, respectivamente, da constitucionalidade e de conformidade com a lei federal das decisões em última ou única instância, não tratam das questões de mérito relativas à materialidade e autoria delituosas.

    Assim, com a confirmação da sentença penal condenatória pela instância recursal, cessaria a presunção de inocência, devendo por certo prevalecer, por afirmação da segurança jurídica das decisões judiciais, o decreto condenatório.

    Esse entendimento da Suprema Corte, muito embora tenha sido alvo de controvérsias, de críticas acadêmicas, não causou por certo qualquer impacto negativo na sociedade, parecendo estar conforme a vontade de dar segurança à ambiência social.

    Agora, Sr. Presidente, Srªs e Srs Senadores, em meio a essa grande controvérsia, a essa grande polêmica, ante a possibilidade da prisão de um ex-Presidente da República – essa é a verdade –, em razão de um habeas corpus impetrado por sua defesa, exercendo seu máximo direito e legitimidade, o Supremo Tribunal revive a discussão já superada, agora sim, causando perplexidade na sociedade, tumultuando o ambiente político, gerando a sensação de insegurança jurídica pela alternância de interpretação do Texto Constitucional.

    Inclusive, a meu juízo, usurpando um papel e uma prerrogativa que é do Parlamento brasileiro, pois na prática estão emendando a Constituição Federal por decisão e por jurisprudência, quando a mesma alcança o fator da repercussão geral.

    Assim como não podemos alterar as leis sem considerarmos os impactos sociais de nossas decisões, o Supremo Tribunal não pode mudar sua orientação como se muda de roupa, ao sabor das circunstancias, muito menos quando se estabelecem exceções, estabelecendo cidadãos de primeira e de segunda grandeza, como se alguns pudessem ter esse tipo de privilégio e outros não. E a lei tem que ser para todos.

    A segurança jurídica pressupõe a estabilidade, a previsibilidade nas decisões judiciais. É sabendo como os tribunais julgam que qualquer um do povo, da sociedade pode se orientar nas suas relações privadas, como devemos nos comportar em relação, por exemplo, a contratos que celebramos.

    Ao agir ao sabor das conveniências, o Poder Público substitui o governo das leis pelo imponderável governo dos homens. Abdicarmos das normas, da segurança jurídica, é um retrocesso sem precedentes em nosso País, e isso precisa ter fim.

    Alerto, pois, para o pior dos cenários, ou seja, a perda de credibilidade de nossa Suprema Corte, que começa a sofrer com a crise ética que se abate em nossas instituições republicanas.

    A quem pode interessar o enfraquecimento e a fragilização das instituições em uma democracia? A nenhum de nós. A preocupação com a estabilidade da linha jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal se liga com a clareza com que se passam à população orientações interpretativas sobre as mais delicadas situações práticas.

    Aspecto essencial nessa questão está na autoridade do que se decide, a noção tacitamente difundida de que a decisão tomada é para valer, de que ela representa genuinamente a posição pacífica de seu Plenário, mesmo quando o resultado é de maioria mínima de cinco a seis.

    Contudo, se é comum a oscilação jurisprudencial daquilo que é decidido, se a interpretação de determinado dispositivo constitucional não se revela como algo sólido e estruturado, o Tribunal acaba se colocando em situação de fragilidade institucional e, de novo, isso não pode e não deve interessar a nenhum de nós. É que cada decisão tomada nasce e se desenvolve em razão de uma expectativa socialmente relevante da reversão daquela decisão.

    O Supremo Tribunal Federal está diante de uma encruzilhada histórica, me parecendo tensionado pelo casuísmo de rever o próprio entendimento para livrar um condenado ilustre prestes a ir à cadeia.

    O grave é que, se a corte, revendo a sua posição, voltar a considerar que o réu condenado só cumprirá a pena quando todos os recursos forem esgotados na terceira instância, no chamado trânsito em julgado da decisão, em vez de produzir segurança e estabilidade jurídica e política, estará se afastando do seu papel institucional, estará, ainda, dando um salvo-conduto para criminosos que já estão cumprindo pena, mas ainda com recursos pendentes nas altas cortes.

    Mas não devemos fugir à autocrítica.

    Assistindo ontem, com muita atenção, como muitos brasileiros fizeram, à entrevista dada pelo Juiz Sergio Moro no programa Roda Viva, mais uma vez, o Juiz Sergio Moro acertou quando avaliou que o caminho correto é que nós não estaríamos vivendo dias de tanta incerteza se o Senado da República tivesse aprovado a proposta de emenda à Constituição que apresentei ainda em 2011 – pronta para ser votada, na Mesa do Senado desde 2015! –, por inspiração e militância do Ministro Peluso e ancorada nos estudos da escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, coordenados pelo Prof. Joaquim Falcão.

    O tão criticado ativismo judicial é alimentado pelas nossas omissões, pela nossa inércia. Esse é o debate que precisamos fazer. Trata-se da afirmação das prerrogativas do Legislativo. E não estou defendendo essa tese por circunstância, até porque apresentei essa proposta de emenda à Constituição ainda em 2011, uma proposta de emenda à Constituição que estabelece claramente a execução provisória em segundo grau, como determina a Constituição, por ser duplo grau de jurisdição!

    Mais uma vez, estamos assistindo à passividade do Congresso Nacional frente à sempre criticada judicialização da política, que é uma verdade, mas é uma verdade, pasmem, em torno da nossa omissão e da nossa inércia em não fazermos os enfrentamentos que precisam ser feitos.

    Portanto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não me parece razoável que permaneçamos nesse ambiente de ambiguidade. Por certo, não temos como votar essa proposta de emenda à Constituição neste momento, até porque, em razão da intervenção federal constituída no Estado do Rio de Janeiro, esta Casa não pode enfrentar qualquer tipo de proposta de emenda à Constituição. Perdemos infinitas chances de resolvermos essa questão e não o fizemos. E assistimos passivamente ao Supremo Tribunal Federal, como se estivesse emendando a Constituição Federal, porque há uma controvérsia constitucional. Ao mesmo tempo em que a Constituição fala em duplo grau de jurisdição, fala, de igual forma, do trânsito em julgado, fala, de igual forma, na presunção da inocência. E nós poderíamos ter resolvido isso se nós tivéssemos tido a coragem de votar, aqui no plenário no Senado, essa interpretação, que não precisa ser ajustada em tempos distantes; acho que já, até porque, quando nós olhamos para o Direito comparado, nós somos, por exemplo, o único País da Organização das Nações Unidas que convive com quatro graus de jurisdição – uma verdadeira jabuticaba brasileira.

    A indústria de recursos só atende à impunidade dos mais poderosos, porque os mais pobres, os mais desvalidos não conseguem contratar os excepcionais e bem remunerados advogados para que possam defendê-los nos tribunais superiores.

    Portanto, a defesa que faço aqui, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, é que, após a intervenção do Estado do Rio de Janeiro – que, em algum momento, vai cessar –, que este Senado tenha a coragem de fazer o enfrentamento e dar uma resposta à população brasileira, dizendo "sim" à PEC 15, a PEC dos Recursos, que estabelece um ordenamento jurídico e constitucional, admitindo a condenação provisória após decisão colegiada de segundo grau; portanto, dando um golpe fatal na impunidade que campeia em nosso País.

    Muito obrigado, Sr. Presidente, pela condescendência de V. Exª e das Srªs e Srs. Senadores. Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/03/2018 - Página 67