Discurso durante a 59ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexões sobre o desabamento de um edifício em São Paulo.

Autor
Cristovam Buarque (PPS - CIDADANIA/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
CALAMIDADE:
  • Reflexões sobre o desabamento de um edifício em São Paulo.
Publicação
Publicação no DSF de 03/05/2018 - Página 58
Assunto
Outros > CALAMIDADE
Indexação
  • COMENTARIO, ASSUNTO, INCENDIO, DESABAMENTO, PREDIO, LOCAL, CIDADE, SÃO PAULO (SP), OCORRENCIA, VITIMA, MORTE, DEFESA, NECESSIDADE, REALIZAÇÃO, PROGRAMA, HABITAÇÃO POPULAR, MOTIVO, PRESENÇA, RECURSOS FINANCEIROS, POSSIBILIDADE, INVESTIMENTO, CRITICA, UTILIZAÇÃO, RECURSOS, OBJETIVO, CONSTRUÇÃO, ESTADIO, FUTEBOL, PALACIO, JUSTIÇA, OLIMPIADAS, INDUSTRIA, AUTOMOVEL.

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PPS - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Senador Moka, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, eu creio que é impossível passar por aqui hoje sem lembrar o que aconteceu ontem em São Paulo, como fez há pouco o Senador Medeiros.

    Eu quero dar aqui o meu sentimento ao ver aquelas cenas. Por acaso, Senador, eu acordei na madrugada, liguei a televisão – de vez em quando, tenho esse hábito –, e tinha acabado de acontecer aquele fato.

    A sensação que eu tive ao longo do dia, ao ver as notícias, é a de que aquele fogo é o inferno em que está hoje o Brasil transformado. Aquele fogo daquele prédio caindo tem mais do que chamas; tem um simbolismo. O simbolismo até de que pode ser que Deus seja brasileiro, mas nós, os dirigentes do Brasil, ao longo de décadas e décadas de toda a nossa República, não estamos sendo brasileiros, porque não estamos cuidando dos brasileiros.

    Ali está apenas um pequeno pedaço de pelo menos 100 milhões de brasileiros, alguns vivendo em cidades, em prédios como aquele, outros vivendo no campo, lá no meu Nordeste, nos mocambos, como chamamos, em condições precariíssimas, sem água, sem esgoto, com o risco de desabamento, de incêndio, em uma vida insalubre completamente.

    Enquanto isso, Senador Moka, os dirigentes do Brasil têm não só os salários, mas até mesmo ajuda-moradia. Eu não digo ajuda-moradia de quem se desloca e precisa, sim, mas de gente que mora na cidade e recebe ajuda-moradia, enquanto os pobres coitados vivem naquelas condições e sem salário, sem renda.

    É possível que Deus seja brasileiro, mas nós, os dirigentes do Brasil, não estamos sendo brasileiros, no sentido de solidariedade com nossos irmãos de pátria.

    Nós temos condições de evitar essa situação. O Brasil tem um Produto Interno Bruto altíssimo e uma carga fiscal muito alta. Parece e é certamente uma coincidência, mas, quase no dia em que aconteceu aquela tragédia, os brasileiros que pagam impostos entregaram o seu Imposto de Renda.

    Para onde vai esse Imposto de Renda, que, naquele mesmo dia em que foi o limite para entregar a declaração, fez com que aquelas pessoas afundassem naquele prédio?

    Deus é brasileiro quando olhamos o pequeno número, comparado com o que poderia ter acontecido, de mortes. Deus é brasileiro em não deixar que aquela tragédia se transformasse em uma mortalidade muito maior, mas nós não fomos brasileiros ao deixar que aquilo acontecesse por irresponsabilidade, por omissão, por descuido e pela brutal desigualdade que nós temos no Brasil, em que 100 milhões vivem daquele jeito e alguns de nós, com recursos públicos, vivemos em casas, em apartamentos em condições extremamente favoráveis pagas com dinheiro público. E ainda não querem acabar com essa tal ajuda-moradia, que se tem mesmo morando na cidade.

    Deus pode ser brasileiro, mas nós, os dirigentes, juízes, Parlamentares, procuradores, não estamos sendo. Fechamos os olhos para essa tragédia e pegamos o máximo que podemos legalmente. Não estou falando de quem pega propina, não estou falando de corrupto, de ladrão. Estou falando de gente honesta que se serve se beneficiando de dinheiro que poderia ter ido para evitar aquilo, porque um bom programa habitacional neste País permitiria que aquela tragédia não acontecesse.

    Mas não é só esse benefício pessoal, essa corrupção do comportamento. É uma outra também, Senador Moka, a corrupção nas prioridades: não teve dinheiro este País nas últimas décadas para fazer moradia, água, esgoto, mas teve para fazer estádios para a Copa do Mundo, teve para fazer infraestrutura para a Copa do Mundo, para as Olimpíadas, palácios de Justiça, palácios do Legislativo, estradas para satisfazer a voracidade da indústria automobilística, que exige estradas, viadutos, pontes, enquanto o povo fica sem casa e de repente, numa madrugada, acorda sob um fogo que corrói todo o edifício onde moram e leva as pessoas com ele. E os que sobrevivem ficam sem os poucos bens que tinham. E ainda, claro, comemoram que não morreram.

    Nós não estamos sendo brasileiros por usar mal o dinheiro do Brasil, por usar mal os recursos do Brasil. E não estamos sendo brasileiros, do ponto de vista ético, de usar corretamente e, do ponto de vista lógico, de não entender a dimensão do problema que nós temos. Há uma maldade na maneira como nós não dividimos a renda nacional e há uma burrice na maneira como nós não aumentamos a renda nacional. E o aumento da renda e a divisão da renda, os dois problemas passam pela educação de qualidade para todos os brasileiros, porque, só com educação de qualidade, a produtividade cresce e, com a produtividade, o bolo da renda nacional aumenta. E só com educação igual para todos, esse bolo se distribui de uma maneira menos injusta e de acordo com o talento, não de acordo com a herança, não de acordo com a sorte, não de acordo com o CPF ou o CEP – o CPF dos pais ou o CEP de onde moram. Nós não estamos sendo brasileiros, nem inteligentes e nem bondosos com o País e com o povo brasileiro.

    Aquilo foi um exemplo do que acontece todos os dias neste País. Do ponto de vista de visualização, foi muito forte, mas, no ponto de vista, Senador Medeiros, do que acontece, aquilo é apenas um pequeno exemplo. Não a 30km, mas, daqui a 100m, há pessoas morando daquele jeito – não em prédios, mas em barracas de papelão, que podem também pegar fogo de noite e matar as crianças que ali estão com os seus pais. Não vai haver um espetáculo pictórico, televisível de um prédio de 24 andares afundando, mas tem o mesmo efeito do colapso moral de nós, os dirigentes deste País, que não somos capazes de perceber a necessidade de usar os recursos do Brasil para servir aos brasileiros e, ainda mais, nos apropriamos de parte desses recursos para nós, sob a forma de prioridades equivocadas ou sob a forma de mordomias e privilégios que nós temos.

    Eu não sei até quando o Brasil vai acordar, como acordamos ontem, com a sensação de tragédia, mas eu quero saber quando é que nós vamos acordar com a sensação de ter encontrado o caminho e de investir na solução desses problemas.

(Soa a campainha.)

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PPS - DF) – Senador Moka, ao ver aquilo e ao saber que uma pessoa tinha falecido até aquele momento, eu disse: "Deus é brasileiro." Mas, ao ver com cuidado e ao refletir, eu disse: "Sim, ele é brasileiro, mas nós, os dirigentes do Brasil, não somos."

    Essa é a sensação com que eu fiquei, Senador Moka, ao ver a tragédia que a televisão nos mostrou ao longo do dia de ontem.

    Era isso, Senador, que eu queria hoje manifestar.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/05/2018 - Página 58