Discurso durante a 68ª Sessão Especial, no Senado Federal

Sessão especial destinada a comemorar o Dia da Defensoria Pública.

Autor
Cristovam Buarque (PPS - CIDADANIA/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM:
  • Sessão especial destinada a comemorar o Dia da Defensoria Pública.
Publicação
Publicação no DSF de 15/05/2018 - Página 17
Assunto
Outros > HOMENAGEM
Indexação
  • SESSÃO ESPECIAL, COMEMORAÇÃO, DIA NACIONAL, DEFENSORIA PUBLICA.

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PPS - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Bom dia a cada uma e a cada um.

    Eu cumprimento, inicialmente, o Senador Paim, esse grande amigo, e aproveito para fazer uma referência a algo que sempre nos une aqui, que é a abolição da escravatura, ainda incompleta, 130 anos...

    O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) – Eu fui o apresentador de um livro de V. Exª, um belo livro. (Palmas.)

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PPS - DF) – O livro de que ele fala, do qual ele fez o prefácio, é um livro que eu fiz a partir de ler as atas do debate aqui, nesta Casa, na hora de votar a Lei Áurea. Identifiquei os que foram contra; os que foram a favor; muitos que diziam que eram a favor, mas que não era tempo ainda, "que a economia não aguenta, que não dá para fazer essa liberdade assim de uma maneira para outra"; e aqueles que diziam: "Sim, chegou a hora, mas tem que reembolsar os que compraram os escravos."

    Então, eu peneirei nas atas, e o Paim fez um prefácio, que está melhor do que o livro.

    Quero cumprimentar também o Sr. Carlos Eduardo Barbosa Paz, que é Defensor Público Federal e Presidente do Conselho Superior da Defensoria Pública da União, além de representante do Colégio Nacional dos Defensores Públicos; o Dr. Antonio José Maffezoli Leite, que é Presidente da Associação Nacional dos Defensores. Cumprimento o Presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais, o Sr. Igor Roberto Albuquerque Roque, e, obviamente, com muito prazer, o nosso querido Senador, Sr. Mauro Benevides, que aqui nos dá a honra de estar nesta solenidade.

    Quero começar dizendo a vocês que o mundo moderno não pode perder o compromisso com a igualdade, que vem lá de 200 anos atrás, mais ainda da Revolução Francesa – com a ideia da igualdade, da fraternidade, duas coisas que os seres humanos não podem perder na busca de construir uma sociedade melhor.

    A igualdade deve continuar sendo um propósito, mas tem de se redefinir. Não dá para falar em igualdade hoje, na sociedade do consumo, na sociedade das indústrias de automóveis e outros bens de luxo da mesma maneira em que se falava em igualdade na economia pré-capitalista.

    Na época em que o conceito de igualdade foi elaborado, a ideia era igualdade dos direitos, não era igualdade do consumo. Foi o socialismo do século XX que trouxe a ideia de igualdade dos direitos para a igualdade do consumo, mas antes da Revolução Industrial, que permitiu a sociedade de consumo, já no começo do século XX.

    A partir dessa economia de hoje, de bens caros, suntuosos, a igualdade só é possível se proibirmos esses bens e ficarmos apenas na igualdade pelos bens simples, que existiam antes da Revolução Industrial. Mas aí a gente constrói a igualdade, ferindo a liberdade à realização dos desejos e sonhos do consumo.

    Por isso, eu tenho trabalhado muito a ideia de manter firme a luta pela igualdade, mas esclarecendo com clareza que nós temos que tolerar uma desigualdade no consumo. É a desigualdade que fica entre um piso social, ninguém abaixo, seja com o Bolsa Família, seja com a garantia do Minha Casa, Minha Vida, com escola gratuita, com saúde gratuita, ninguém abaixo de um piso e ninguém acima de um teto do consumo que destrua a natureza – um teto ecológico e um piso social.

    Aqui dentro, nós temos que tolerar a desigualdade que é construída graças ao talento, não à herança, não à exploração, não à propina – a desigualdade construída graças ao talento.

    Que eu saiba nenhum homem aqui – porque, na época, mulheres não jogavam futebol – se sente incomodado porque Neymar ganha mais do que a gente; ele chegou lá graças ao talento que nós não tivemos. Porque ele começou a jogar com uma bola tão redonda quanto a que eu jogava em Recife, quando eu era menino. Mas ele teve talento, persistência, vocação e chegou lá. É uma desigualdade legítima a que vem do talento. Mas é preciso garantir o direito de todos desenvolverem seu talento.

    No futebol, a gente garante razoavelmente, porque a bola, meu caro Senador Benevides, é redonda para todos. No caso da ciência, a gente não garante o talento ser desenvolvido, porque a escola não é redonda para todos.

    Três itens devem ser iguais. Toleramos a desigualdade na roupa, no restaurante, nas viagens, no transporte, mas em três itens a desigualdade é indecente: na saúde, porque morto não tem talento; na educação, porque sem ela não se desenvolve o talento, e na proteção legal. Não pode haver desigualdade nisso. Uma pessoa não pode viver mais que outra porque tem dinheiro para comprar o serviço de saúde; uma pessoa não pode desenvolver mais sua competência intelectual porque tem dinheiro para comprar educação, e uma pessoa não pode ficar presa porque não tem dinheiro e outra ser solta porque tem dinheiro para pagar um bom advogado. Três igualdades que a gente deve construir. Construídas essas três, as outras se não vierem, as desigualdades serão legítimas, fruto do talento.

    Eu luto pela igualdade na saúde e na educação. Não dá ainda para a gente dizer que vai conseguir construir uma igualdade plena no atendimento jurídico – não dá ainda. Não dá para dizer que os advogados serão todos defensores públicos, embora eu deseje que um dia isso aconteça.

    Eu desejo que um dia todos os médicos trabalhem para o público e atendam a todas as pessoas, independente da renda. Eu desejo que as escolas sejam tão boas para os pobres quanto para os ricos, para os brancos quanto para os negros, porque é por isso que a desigualdade de negros e brancos continua, é porque a escola do negro, por ser pobre, não é a mesma do branco, por ser mais rico.

    Esquecemos que a Lei Áurea precisava de mais um artigo: a partir de hoje, a escola dos ex-escravos é a mesma que a dos que não eram escravos. Faltou esse item, e dizer como fazer, porque não bastava colocar na lei.

    Enquanto não for possível uma igualdade absoluta na defesa dos direitos legais de cada cidadão e cidadã, e vai demorar muito, nem sei em qual país isso já existe... Eu sei que do ponto de vista da educação e da saúde, muitos países já têm. A desigualdade de educação que o Brasil tem é exceção, não é a regra. A regra no mundo é escola do pobre igual à escola do rico. A saúde é exceção ser tão desigual. No Direito, não é exceção o Brasil.

    Por isso é tão importante o trabalho do defensor público...

(Soa a campainha.)

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PPS - DF) – ... porque é o defensor público que constrói o atendimento àqueles que não podem ter acesso à assessoria, à consultoria, à defesa jurídica quando não têm dinheiro. É por isso que é tão importante, porque é um passo na direção da sociedade que nós desejamos, em que ninguém fique preso por ser pobre e seja solto por ser rico tendo cometido o mesmo crime. Isso é indecente!

    A desigualdade da roupa, do carro é uma desigualdade que podemos até dizer que não é o ideal, mas não é indecente. Mas uma pessoa ser solta, outra ficar presa por causa da renda diferente, tendo cometido o mesmo crime, é indecente. Os defensores tratam de trazer a decência enquanto nós não radicalizarmos na ideia da igualdade.

    Por isso, eu estou aqui, por ter sido um grande defensor, quando governador, dos serviços de defensoria, por ser alguém que faz política querendo construir a igualdade, essa igualdade diferente que eu disse, não aquela de 200 anos atrás, e por isso que eu trouxe aqui a vocês o meu abraço nesta comemoração, tanto para os advogados, que fazem a Defensoria Pública, como também para os funcionários da Defensoria Pública, porque sem eles os advogados não iam conseguir prestar os serviços que eles fazem. (Palmas.)

    Eu trago um abraço e quero dizer que, por mim, nós precisávamos fazer uma reforma universitária em que os cursos de Direito priorizem, sobretudo, os cursos que vão formar defensores públicos. Se a universidade é pública, tem que defender, sobretudo, os profissionais que vão trabalhar na Defensoria Pública, como as faculdades de Medicina devem tratar de alguma forma especial os que vão trabalhar no SUS.

    Esse é o compromisso público que a universidade precisa ter. Lamentavelmente, não é isso o que a gente vê. Vai-se para a Defensoria Pública, muitas vezes necessitando de cursos especiais que não tiveram na universidade. Em geral, a universidade tende a induzir o contrário da Defensoria Pública até porque tende a induzir aqueles que vão fazer Direito na busca apenas do sucesso pessoal, que é um direito de cada um, mas a gente tem que ter direito ao sucesso e obrigação com o serviço. Uma universidade pública deve formar alguém para ter sucesso e alguém para ter obrigação pública também.

    Então, fica aqui o meu abraço a vocês, a minha crença de que um dia ninguém vai ser preso ou vai ser solto conforme o dinheiro que tem, mas, sim, conforme a inocência que tiver ou o tamanho do crime que cometeu. E, até lá, felizmente, vocês existem, prestando este serviço de que a sociedade tanto precisa, de quebrar a indecência que é a desigualdade no acesso a um serviço jurídico.

    Muito obrigado por vocês existirem.

    É por isso que eu estou aqui. (Palmas.)

    O SR. PRESIDENTE (Paulo Paim. Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - RS) – Muito bem, Senador Cristovam Buarque, parabéns pela fala.

    Eu, quando o Senador Cristovam falava da questão de pobres e ricos, fui recentemente a Curitiba, visitei todos os presos que estavam lá e terminei visitando, junto com a Comissão de Direitos Humanos, o Presidente Lula. Mas o que vou contar aqui não tem nada a ver com esse quadro político, Senador Cristovam. Eu vi lá uma menina com 20 anos presa, ali numa cela, claro, separada, da Polícia Federal de Curitiba, e aquilo me intrigou. Daí perguntei a ela e ao representante dos cárceres: "Por que ela está presa?". Ela devia ter no máximo 20 anos. Ele me disse: "Ela recebeu uma nota falsa e passou-a para frente, e aí foi mandada para cá." Eu disse: "Sim, mas não tem outra forma de resolver isso?" "Tem", disse o agente da Polícia Federal. Ela foi condenada a pagar R$2 mil – e ela deve estar lá ainda – e está há cinco ou seis dias presa porque não tem os R$2 mil. Aí é aquilo que V. Exª está contando: se fosse um rico, R$2 mil tirava do bolso, vai lá o pai ou um amigo e paga. Ela estava já há quase uma semana no cárcere porque não podia pagar os R$2 mil – só enfatizando essa diferença entre o rico e o pobre. Se fosse um rico, nem tinha pousado lá.

(Soa a campainha.)

    O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco Parlamentar Democracia e Cidadania/PPS - DF) – Aquele que fabricou um milhão de notas falsas, uma das quais ela passou adiante, certamente sem nem saber que era falsa, esse que fabricou um milhão, se tiver um bom dinheiro, poderá pagar um advogado, com notas que não sejam falsas, inclusive, e ficar solto. E ela, por uma nota que passou adiante, fica presa. Isso a gente vai ter de quebrar. Mas enquanto não quebrarmos isso, muito obrigado a vocês.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/05/2018 - Página 17