Discurso durante a 16ª Sessão Conjunta, no Congresso Nacional

Análise histórica do aniversário da Constituição Federal de 1988, desde a sua edição até o momento atual.

Autor
José Serra (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/SP)
Nome completo: José Serra
Casa
Congresso Nacional
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
CONSTITUIÇÃO:
  • Análise histórica do aniversário da Constituição Federal de 1988, desde a sua edição até o momento atual.
Publicação
Publicação no DCN de 08/11/2018 - Página 104
Assunto
Outros > CONSTITUIÇÃO
Indexação
  • ANALISE, ANIVERSARIO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DIREITOS, PROGRESSO, PROBLEMA, FINANÇAS PUBLICAS, COMENTARIO, ADMINISTRAÇÃO PUBLICA, SERVIDOR PUBLICO CIVIL, ESTABILIDADE, SALARIO, REGISTRO, CONTEXTO, MOMENTO POLITICO.

    O SR. JOSÉ SERRA. Sr. Presidente, Sras. e Srs. Deputados, nos 30 anos da Constituição que Ulysses Guimarães classificou de “cidadã”, alinho-me com a tese de que uma das grandes das virtudes da Carta é sua vocação garantidora de direitos. Foi, nesse caso, o bom uso que se fez de circunstâncias que não eram da nossa escolha. Explico-me: findo o regime militar, a nova Lei Maior procurou expressar o seu repúdio ao autoritarismo, precavendo-se de tentações golpistas e da agressão a direitos individuais. Mas também é preciso dizer que fizemos uma nova Constituição excessivamente marcada por contingências, muitas vezes com o olhar posto no retrovisor. Curiosamente, seus defeitos não foram obra nem da Esquerda nem da Direita, mas do atraso. No Brasil, infelizmente, os direitistas costumam deixar de lado o conservadorismo virtuoso, e os esquerdistas, o igualitarismo generoso.

    Virtudes?

    Poucos parecem divergir, a esta altura, da constatação de que o principal mérito da Constituição de 1988 é a consagração das liberdades democráticas -- de opinião, manifestação e organização -- e das garantias individuais: a criminalização inequívoca do racismo; a abolição do banimento e da pena de morte; o livre exercício dos cultos religiosos; o repúdio a tratamentos desumanos ou degradantes dos cidadãos, etc. Isso tudo ficou condensado no artigo 5º, o mais extenso da Carta, com 78 incisos e 4 parágrafos.

    Avanços?

    À parte as liberdades públicas e individuais, destaco, em planos distintos, como os maiores avanços da Carta de 1988: a concepção do SUS; a criação de um fundo -- posteriormente, na lei que o regulamentou, chamado Fundo de Amparo ao Trabalhador, o FAT -- que reuniu as contribuições do PIS/PASEP para tornar viável o seguro-desemprego e, ao mesmo tempo, financiar investimentos; o dispositivo que definiu o salário mínimo como o piso dos benefícios previdenciários de prestação continuada; os capítulos que lidam com finanças públicas e controle externo ao Executivo e ao Legislativo -- os Tribunais de Contas, por exemplo, foram extremamente fortalecidos nas suas atribuições --; os novos marcos para a política ambiental; o fortalecimento do Ministério Público; e a instituição do segundo turno na eleição para Presidente, Governadores e Prefeitos em cidades com mais de 200 mil eleitores.

    Diga-se, a respeito das finanças públicas, que a nova Constituição incluiu os dispositivos que viriam a dar sustentação legal para a futura Lei de Responsabilidade Fiscal para União, Estados e Municípios.

    Problemas?

    Mas há também alguns defeitos severos, que apontei e combati quando Deputado Constituinte -- muitas das críticas foram expressas em artigos semanais na Folha de S.Paulo e em outros jornais --: a prolixidade; as concessões de natureza corporativa; a prodigalidade fiscal; a falta de um regime geral de previdência mais homogêneo e equitativo, além de viável a longo prazo; o atrelamento dos sindicatos ao Estado; e a falta de inovação em matéria de sistema político e eleitoral. Também não posso deixar de mencionar algumas aberrações aprovadas a respeito da ordem econômico-financeira, removidas nos 15 anos seguintes por intermédio de emendas constitucionais.

    Diga-se que tomei de saudosa memória a iniciativa, como Senador, de escoimar da Carta os absurdos na área financeira; contei com o apoio, faça-se justiça aos fatos, do então líder do PT no Senado, José Eduardo Dutra. Entre esses absurdos estava a fixação de um teto constitucional para a taxa de juros real; barreiras a bancos estrangeiros; e “critérios restritivos da transferência de poupanças de regiões com renda inferior à média nacional para outras de maior desenvolvimento”. A sabedoria de alguns Constituintes forçou que tudo isso ficasse subordinado a uma lei geral do sistema financeiro -- arts. 192 do texto e art. 52 das disposições transitórias --, o que adiou as consequências daquilo que foi aprovado e facilitou, posteriormente, sua remoção.

    A prolixidade não precisa ser provada, é evidente: 250 artigos e 70 disposições transitórias, com numerosos parágrafos e incisos, muitos deles típicos de leis ordinárias, decretos, portarias ou simples declarações de intenção em discursos parlamentares. Um exemplo pitoresco? A constitucionalização da existência da Justiça Desportiva e a garantia de “a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional”, o que, por óbvio, deixou de fora o futebol, o vôlei e o basquete.

    Ao contrário do que se pensa, os interesses corporativos principais cravados na Constituição não foram os do setor privado, mas os da área da administração pública, de que é exemplo escancarado a estabilidade para os servidores não concursados de órgãos públicos que estavam empregados havia mais de 5 anos da data de promulgação da Carta. Abriu-se caminho ainda para toda sorte de isonomias salariais, poderoso mecanismo gerador de despesas permanentes.

    Esse aspecto corporativista da Constituição representou um fator decisivo para a chamada prodigalidade fiscal. Outro foi a forte redistribuição federativa de receitas tributárias da União para Estados e Municípios, sem que houvesse, paralelamente, nenhuma descentralização de encargos -- feroz e eficazmente combatida pelas corporações de funcionários e de clientes dos setores envolvidos.

    As circunstâncias

    Se a força e a amplitude dos direitos e garantias fundamentais deveram-se à ruptura com um regime de força -- tratava-se de esconjurar o passado --, os defeitos da Carta de 1988 estão relacionados a contingências políticas e às falsas expectativas que gerou.

    Afinal, a Assembleia Nacional Constituinte vinha sendo uma bandeira da oposição ao regime militar desde a segunda metade da década de 1970. Não era vista como umbral apenas da liberdade, mas também da prosperidade e da justiça social.

    Paradoxalmente, a convocação da Constituinte soberana foi reforçada pelas circunstâncias da posse do Vice-Presidente José Sarney na Presidência e pela necessidade de atender a uma bandeira histórica do seu novo partido. O que percebi de conversas com Tancredo Neves e ouvi sempre do Dr. Ulysses Guimarães -- do mesmo modo que o Senador Fernando Henrique e o Deputado Nelson Jobim -- é que o Presidente eleito não tinha disposição de convocar uma Assembleia Nacional Constituinte na forma em que viria a ser feita por Sarney; nem o PMDB, com Tancredo, se empenharia tanto nesse sentido. O presidente eleito achava que o processo deveria se restringir ou a emendar a Constituição do regime autoritário, tornando-a mais democrática, ou a apresentar um projeto compacto de nova Constituição para ser votado pelo Congresso eleito.

    No Brasil da redemocratização, havia uma expectativa de elevação imediata do bem-estar social, o que fora proporcionado, note-se, pelo Plano Cruzado, na sua fase bem-sucedida, em 1986, angariando muitos votos ao PMDB nas eleições desse ano. Ocorre que a agonia do Plano coincidiu com o início dos trabalhos da Constituinte, no começo de 1987. A inflação de dois dígitos mensais, fator de profunda perturbação e instabilidade social, fez sombra na Assembleia até o fim. Parlamentares e partidos se moviam freneticamente para mostrar serviço aos eleitores e para responder a demandas da opinião pública, procurando mitigar insatisfações com a criação de preceitos constitucionais. Ou por outra: uma Carta Constitucional, que por definição é feita para durar e estar acima de contingências, transformava-se em fator de ajuste de tensões sociais e conflitos distributivos corriqueiros.

    PMDB X Governo

    O colapso da estabilidade econômica enfraqueceu rapidamente o Governo Sarney e ampliou a distância entre o mandatário e o PMDB, partido ao qual se filiara exclusivamente para assumir a condição de Vice na chapa encabeçada por Tancredo Neves. O setor mais influente do partido deu início aos trabalhos para redigir a nova Carta, procurando diferenciar-se do governo. Ganhou força a ideia de uma Assembleia que editasse atos constitucionais que se sobrepusessem ao Executivo. Isso acabou não acontecendo, mas inaugurou um tipo de conflito Legislativo X Executivo que se manteria até o final do processo constituinte. De fato, na Constituinte rompeuse a frente política que elegera Tancredo no colégio eleitoral.

    O confronto mais relevante teve como objeto a duração do mandato de Sarney, que fora eleito com Tancredo para governar por 6 anos, mas aceitava 5. O então Líder da bancada do PMDB, Mário Covas, defendia 4 e emplacou esse número numa primeira versão da Constituição, vinda da Comissão de Sistematização, em meados de 1987, junto com a aprovação do parlamentarismo. O Presidente Sarney propôs um acordo: apoiaria o parlamentarismo já -- em 1988 --, se lhe dessem 5 anos e o direito de indicar um primeiro-ministro com estabilidade inicial de 10 meses, se a memória não me falha. A Liderança do PMDB -- infelizmente, eu diria hoje -- recusou a oferta. A partir daí, o Governo não mediu esforços para garantir os 5 anos, recorreu a todas as armas da fisiologia, para dizer o mínimo, e saiu vitorioso. O trágico é que o parlamentarismo acabou sendo derrotado junto.

    A impopularidade e a insegurança do Governo, determinadas pela inflação galopante e pelos conflitos com a Assembleia, retiraram a capacidade de assumir um papel relevante na formação do texto constitucional. Na verdade, o Planalto se omitiu, especialmente em relação aos gastos -- chegou até a apoiar preceitos constitucionais claramente expansionistas, introduzidos já em 1997. O chamado Centrão, um agrupamento de Parlamentares mais ligados ao Governo, só tinha compromisso com os 5 anos e o presidencialismo. No mais, dispunha de plena autonomia para defender suas propostas.

    PMDB X PMDB

    É preciso destacar ainda as condições difíceis em que atuou o PMDB, o maior partido do Congresso, questão que tem sido pouquíssimo levada em conta nas análises sobre o processo da Constituinte. Esse partido já era uma força extremamente heterogênea, cindida por interesses regionais e alas de Parlamentares. Chegou à Constituinte sem uma concepção sobre a Carta ou a forma de organizar o trabalho. Além disso, ficou politicamente dividido entre suas duas figuras principais, ambos aspirantes à Presidência nas eleições seguintes: Ulysses Guimarães e Mário Covas. O primeiro era o Presidente da Assembleia; o segundo, líder do partido, eleito contra o então Deputado Luis Henrique, candidato de Ulysses; Covas contou, na sua eleição, com o apoio dos Parlamentares mais próximos do Presidente Sarney, que preferia não fortalecer ainda mais o Deputado Ulysses, que era três vezes Presidente: do PMDB, da Câmara de Deputados e da Constituinte.

    Esse processo se desdobrou noutro, complicando a condução dos trabalhos de elaboração da nova Carta. Em vez de nomear o Relator-Geral, o Líder do PMDB preferiu que a escolha fosse feita mediante votação da bancada. Na prática, apoiou o Deputado Bernardo Cabral, que esteve à frente, no primeiro turno, dos outros dois candidatos -- Deputado Pimenta da Veiga, apoiado por Ulysses, e Senador Fernando Henrique Cardoso. O caso reproduziu o modelo de François Condorcet: Fernando Henrique, que ganharia no segundo turno de cada um dos seus dois concorrentes, ficou em terceiro lugar. E Cabral venceu o Deputado Pimenta nesse turno final.

    As consequências desses fatos não foram irrelevantes. Note-se que a nomeação dos Presidentes e Relatores de Subcomissões e Comissões manteve-se como prerrogativa da Liderança. Mas, legitimado pela eleição na bancada, o Relator tornou-se praticamente independente dessa Liderança e dos seus nomeados, sem ignorá-los, por certo, mas dificultando ainda mais a já complicada condução dos trabalhos pelo partido majoritário no Congresso.

    Esquerda, Direita e atraso

    Alguns analistas se confundem ao procurar entender o texto constitucional a partir da dinâmica de conflitos entre “Esquerda” e “Direita”. A chamada Direita, no Brasil, não se expressa pelo conservadorismo, mas pelo atraso. Nem remotamente é austera. O texto substitutivo do Centrão era mais gastador e prolixo, mais recheado de casuísmos, privilégios corporativos, vinculações e isonomias do que o já pródigo projeto que fora por ele derrubado, da Comissão de Sistematização, este sim mais influenciado pela fatia do PMDB que se afastara do Governo.

    Note-se que o mesmo Centrão manteve no seu projeto todas as garantias democráticas do relatório que conseguiu derrubar. Estas não foram objeto de nenhum confronto significativo no desenrolar de todo o processo. E, só por curiosidade, foi do Centrão, do Deputado Gastone Righi, a criação do abono de férias para todos os assalariados. Mais ainda: quando, nos turnos finais, foi votada a emenda que fixava a taxa máxima de juros da economia em 12% reais na Constituição brasileira, eu e o Deputado Cesar Maia encaminhamos o voto contrário. A defesa da emenda foi feita pelo Centrão, por intermédio do mesmo Deputado Gastone Righi e de Mário Assad, do PFL de Minas Gerais.

    O que se poderia chamar “Esquerda”, na época, era dominada pela concepção do Estado varguista e pelas ideias das décadas de 50 e 60, alienadas das mudanças que já estavam acontecendo no mundo e que só começariam a tornar-se mais transparentes no Brasil depois da queda do Muro de Berlim. Para ela, eram exóticas as preocupações com inflação, quadro fiscal, travas ao investimento privado e paternalismo estatal, sem mencionar a confusão permanente e até contradição entre benefícios para corporações restritas e interesses sociais mais amplos.

    Os dois lados exibiram um antagonismo -- o que politicamente convinha a ambos --, com farta cobertura da imprensa, no tema da reforma agrária. O confronto se deu em torno da função social da propriedade e da possibilidade de desapropriar terras produtivas. Tudo acabou resolvido em dois artigos. Noves fora as diferentes formas de lidar com o MST e com a violência rural, nenhum Governo posterior procurou mexer no texto desses artigos nem deixou de levar adiante o caríssimo processo da reforma agrária.

    Não por acaso, os dois “lados” -- Esquerda e Direita --, com a cumplicidade de sucessivos Governos, foram e continuam sendo integrantes ativos do mais consolidado de todos os partidos brasileiros: a FUCE -- Frente Única Contra o Erário e a favor das corporações de interesses especiais. Ninguém é mais falsamente de esquerda do que ela. Ninguém é mais falsamente de direita do que ela. Ninguém, a exemplo dela, é tão objetivamente contra os interesses do Brasil e dos brasileiros. Aliás, não é esse o partido mais consolidado e hegemônico do Congresso, 30 anos depois?

    Uma observação à margem: um dos grandes dramas da Constituinte foi sua duração, que parecia não ter fim. Isso impacientava a opinião pública, tirava o élan dos seus participantes, paralisava o Congresso nas suas funções não constituintes e tornava ainda mais incertas as expectativas sobre o futuro. Duas figuras se destacaram para limitar o processo: Ulysses Guimarães, na sua magistral condução em plenário, e Nelson Jobim, com sua criatividade, respeitada e acatada para abreviar impasses. Um exemplo foi sua ideia das emendas de fusão, que reduziam confrontos e impasses entre Parlamentares, permitindo a muitos assinar emendas que se aglutinavam não raramente mediante a transposição de uma simples preposição “de”. E os Parlamentares ficavam felizes de integrar a lista dos coautores das emendas aprovadas. Tal modalidade de emenda foi incorporada ao Regimento Interno da Câmara dos Deputados com o nome de “aglutinativa”, por sugestão do Deputado José Bonifácio Tamm de Andrada, o “Andradinha”, aliás, um Constituinte exemplar.


Este texto não substitui o publicado no DCN de 08/11/2018 - Página 104