Pela ordem durante a 35ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas às declarações do Ministro das Relações Exteriores sobre o golpe militar de1964. Comentários sobre o cenário político-econômico no período da ditadura militar. Relato sobre a vivência de S. Exª no exílio durante o período.

Autor
José Serra (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/SP)
Nome completo: José Serra
Casa
Senado Federal
Tipo
Pela ordem
Resumo por assunto
ATIVIDADE POLITICA:
  • Críticas às declarações do Ministro das Relações Exteriores sobre o golpe militar de1964. Comentários sobre o cenário político-econômico no período da ditadura militar. Relato sobre a vivência de S. Exª no exílio durante o período.
Publicação
Publicação no DSF de 28/03/2019 - Página 41
Assunto
Outros > ATIVIDADE POLITICA
Indexação
  • CRITICA, DECLARAÇÃO, MINISTRO DE ESTADO, ITAMARATI (MRE), REFERENCIA, GOLPE DE ESTADO, REGISTRO, ORADOR, SITUAÇÃO, POLITICA, ECONOMIA, DURAÇÃO, DITADURA, COMENTARIO, VIDA, SENADOR, EXILIO, PERIODO, FATO.

    O SR. JOSÉ SERRA (Bloco Parlamentar PSDB/PODE/PSL/PSDB - SP. Pela ordem.) – Sr. Presidente, acabo de tomar conhecimento de declarações do Ministro de Relações Exteriores do Brasil, na Câmara, a respeito de 1964, por incrível que pareça. O Ministro, que poderia muito bem falar de 2019, da política externa, dos planos, das orientações – e, nisso, sinceramente, sem querer adjetivar, me parece meio perdido –, volta ao passado. Há pouco tempo, o Presidente Bolsonaro também fez referência a 1964.

    Eu me dei conta, Sr. Presidente, de que o único membro presente do Congresso Nacional, incluindo Câmara e Senado, que foi punido pelo golpe de 1964 fui eu. Não há nenhum outro sobrevivente.

    Eu era muito jovem, tinha 21 anos no último ano de Governo, completei 22 na véspera do golpe. Eu era líder estudantil, Presidente da UNE, fui perseguido – exílio por 14 anos – por um não golpe, imaginem, por um regime que se diz que não era um regime de força. Eu fui, inclusive, condenado de maneira arbitrária, sem processo legal, à prisão por discursos que tinha feito em 1963, antes do golpe.

    Diga-se de passagem que a chamada esquerda, naquela época, nem remotamente tinha qualquer relação com luta armada, com processos violentos de tomada de poder, etc. Nada disso. Havia o Partido Comunista, que era minoria e que era pró-soviético – aliás, a linha de frente da via pacífica de transição ao socialismo era a União Soviética, no que se refere à América Latina.

    Na verdade, o que aconteceu em 1964 foi a quebra da institucionalidade que colocou o Brasil em uma ladeira declinante, que cobrou um preço altíssimo.

    Agora, é preciso refletir sobre 1964 também, ver quais foram as precondições que levaram à situação que emergiu com o golpe: a crise econômica, uma inflação de mais de 100% sem correção monetária, um descontrole do processo inflacionário – e 100% de inflação, três dígitos, já é um absurdo, mas imaginem sem os mecanismos de ajustamento e de correção monetária que foram estabelecidos décadas depois –, o PIB caindo, o Governo atrás nos acontecimentos. O Presidente Goulart fez um ministério, em um certo momento – assumiu em janeiro de 1963, logo depois do plebiscito em torno de parlamentarismo ou presidencialismo, em que ganhou o presidencialismo, infelizmente –, em que nomeou o Ministro Celso Furtado no Planejamento e o Prof. San Tiago Dantas na Fazenda. Eles fizeram um plano trienal. Olhando hoje, como economista, era um bom plano, mas exigia padrões de austeridade e de organização governamental que não existiam. O plano naufragou, e o País ficou sem rumo. Esse foi um fator crucial para que houvesse a quebra da institucionalidade.

    Por outro lado, nós tínhamos no Brasil – e este é um fenômeno que se encerrou e que alguns parecem sonhar com o seu restabelecimento – o fator militar. Era uma realidade. Uma circunstância que é inegável é que na política brasileira pré-1964 o fator militar tinha um peso dos dois lados. O Presidente Goulart tinha o seu esquema militar e havia o esquema militar que a direita tinha – chamemos assim – oposto ao Jango. Havia esse tipo de embate, tanto que o golpe em 1964 não trouxe cassação apenas na área política ou na área universitária – lembro que aqui foram Senadores, Deputados cassados –, mas também na área militar, com demissão, com represálias contra aqueles que se alinhavam no sentido oposto ao do movimento militar, ou seja, a questão militar era um fator presente no Brasil.

    Posteriormente, o que houve foi a eleição de um outro militar. O Presidente Castelo Branco, que foi o primeiro Presidente militar, estava comprometido com a reabertura política. Uma parte das forças que promoveram o golpe de 1964 na verdade via aquele movimento como transitório, querendo retornar o processo democrático depois de quatro anos. Doce ilusão! O que aconteceu foi um endurecimento: a eleição do então Ministro da Guerra, como se chamava, que era o Ministro do Exército Costa e Silva; posteriormente, o Ato Institucional nº 5, no mesmo ano da eleição de Costa e Silva, da eleição indireta pelo Congresso manipulado; e a ascensão da guerrilha, que nunca chegou, no Brasil, a ter nenhuma dimensão significativa, mas que também deu pretexto para uma repressão como nunca houve em nossa história, em matéria de quebra de direitos e em matéria de tortura e até de assassinatos.

    É um período, talvez, dos mais tristes da história do nosso País, aquele que foi de 1969 até 1973, 1974, quando entrou na Presidência o Gen. Ernesto Geisel, que efetivamente – aos poucos, é bem verdade – promoveu uma mudança, e elegemos um sucessor mais comprometido com a reabertura, que era o Gen. Figueiredo, reabertura essa que culminou com a eleição de Tancredo Neves neste Congresso pela via indireta.

    Vejam o preço, o custo que isso teve para o Brasil. Como me impressiona que levianamente venham homens públicos – são públicos: Ministros, Presidente da República – se referir a 1964 de maneira ligeira e, eu diria, até irresponsável! É preciso, sim, que nós nos debrucemos na análise da história, não para utilizá-la com finalidades espúrias, mas para aprender com ela, para extrair lições, para entender como aquilo que aconteceu na história pode nos orientar a garantir a democracia e a estabilidade no nosso País.

    Quero dizer, inclusive, que, pessoalmente, eu acabei sendo vítima de outro golpe militar – fui campeão nessa matéria –, o golpe do Chile. E fui exilado do Chile também. Vivi, Sr. Presidente e meus colegas, uma condição de exilado ao quadrado, depois de 1973, passando o período final do meu exílio exatamente no centro daquilo que nós chamávamos de "o imperialismo", antes de 1964: nos Estados Unidos, que me acolheram através do Presidente Carter.

    Estou aqui apenas dando, em algumas indicações, um tipo de informação que seria muito bom que tivéssemos. Cheguei a pensar até em sugerir para alguma Comissão que fizesse um seminário, que organizasse um seminário sobre quebra de democracia no Brasil. Por que não? Por que não debater isso no Senado? Por que não recolher, no conjunto da nossa Casa, para o Congresso Nacional, lições da experiência histórica? Poderíamos fazer isso aqui em alguma Comissão ou numa Comissão Especial. Isso seria realmente muito relevante, dados o tamanho que isso teve e a implicação que teve para o nosso País, para o seu presente, para o seu futuro e para a nossa institucionalidade.

    Quero recomendar sinceramente ao Governo que se contenha nessa exaltação de uma das piores coisas que já aconteceu no Brasil, que foi a quebra da institucionalidade em 1964. Essa quebra foi promovida por forças que tomaram o poder...

(Soa a campainha.)

    O SR. JOSÉ SERRA (Bloco Parlamentar PSDB/PODE/PSL/PSDB - SP) – ... e foi facilitada pelas forças que estavam no poder, devo dizer. E o preço, o custo não foi pago pelos indivíduos, mas foi pago pelo nosso povo, foi pago pela nossa institucionalidade.

    Quero chamar a atenção e agradeço, Sr. Presidente, esta oportunidade. Sugiro ao Presidente que tomemos uma iniciativa de promover uma discussão mais aprofundada desse assunto. Eu me ofereço, inclusive, como participante ativo. Quero dizer que não considero nenhum título honroso o fato de que sou, neste Congresso, neste Senado, o único que sofreu as consequências diretas do golpe militar, mas, de todo modo, quero dizer que essa experiência vale ser transmitida também, vale que nós a integremos dentro de uma análise econômica, política e do cenário internacional, o que era da época e o que é agora, tudo com vistas a aprender a sermos responsáveis com a democracia e com o nosso povo.

    Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/03/2019 - Página 41