Discurso durante a 33ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Indignação em virtude da suposta prioridade dada, pelo Senado Federal, a iniciativas legislativas sobre legislação penal e processual penal que se limitam a marginalizar e encarcerar a população negra e pobre. Necessidade de priorizar pautas que envolvam crimes de corrupção, infrações contra a ordem tributária, o sistema financeiro e a sonegação fiscal.

Autor
Fabiano Contarato (PT - Partido dos Trabalhadores/ES)
Nome completo: Fabiano Contarato
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
Atuação do Senado Federal, Finanças Públicas:
  • Indignação em virtude da suposta prioridade dada, pelo Senado Federal, a iniciativas legislativas sobre legislação penal e processual penal que se limitam a marginalizar e encarcerar a população negra e pobre. Necessidade de priorizar pautas que envolvam crimes de corrupção, infrações contra a ordem tributária, o sistema financeiro e a sonegação fiscal.
Publicação
Publicação no DSF de 04/04/2024 - Página 12
Assuntos
Outros > Atuação do Estado > Atuação do Senado Federal
Economia e Desenvolvimento > Finanças Públicas
Indexação
  • DEFESA, LEGISLAÇÃO PENAL, ATUAÇÃO, POLITICO, PROTEÇÃO, POPULAÇÃO CARENTE, NEGRO, PARDO.
  • COMENTARIO, MAIORIA, COMPOSIÇÃO, POPULAÇÃO, PENITENCIARIA, NEGRO, PARDO, RESULTADO, LEGISLAÇÃO PENAL, PRIVILEGIO, CLASSE SOCIAL.

    O SR. FABIANO CONTARATO (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - ES. Para discursar.) – Sr. Presidente, senhoras e senhores, meu querido Senador Styvenson Valentim, eu subo aqui hoje para tentar refletir, junto com a população brasileira, junto com todas as pessoas que estão nos acompanhando, sobre qual é efetivamente a função de um político, qual é a função de um Parlamentar? O que determina a Constituição Federal é que todo poder emana do povo, mas deve ser exercido por nós, seus representantes.

    Eu não me canso de dizer, meu querido Senador Styvenson, que passou da hora de nós derrubarmos os muros do Parlamento e interagirmos com o principal destinatário, que é a população, mas aquela população que está lá, subjugada, humilhada; aquela população que não tem vez e voz; aquela população que não tem saúde pública de qualidade, que não tem educação pública de qualidade; e que, infelizmente, tem uma elevada carga tributária. Passou da hora de a gente ser desprovido de vaidade e exercer muito mais a humildade.

    E falo isso porque, como Delegado de Polícia que fui, por 27 anos, e professor de Direito Penal e de Processo Penal, eu me assusto quando vejo, aqui no Senado, movimentos que só ratificam aquilo que eu presenciei quando atuava como delegado de polícia: a criminalização da pobreza, a criminalização da cor da pele.

    Basta traçarmos o perfil socioeconômico de quem está preso que nós vamos verificar que a grande maioria são pobres, pretos e semianalfabetos, quando os crimes de maior prejuízo são os crimes praticados por políticos, porque, quando um político desvia verba da saúde, ele está matando milhões de pessoas. Quando um político desvia verba da educação, ele está matando o sonho de milhões de jovens. Quando um político desvia verba de programas sociais, como Prouni, Pronatec, Minha Casa, Minha Vida e Luz para Todos, não me importa qual seja, ele está atingindo uma universalidade de vítimas.

    Vejo aqui no Senado, infelizmente, um movimento só para aumentar a população carcerária de pobres e pretos. E cito dois exemplos. Passou na Comissão de Segurança Pública aumento da pena do crime de furto se for furto de cabo de energia. Ora, nós estamos aqui simplesmente chancelando para aumentar a pena daquela população que, infelizmente – o crime como um fenômeno social – é desprovida de todos os direitos elementares.

    Agora é cômodo para nós, na grande maioria homens, brancos, ricos e engravatados, agir de forma contundente contra pobres. Eu não vejo o empenho desta Casa, por exemplo, para tipificar como crime hediondo, crime de corrupção – corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, concussão –, crimes contra a ordem tributária, crimes contra o sistema financeiro, crimes de sonegação fiscal, mas é fácil para nós agirmos de forma contundente contra uma camada economicamente menos favorecida.

    Aumentar a pena de um furto de cabo de energia – e eu tipifico onde está no Código Penal. No art. 155, caput, ipsis litteris está escrito: "Art. 55 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: Pena – reclusão, de um a quatro anos, e multa." E aí nós vamos aumentar a pena se for furto de cabo de energia.

    A gente tem que agir de forma contundente é contra os receptadores. A gente tem que agir de forma contundente contra traficantes. Mas a gente tem que fazer essa faxina moral para responsabilizar todo agente público, todo agente político, todo servidor público que não cumprir com os princípios que regem a administração pública, que não cumprir com o art. 37 – legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.

    Agora, agir de forma contundente contra uma camada economicamente menos favorecida, isso não posso me furtar de subir aqui e denunciar.

    Aumentou-se a pena – olhe só – do crime de estelionato. Estelionato está no art. 171, que diz:

Art. 171. Obter [...] vantagem [...] [indevida] induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa [...]

    Quer dizer, é um crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa, mas para o qual a Comissão de Segurança Pública estava querendo aumentar a pena para 19 anos de cadeia.

    Vocês sabem qual é a pena de um homicídio? E aí nós estamos falando no principal bem jurídico, que é a vida humana. É de 6 a 20 anos. Foge à razoabilidade, mas, infelizmente, nós, políticos, aqui no Senado, estamos tendo esse comportamento, que é fácil, para agir de forma contundente contra uma camada, e, mais uma vez, uma camada menos favorecida.

    Não sou eu que estou dizendo. Basta você buscar aqui o perfil da população carcerária hoje no Brasil. Pasmem vocês: quase que 70%, 68,2% é composta de pretos e pardos. É isso: 68,2%.

    Passou da hora de nós, políticos, efetivamente legislarmos de forma a dar tratamento igual a comportamento igual, mas nós temos que fazer essa faxina moral a começar pelo Parlamento, a começar pelos crimes contra a ordem tributária, a começar pelos crimes contra o sistema financeiro, porque aí, sim, nós estaremos dando vida, vez e voz àquela determinação constitucional expressa no art. 5º, de que todos somos iguais perante a lei, independentemente da raça, cor, etnia, religião, origem.

    Obrigado, Sr. Presidente.

    Só faço questão de vir aqui mais uma vez para não perder a capacidade de me indignar quando, infelizmente, nós sabemos qual é o retrato da população que mais sofre; a população que está aí nos bolsões de pobreza; a população, Senador Styvenson, que não tem saneamento básico. É essa população que eu conheço; a população que não tem iluminação pública; essa população que tem esgoto a céu aberto; essa população com as escolas públicas sucateadas, sem bibliotecas, sem acessibilidade, sem quadra poliesportiva, e você tem essa desigualdade no sistema educacional. É dessa população que eu venho; é essa população que, se precisar fazer um exame de tomografia ou uma cintilografia, vai morrer, muitas vezes, nas filas dos hospitais esperando uma oportunidade, sendo que a saúde pública, a educação pública, a moradia, o trabalho, a redução da carga tributária são uma determinação constitucional.

    Fica o alerta, fica a reflexão, mas eu sempre vou subir aqui, motivado talvez pelo poeta Thiago de Mello, quando ele finaliza com uma frase de que eu gosto muito e que diz e que quero dizer para vocês: Nós não temos caminho novo. O que temos de novo é o jeito de caminhar.

    Obrigado, Sr. Presidente.

    O SR. PRESIDENTE (Styvenson Valentim. PODEMOS - RN) – Senador Contarato, sem aparteá-lo, mas pensando no que o senhor está discursando, concordo em boa parte que esta Casa falha quando não se legisla em desfavor do próprio legislador, que se beneficia.

    A gente está assistindo, através do STF, a uma extensão do foro privilegiado, que eu acho que é outra aberração. É outra aberração a Justiça brasileira estar se envolvendo nisso, já que a gente precisa reduzir, retirar.

    Outro ponto em que eu e o senhor coincidimos, pelo menos no nosso discurso, é num fato como aquele em Tatuapé, em São Paulo, há uns dois dias, em que um empresário, em alta velocidade, sob possível influência de psicoativo, álcool ou não, tira a vida de uma pessoa, ele passa 30 ou 32 horas sem se manifestar e, quando vai à delegacia, sai solto.

    Crimes como esse revoltam a população, como revoltam crimes de pequena significância. O que a gente está discutindo aqui, como nós somos representantes da população, é levar o que é de interesse da população. O que é de interesse da população também é ver agir contra nós mesmos, contra aquele político que se utiliza do cargo ou da função para não cumprir o que deveria ser cumprido para reduzir a criminalidade neste país. O senhor disse tudo: a educação não presta, falha.

    O Senador Kajuru acabou de discursar sobre uma forma de o Governo manter alunos dentro da escola, e, mesmo assim, ainda existe uma evasão altíssima. O número de encarcerados, do ano passado para cá, cresceu 21%. É um número que só cresce, mas ninguém vê o político, o engravatado, o homem branco ou o que está sentado dentro de casas como esta serem presos.

    Então, este nosso discurso eu creio que deveria ser igual para todos. Não é só para afetar aquela camada mais vulnerável, mas, o que a população espera que aconteça, não acontece. Nada. Infelizmente, é a sensação que nós temos aqui e lá fora.

    O SR. FABIANO CONTARATO (Bloco Parlamentar da Resistência Democrática/PT - ES) – Perfeito.

    Só pedindo a complementação aqui, já que o senhor citou um crime envolvendo uma pessoa de poder econômico elevado e sob suspeita de estar conduzindo sob influência do álcool ou qualquer substância de efeito psicoativo, V. Exa. sabe melhor que eu ou tão bem quanto eu que, no Código de Trânsito Brasileiro, no art. 277, estava escrito que todo condutor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização será submetido ao teste de alcoolemia. Veja que o legislador tinha utilizado o verbo ser com tamanha imperatividade que ele não usou a palavra "poderá", era obrigatoriedade. Então, no direito coletivo, dirigir não é um direito, mas um privilégio, e é por isso que o nome da primeira habilitação é permissão.

    Se, no poder de fiscalização, você parar um motorista, e ele se recusar, a recusa dele deve ter o poder de presumir que ele fez uso. Aí é legislar em defesa da vida. Mas o que nós fizemos? Falo "nós", eu não estava nesta Casa, nem V. Exa., mas nós, o Parlamento, tiramos o verbo ser, tiramos a expressão "será submetido" e colocou "poderá ser". E aí você vê mais uma vez o recorte socioeconômico, porque uma pessoa instruída, ante uma fiscalização por parte do poder público, seja da Polícia Militar, que faz um brilhante trabalho, seja da Guarda Municipal ou da Polícia Rodoviária Federal, vai, efetivamente, se recusar. Agora, nós sabemos que até na forma como aborda um pobre num carro velho ele vai repensar, sob pena de ser responsabilizado por um crime, eventualmente, de desobediência, que nem vai existir.

    Mas o que eu quero falar é que, até nesse contexto de forma elitizada, no Código de Trânsito Brasileiro, nós retrocedemos, não para punir aquele que se recusou... Presume-se. A lei é clara. E isso é uma determinação constitucional, no art. 5º, II: "[...] ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". E existia uma lei que determinava que o motorista fosse submetido ao teste? Sim. O art. 277. Volto a repetir ipsis litteris: "Todo condutor [...] envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização [...] será submetido a testes [...]". Não fez? Eu vou presumir que você está sob influência de álcool ou substância de efeito psicoativo que determine dependência. Aí é legislar em defesa da vida. Aí é, sim, proteger a vida humana. Mas não! Nós fizemos foi: arranque-se o verbo ser e coloque-se a faculdade, e aí passa para a população que, infelizmente, o pobre vai fazer o teste do bafômetro, e o rico não vai fazer.

    Essa é mais uma reflexão para nós termos a plena convicção de que nós temos que legislar para todos. A minha reflexão aqui, sempre na minha indignação, é a de que nós temos legislado, mas não é para todos. Nós temos legislado de forma contundente, infelizmente, o que vai fazer com que aquela camada menos favorecida, que já está sendo vilipendiada de todos os seus direitos – de todos os seus direitos –, mais uma vez, ali, vá sofrer o rigor do Estado, que vai criminalizar a pobreza, que vai criminalizar a cor da pele.

    Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é. Eu quero ter a certeza de que, cumprindo um mandato de Senador da República pelo Estado do Espírito Santo, vou estar aqui, incessantemente lutando para que essa premissa constitucional seja aprovada.

    Concordo ipsis litteris. Foro privilegiado por quê? Todos somos iguais perante a lei. Agora, eu concordo também que nós poderíamos legislar em favor de um trânsito seguro, porque o trânsito no Brasil é o terceiro que mais mata no mundo. Se nós colocássemos que vale a presunção de culpa se ele se recusa? Quem nada deve nada teme. É simples assim. Nas ações de investigação de paternidade, isso é uma premissa. A recusa do suposto pai em fornecer o sangue para o exame de paternidade presume a paternidade; mutatis mutandis na fiscalização dentro do sistema viário: a recusa do motorista em se submeter ao teste presume que ele fez uso. Aí, sim, a vida humana, a integridade física estará sendo tutelada pelo Estado brasileiro.

    Obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 04/04/2024 - Página 12