Discurso durante a 80ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Preocupação com o afastamento de magistrados que atuaram na Operação Lava Jato, determinado no âmbito de procedimentos disciplinares instaurados pelo CNJ, em razão do suposto risco que tal medida representa para o princípio da independência judicial.

Autor
Sergio Moro (UNIÃO - União Brasil/PR)
Nome completo: Sergio Fernando Moro
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
Atuação do Judiciário:
  • Preocupação com o afastamento de magistrados que atuaram na Operação Lava Jato, determinado no âmbito de procedimentos disciplinares instaurados pelo CNJ, em razão do suposto risco que tal medida representa para o princípio da independência judicial.
Publicação
Publicação no DSF de 15/06/2024 - Página 10
Assunto
Outros > Atuação do Estado > Atuação do Judiciário
Indexação
  • PREOCUPAÇÃO, COMPROMETIMENTO, INDEPENDENCIA, JUIZ, TRIBUNAL DO JURI, JUDICIARIO, MOTIVO, AFASTAMENTO, DESEMBARGADOR, ATUAÇÃO, OPERAÇÃO LAVA JATO, RESULTADO, DECISÃO, CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (CNJ).

    O SR. SERGIO MORO (Bloco Parlamentar Democracia/UNIÃO - PR. Para discursar.) – Agradeço, Senador Girão. Não devo usar todo esse tempo.

    Quero aqui, inicialmente, saudar V. Exa., presidindo esta sessão não deliberativa agora, saudar igualmente os servidores aqui da Casa, com toda a sua dedicação, e cumprimentar os ilustres visitantes, tanto os que estão aqui embaixo como os que estão ali em cima, especialmente o pessoal do Paraná, embora seja claro que temos apreço por todos do Brasil afora.

    Senador Girão, esta semana ficamos com a impressão de que o Governo Lula está derretendo. E infelizmente... ou felizmente, na verdade. Infelizmente para o país, porque o pais merecia um Governo melhor, mas felizmente isso vem se sucedendo semana a semana, e isso dá maiores expectativas, esperanças de que nós possamos avançar em pautas positivas.

    Mas não é sobre o Governo Lula que gostaria de falar no momento. Nós estamos aqui, no Senado Federal, sob o busto de Ruy Barbosa, que foi um grande Senador da República, foi o maior jurista brasileiro, autor intelectual da nossa primeira Constituição republicana, de 1891, advogado, candidato a Presidente – na chamada campanha civilista, contra Hermes da Fonseca – e também candidato outras vezes.

    Mas ele foi também, Senador Girão, um grande defensor da independência da magistratura, e nos deixou escrita uma das mais belas páginas da história brasileira quando defendeu o Juiz Alcides de Mendonça Lima aqui no Supremo Tribunal Federal. Tinha uma condenação injusta que havia sido exarada contra ele pelo então Superior Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Essa história é bastante pertinente no momento, e a gente sabe que existe um certo rancor atual em relação aos juízes, a magistraturas, mas é importante lembrar, como dizia o próprio grande Ruy Barbosa, que a independência da magistratura é "a alma e o nervo da liberdade". O juiz vinculado à lei, Senador Girão, é uma garantia da liberdade e dos direitos do cidadão. Podemos até discordar de decisões judiciais, o Judiciário está sujeito a crítica, mas juízes independentes e vinculados à lei são fundamentais para a nossa liberdade.

    A história – vou tomar a liberdade aqui de relatar – ocorreu nos seguintes termos. No final do século XIX, os estados tinham competência para legislar sobre direito processual, ou seja, não havia um código nacional de processo civil e processo penal. E o Estado do Rio Grande do Sul, então governado pelo chamado Presidente Júlio de Castilhos – na época não era "Governador", era tratado por "Presidente" –, editou um novo Código de Processo Penal, no qual o julgamento pelo júri não era mais sigiloso. Os jurados tinham que revelar publicamente a sua posição quanto ao veredito.

    Isso era um problema, Senador Girão, porque deixava os jurados à mercê das tiranias locais, dos caudilhos locais, dos poderosos locais, que, então, dominariam ali a Justiça. E a Constituição de 1891 garantia entre os direitos fundamentais a soberania do júri. E o júri, mais do que uma instituição de julgamento, é uma garantia também de o cidadão ser julgado pelos seus pares, por juízes leigos, muitas vezes menos infensos à influência do poder político.

    E, num caso específico submetido ao Juiz Alcides de Mendonça Lima lá no Rio Grande do Sul, o juiz entendeu que aquela norma do Código de Processo Penal do Rio Grande do Sul era inconstitucional e deixou de aplicar a lei, exercendo aquilo que se chama de controle de constitucionalidade difuso e incidental. O Júlio de Castilhos, que era o Presidente do Estado do Rio Grande do Sul, ficou furioso e determinou, foram estas as palavras dele, que se processasse aquele "juiz faccioso". E ele foi, então, condenado no Superior Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por dois votos a um, por crime de abuso de autoridade.

    E aí vem Ruy Barbosa, que está aqui, um dos maiores juristas e políticos brasileiros, um símbolo de integridade, diplomata bem-sucedido – como V. Exa. disse, o Águia de Haia –, mas acima de tudo um defensor das liberdades aqui no Brasil. Pois bem, ele assumiu a defesa do Juiz Alcides perante o Supremo Tribunal Federal, ingressou com habeas corpus e escreveu uma das mais belas peças da nossa literatura jurídica, que qualquer um pode encontrar na internet: Posse de direitos pessoais: o júri e a independência da magistratura. E Ruy Barbosa diz, nesse texto, primeiro, que o Juiz Alcides de Mendonça Lima estava certo: era essencial à soberania do Tribunal do Júri que fosse mantido o sigilo sobre os vereditos dos jurados, para que os jurados não ficassem expostos a pressões ou retaliações dos poderosos locais.

    Mas ele vai além e diz que, ainda que o juiz estivesse errado, nós não podemos criminalizar a hermenêutica, nós não podemos criminalizar a interpretação da lei, porque isso equivale a criminalizar o direito de opinião de cada cidadão. E aí nós não teríamos juízes independentes e servos da lei, mas juízes tementes à retaliação dos poderosos; juízes que ficariam sujeitos às pressões políticas para que proferissem julgamentos de interesse dos poderes políticos daquele momento. E vejam: Ruy Barbosa!

    Por que eu coloco isso, Senador Girão? Infelizmente, hoje nós temos juízes no Brasil que cumpriram o seu dever e que sofrem uma tremenda injustiça, sendo tratados de maneira inadequada, às vezes pelos próprios órgãos do Poder Judiciário. Porque, quando a gente fala em independência do juiz, não é só independência frente a influências externas, mas igualmente em relação a influências internas. E nós temos pelo menos dois exemplos, que a meu ver são categóricos, de Desembargadores, pessoas honradas lá do Rio Grande do Sul, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região: o Desembargador Carlos Thompson, que já foi Presidente daquela Corte, e o Desembargador Luciano Flores de Lima, que estão afastados por uma decisão administrativa do Conselho Nacional de Justiça.

    Respeitamos o Conselho Nacional de Justiça, mas a função primordial do Conselho Nacional de Justiça, Senador Girão... Claro que é importante buscar uma melhor organização e regulação dos serviços judiciários, claro que é importante exercer seus poderes disciplinares. Há juízes que merecem punição: o juiz que se corrompe, o juiz que comete a peita, que era como se chamava a corrupção antigamente judiciária, mas jamais, jamais servir como uma espada em cima da cabeça do juiz que cumpre o seu dever, que é o caso desses dois Desembargadores do TRF4. Foi uma decisão por maioria, que eu espero sinceramente que o CNJ possa rever, em breve, para que esses juízes voltem à sua atividade e tenham também a sua honra pública resgatada, porque nada fizeram que justificasse esse afastamento.

    E me socorro, aqui, do voto, Senador Girão, que foi categórico, foi brilhante – à altura da defesa que fez Ruy Barbosa ao Juiz Alcides de Mendonça Lima –, do Ministro Barroso. Sei até que V. Exa. tem críticas ao Ministro Barroso, mas, nesse julgamento, ele foi brilhante, fez um voto contundente. E a principal função do Conselho Nacional de Justiça é distinguir o joio do trigo. Ele não pode servir como ameaça, como um veículo de intimidação de juízes ou um risco à independência da magistratura.

    Na próxima semana, nós teremos aqui a sabatina do Ministro Mauro Campbell, lá na CCJ – um ministro honrado, com histórico profissional significativo, que vai assumir esse cargo –, e vou fazer questão de contar essa mesma história, ainda que ela leve um pouco de tempo. Isso foi em 1896, e estamos retrocedendo no que se refere às garantias e à independência da magistratura. Isso não são privilégios: não é um privilégio do juiz, um privilégio do desembargador, um privilégio do magistrado! Se nós não tivermos garantia da independência da magistratura, se nós não tivermos juízes que sejam protegidos contra a retaliação dos poderosos, quem vai ousar enfrentar esses interesses especiais contrariados? Quem vai ousar, por exemplo, ser um juiz na Operação Lava Jato, se vai ficar sujeito depois a toda espécie de retaliação?

    Eu tenho a esperança de que o CNJ reveja em breve essa decisão, que foi, a meu ver, absolutamente injusta – com todo o respeito aos integrantes que assim votaram –, porque não serve o CNJ ao seu papel próprio ao cometer um erro dessa magnitude.

    Também aqui registro a minha expectativa de que, nos processos administrativos abertos contra esses magistrados e contra outros magistrados que trabalharam na Operação Lava Jato – estes que não foram afastados: a Juíza Gabriela Hardt, o Juiz Danilo Pereira Júnior –, se apurem ali os fatos, porque ninguém tem receio de apuração nenhuma, e que sejam devidamente arquivados já que o que se vislumbra de pronto são acusações as mais fantasiosas que se podem conceber pela mente humana. Cogitar acusar os juízes por cumprirem o seu dever com valentia, com coragem, juízes vinculados à lei? Podemos seguir por esse caminho, Senador Girão.

    Por isso que eu digo aqui que, mesmo que a gente discorde de uma decisão judicial, temos que recorrer nos processos, temos que buscar enfrentá-la, reformá-la, criticá-la até – o poder político pode criticar decisões, não tem problema nenhum! Agora, utilizar o peso desvirtuado administrativo, disciplinar ou criminal contra juízes que cumpriram seu dever, juízes da Lava Jato?! E não falo isso em causa própria, sou Senador agora, não estou mais sujeito ao poder disciplinar do Conselho Nacional de Justiça, mas tenho essa obrigação de defender a magistratura, mesmo não sendo mais um magistrado, mas sabendo da importância da magistratura para a liberdade e para os direitos de cada cidadão.

    Muito obrigado, Senador.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/06/2024 - Página 10