Discurso proferido da Presidência durante a 12ª Sessão Solene, no Congresso Nacional

Sessão solene destinada a homenagear o centenário de nascimento de Mãe Stella de Oxóssi, com destaque para a relação pessoal com Mãe Stella e com o Terreiro Axé Opô Afonjá.

Autor
Jaques Wagner (PT - Partido dos Trabalhadores/BA)
Nome completo: Jaques Wagner
Casa
Congresso Nacional
Tipo
Discurso proferido da Presidência
Resumo por assunto
Homenagem:
  • Sessão solene destinada a homenagear o centenário de nascimento de Mãe Stella de Oxóssi, com destaque para a relação pessoal com Mãe Stella e com o Terreiro Axé Opô Afonjá.
Publicação
Publicação no DCN de 19/06/2025 - Página 23
Assunto
Honorífico > Homenagem
Matérias referenciadas
Indexação
  • SESSÃO SOLENE, CONGRESSO NACIONAL, HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, ANIVERSARIO, LIDER, RELIGIÃO, Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé.

    O SR. PRESIDENTE (Jaques Wagner. Bloco/PT - BA. Para discursar - Presidente.) – Anuncio as autoridades civis, religiosas e militares aqui presentes.

    Representando o Governador do Estado da Bahia, a Sra. Secretária de Assistência e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia, Fabya Reis. (Palmas.)

    Representando o Presidente da Fundação Cultural Palmares, a Sra. Diretora do Departamento de Proteção ao Patrimônio Afro-brasileiro, Fernanda Thomaz. (Palmas.)

    Sr. Secretário de Turismo do Estado da Bahia, Luís Maurício Bacellar. (Palmas.)

    Sra. Secretária de Reparação da Prefeitura Municipal de Salvador, Isaura Genoveva. (Palmas.)

    Sra. Presidente da Associação das Tradições Culturais e Sociais Afro-brasileiras e Ameríndias do Estado de Goiás, Andreia Carneiro Bezerra. (Palmas.)

    Agradeço a elas e parabenizo o dueto de violão e flauta de Bruna Sebba e Any Silva. (Palmas.)

    Neste momento, eu vou fazer o meu pronunciamento em homenagem ao centenário de Mãe Stella.

    Mas antes do pronunciamento formal, eu quero só dizer da relação que eu pessoalmente tinha com Mãe Stella e com o Terreiro Axé Opô Afonjá. Por diversas vezes, eu estive naquela casa da religião de matriz africana, com minha esposa Fátima, e várias vezes, várias, me consultei com Mãe Stella sobre decisões que tinha a tomar.

    E sempre conto para muita gente de uma delas, em que eu estava no desafio da minha reeleição, e não citarei nomes, para não ofender ninguém, e eu trabalhava para incorporar um outro nome à nossa chapa, que era muito questionado, desde dentro de casa, por minha esposa, até os nossos companheiros de caminhada, companheiros e companheiras. Então, num domingo, eu pedi a Fátima para ligar para Mãe Stella e dizer que eu precisava fazer uma consulta a ela. E fui ao terreiro, dia de domingo. Ela me pediu, e eu assim fiz, cortei os quiabos necessários para fazer a consulta e, independentemente de não ser da religião de matriz africana, mas como Governador, sempre respeitei todas as religiões, principalmente as de matriz africana, que sofreram até o Governo do Governador Prof. Roberto Santos, pois os terreiros eram tratados como caso de polícia. Eu faço questão de citar isso, porque isso é muito recente – é da década de 70, do final da década de 70, de 75. Na Bahia, os terreiros e o povo de santo ainda eram tratados com uma questão policial, e ajudei muitos terreiros.

    Naquela consulta, ela estendeu na mesa o manto dela, com um caderno do lado para anotar, um bloco, e foi jogando os búzios. E eu dizia para ela que eu queria incorporar, e ela me perguntava: "Mas eu ouvi dizer que você está muito bem na pesquisa, você precisa incorporar mais alguém?". E eu respondi: "Mãe Stella, eu aprendi que, para a gente caminhar na política, é preciso juntar, e não espalhar". Na quarta vez que ela me perguntou: "Mas você precisa mesmo trazer essa pessoa?". Eu falei: "Mãe Stella, já é a quarta vez que a senhora me pergunta". Como eu sou de Oxalá, ela tinha muito carinho por mim. Eu sou Oxalá velho. Aí eu pedi: "Por que a senhora está me perguntando isso pela quarta vez?". Ela falou: "Porque eu já joguei quatro vezes os búzios, e o seu sangue não cruza com o sangue dessa pessoa que você quer trazer". E eu, quando cheguei em casa, falei para a Fátima: "Eu fui confuso e voltei mais confuso ainda da sessão, porque ela não me deu o caminho, só me disse que...".

    Resumo da ópera: num determinado domingo, a pessoa que eu queria incorporar me liga – até porque já estava em tudo o que é blog – para dizer: "Olha, eu vou tomar outro caminho. Não vou seguir com você, fiz uma opção por outro grupo político". Eu falei: "Tudo bem, cada um segue seu caminho". Uma hora e pouco depois – seguramente já estava em todos os blogs –, toca o telefone. Aí a Fátima disse: "É Mãe Stella querendo falar com você". Aí ela, de lá, falou: "Eu não disse, meu filho?". (Risos.)

    Então, eu conto isso, porque isso me emocionou muito na época. Primeiro, a gentileza de ela me atender e, depois, a precisão com que os búzios dela indicaram aquilo que acabou acontecendo um tempo depois. Eu conto isso porque me marcou muito.

    A imagem da Bahia é feminina. Dizemos isso com orgulho. Os brasileiros, em geral, quando pensam amorosamente na Bahia e querem evocar o seu encanto, fazem em sua mente uma representação carinhosa da boa terra. Recorrem à figura de uma mulher negra, doce, majestosa, maternal.

    As icônicas baianas que vendem acarajé nas ruas de Salvador, ou desfilam com garbo nas escolas de samba cariocas, ou de Norte a Sul, pontificam nos terreiros de nosso país e servem de modelo irresistível. Não é sem razão: temos na Bahia um vasto panteão de mulheres ilustres, brancas e negras, mas as negras prevalecem, porque negro é o nosso povo.

    Uma antropóloga americana que, em começo do século XX, fez pesquisa em Salvador, chamou a nossa capital a cidade das mulheres. Não foi sem motivo: a energia, o brilho e a espontaneidade das senhoras negras que Ruth Landes conheceu nos terreiros baianos a impressionaram muito. Essas damas enérgicas, sábias e criativas ficaram conhecidas nos meios populares como mulheres de partido alto.

    Muito lhes deve a Bahia, muito lhes deve o Brasil, pois elas foram as principais responsáveis pela preservação de um legado cultural muito rico. Não diminui em nada a importância dos nossos babalorixás, tatas, ogãs e babalaôs o reconhecimento do protagonismo feminino na formação do candomblé. O fato de que eles mesmos o reconheçam dá testemunho de sua grandeza. O que rebaixa os homens é bem o oposto: a obsessão do androcentrismo, a atitude machista, o empenho estúpido em desvalorizar as mulheres.

    Entre as muitas coisas boas que o candomblé nos trouxe está o ensinamento de uma moralidade superior que exalta a força feminina, valoriza de um modo especial as crianças e os velhos e repudia a discriminação por raça, cor, orientação sexual ou crença.

    O povo de santo segue seus preceitos, pratica com zelo seus ritos, celebra seus ancestrais, mas não hostiliza religião alguma. Antes considera que todas podem ser caminhos legítimos para a elevação espiritual da humanidade. Pais e mães de santo transmitem com amor esse ensinamento e têm portas abertas para todos.

    Hoje nos reunimos aqui para celebrar a memória de uma grande mulher, uma sacerdotisa emérita e uma cidadã exemplar: Maria Stella de Azevedo Santos, a inesquecível Mãe Stella de Oxóssi.

    Nascida em Salvador, em 2 de maio de 1925, ela tem presentemente o seu centenário celebrado com carinho em todo o país. No Brasil inteiro, e mesmo no exterior, se preserva amorosamente a sua lembrança.

    Ao longo da vida frutífera de Odé Kayodê, muitas pessoas de origens diversas, brancos, negros, indígenas, mestiços, não só religiosos de diferentes credos, como também agnósticos e ateus, lhe testemunharam respeito e admiração, conquistados que foram por sua figura imponente, benévola e generosa.

    Agora esse testemunho se renova com o acento da saudade. Não poderiam o Senado e a Câmara faltar a essa homenagem. Ela visa a mais do que uma recordação, representa um chamamento ao cultivo de valores que Mãe Stella defendeu. Vale lembrar que ela pugnou pelo respeito ao legado cultural afro-brasileiro e à dignidade das mulheres. Esteve na linha de frente do combate à intolerância e ao racismo, lutou contra o preconceito e a barbárie.

    Logo cedo, a jovem Stella mostrou vocação para cuidar de seu povo. Formou-se pela Escola de Enfermagem de Saúde Pública e exerceu zelosamente, por mais de 30 anos, a função de visitadora sanitária. Desenvolveu, assim, um profundo interesse pelas difíceis artes do cuidado, ganhando uma perícia que manifestaria também de outro modo na sua experiência religiosa.

    Era ainda muito moça quando entrou para o candomblé. Esteve perto de ser iniciada por Mãe Menininha do Gantois, mas como ela mesmo costumava dizer, os orixás lhe deram outro caminho, levando-a ao terreiro que mais tarde viria a reger. Nessa altura, a comunidade do Axé Opô Afonjá ainda tinha à frente sua fundadora, a grande Ialorixá Eugênia Anna dos Santos, Mãe Aninha, brilhante sacerdotisa cuja fama até hoje ecoa na obra dos estudiosos do candomblé. Mãe Aninha entregou a noviça aos cuidados de uma Ebomi que viria a ser sua sucessora, a famosa Mãe Senhora. A iaô Maria Stella tinha, então, apenas 14 anos de idade. Era, pois, uma adolescente quando se tornou sacerdotisa, consagrada ao orixá Oxóssi, com o nome ritual de Odé Caiodê.

    No candomblé, a carreira do iniciado inclui um longo aprendizado de liturgias complexas e a passagem por sucessivas etapas rituais que correspondem a graus de desenvolvimento espiritual. A trajetória mística de Stella de Oxóssi foi luminosa. Bem cedo ela mostrou qualidades extraordinárias que a fizeram crescer no axé, tanto que muitos esperavam vê-la suceder sua iniciadora.

    Dessa vez, porém, a escolhida foi outra Ebomi, muito querida e respeitada: Ondina Valéria Pimentel, chamada por todos no terreiro de Mãezinha. Com a morte de Mãezinha, Stella de Oxóssi a sucedeu, eleita que foi pelos Orixás, de acordo com o Oráculo de Ifá. Por seu carisma, a nova Ialorixá ganhou logo um prestígio que a projetou muito além dos limites de seu terreiro, tornando-a uma das mais importantes lideranças religiosas do Brasil.

    A Bahia conta com uma vasta galeria de mulheres ilustres, que fizeram história e fascinam até hoje o nosso povo. Quando se evocam os combates pela independência do Brasil que tiveram lugar em Salvador e no Recôncavo Baiano, as guerreiras Maria Quitéria e Maria Felipa são as figuras heroicas mais celebradas por nossa gente. Não nos faltam educadoras, poetas, artistas e defensoras dos direitos humanos com histórias que nos enchem de orgulho.

    Nesse panteão, têm lugar especial grandes Mães de Santo muito veneradas, jamais esquecidas. Não é fácil destacar-se nesta galeria que conta com damas do porte de Mãe Menininha do Gantois, Olga de Alaketo, Tia Massi, Gaiaku Luísa, sacerdotisas imortalizadas pelo amor de seu povo. Só mesmo uma estrela de primeira grandeza pode mostrar-se esplêndida em semelhante constelação.

    Já é grande o fastígio que cerca o trono do Axé Opô Afonjá. Este Templo ilustre, que, tal como o Gantois, se originou do mais antigo terreiro do Brasil ainda hoje em funcionamento, o llê Axé lyá Nassô Oká, sempre se notabilizou, desde os tempos de sua fundadora, Mãe Aninha, pelo fascínio que exerce sobre a elite intelectual baiana. Não só etnógrafos e historiadores como também artistas e escritores de renome – a exemplo de Carybé, Dorival Caymmi e Jorge Amado – frequentaram esse terreiro, que ainda atrai gente ilustre de todo o país.

    Mãe Stella de Oxóssi foi responsável por manter o fascínio da luminosa Casa de Xangô, que graças a ela consolidou seu prestígio de prolífico centro cultural, disputando com casas irmãs, como o Gantois.

    Ainda nos primeiros tempos do Afonjá, um babalaô famoso, o Venerável Ajimudá, Martiniano Eliseu do Bonfim, que apoiava a Mãe Menininha, trouxe da África e recriou, no terreiro dela, a instituição dos Obás de Xangô. Essa instituição existe até hoje e goza de grande prestígio em meio ao povo de santo.

    O nosso grande músico Gilberto Gil, que foi nosso Ministro da Cultura entre 2003 e 2008, é um dos Obás de Xangô, designado por Mãe Stella de Oxóssi. Essa grande ialorixá logo se tornou um expoente da inteligência baiana. Fez-se uma escritora notável. Antropólogos afirmam que, em seus mais importantes livros, ela fez uma excelente etnografia do seu próprio terreiro, uma bela explanação do rito nele observado. Conseguiu a façanha de realizar uma exposição clara sem ferir o silêncio místico, pois cuidou de resguardar os mistérios da sua religião.

    Ao tempo em que sempre defendeu um modo peculiar de transmissão de conhecimento, que caracteriza o candomblé, ela insistiu em provocar, com seus escritos, a reflexão do povo de santo. Valorizou os saberes veiculados pela tradição oral, mas empenhou-se em promover o letramento da sua comunidade, onde criou uma creche, que depois se tornaria a Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos, e aí promoveu oficinas complementares ao ensino básico. Deve-se também à sua iniciativa a criação do Museu Ohun Lailai, voltado para a preservação das peças e documentos que dão testemunho da história do candomblé.

    Com muito brilho, Mãe Stella de Oxóssi participou da II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, realizada em Salvador, em 1983, por decisão do Magnífico Reitor Wande Abimbola, da Universidade do Ilê Ifé.

    Celebrou-se, então, por contestar a ideia colonialista de que o candomblé se resume a um sincretismo, algo como uma seita à margem da religião católica. Defendeu, então, a originalidade do culto aos orixás, empenhando-se em promover o reconhecimento do candomblé como uma religião autêntica e independente. Desse modo, deu combate a preconceitos oriundos de uma perspectiva racista.

    Ganhou logo projeção internacional, sendo aclamada na III Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura, realizada em Nova York, no ano de 1986. Integrou também a comitiva organizada por Pierre Verger, para as comemorações da Semana Brasileira na República do Benim. Tomou parte da campanha que resultou no tombamento do Ilê Axé Iyá Nassô Oká, que, em 1984, se tornou o primeiro terreiro a ser reconhecido como patrimônio histórico do Brasil.

    Mais tarde, a incansável Mãe Stella solicitou e obteve o tombamento do Axé Opô Afonjá, efetivado em 1999 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

    Mãe Stella já era uma escritora admirada, autora de importantes obras, quando se distinguiu também na crônica jornalística, assinando uma coluna no jornal A Tarde. Tanto se distinguiu nesta atividade que recebeu, em 2001, o Prêmio Estadão, conferido pelo jornal O Estado de S. Paulo, por seu desempenho na condição de fomentadora da cultura.

    Já reconhecida como uma autoridade notável no campo das humanidades, Mãe Stella recebeu, em 2005, da Universidade Federal da Bahia, o título de Doutora Honoris Causa. Em 2009, a Universidade do Estado da Bahia outorgou-lhe o mesmo título honorífico.

    Em 2013, a escritora Maria Stella Azevedo Santos foi escolhida para integrar a Academia de Letras da Bahia, ocupando a cadeira 33, que tem como patrono Castro Alves. Tomou posse no dia 12 de setembro do mesmo ano. Depois de seu falecimento, ocorrido em 27 de dezembro de 2018, a referida cadeira veio a ser ocupada pelo Prof. Dr. Muniz Sodré, um Obá de Xangô de seu terreiro.

    Hoje, celebrando seu centenário com muita saudade, prestamos homenagem mais do que merecida à grande Ialorixá Odé Caiodê, Mãe Stella de Oxóssi, e a todo o povo negro, que ela tão bem representou. Mas homenagear uma pessoa como a cidadã Maria Stella de Azevedo Santos não se resume a um ato cerimonial, implica nos comprometermos efetivamente com as causas que ela defendeu: o combate ao racismo e à intolerância; o fomento da educação e da cultura; a defesa dos direitos das mulheres, dos idosos e das crianças.

    Que seja esse o nosso compromisso.

    Axé! Viva Mãe Stella de Oxóssi! (Palmas.)

    Neste momento, convido todos a assistirem ao vídeo institucional preparado pela TVE da Bahia.

(Procede-se à exibição de vídeo institucional.)

    O SR. PRESIDENTE (Jaques Wagner. Bloco/PT - BA) – Convido todos a assistirem à apresentação do Hino do Ilê Axé Opô Afonjá, pela comitiva do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.

(Procede-se à apresentação do Hino do Ilê Axé Opô Afonjá, pela comitiva do Terreiro Ilê Axé Opô Afonjá.) (Palmas.)

    O SR. PRESIDENTE (Jaques Wagner. Bloco/PT - BA) – Agora faremos o lançamento comemorativo.

    Convido o Sr. Superintendente dos Correios em Brasília, Paulo Henrique Soares de Moura, para conduzir o lançamento do selo alusivo aos cem anos de nascimento de Mãe Stella de Oxóssi, em conjunto com os requerentes desta sessão.


Este texto não substitui o publicado no DCN de 19/06/2025 - Página 23