Discurso no Senado Federal

APOIO A LEGALIZAÇÃO DO JOGO DO BICHO.

Autor
Aureo Mello (PRN - Partido da Reconstrução Nacional/AM)
Nome completo: Aureo Bringel de Mello
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JOGO DE AZAR.:
  • APOIO A LEGALIZAÇÃO DO JOGO DO BICHO.
Publicação
Publicação no DCN2 de 14/04/1994 - Página 1769
Assunto
Outros > JOGO DE AZAR.
Indexação
  • APOIO, REGULAMENTAÇÃO, JOGO DO BICHO, PAIS.

    O SR. AUREO MELLO (PRN-AM. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, eminentes Srs. Senadores, desde anteontem que está me dando uma comichão verbal para falar a respeito desses eventos políticos, e até policiais, que estão acontecendo no Brasil: jogo do bicho, listas incomensuráveis, parlamentares acusados de se haverem deixado subornar, gente de todo o feitio. O macarthismo está crescendo e evoluindo neste País. Brevemente, não haverá casas para abrigar as pessoas honestas, porque elas estarão ocupadas ou transformadas em prisões para os que são apontados, indigitados como transgressores e culpados.

    Aí me vem assiduamente à lembrança aquele conto de Machado de Assis, "O Alienista", em que havia um brasileiro de alta capacidade, que foi estudar em Portugal, e ali se revelou um verdadeiro gênio. Formou-se em Medicina, como V. Exª que agora ocupa a Presidência, como o Senador Jutahy Magalhães e como o nosso querido Senador Lourival Baptista. Entretanto, quando chegou ao Brasil, foi morar em Itaguaí, no Estado do Rio, e lá foi apontado como diretor do hospício local, que, naquela ocasião, se chamava "A Casa Verde".

    Chamava-se o médico ilustre, o alienista eminente, Simão Bacamarte. E, ante os seus olhos perscrutadores, ninguém passava despercebido, desde que tivesse qualquer peculiaridade de anormalidade. Imediatamente o seu indicador apontaria como pessoa enferma da mente e os poderes locais acolheriam a sua indicação - porque ele era o mestre, era o sábio educado em Portugal -, e o cidadão indigitado seria recolhido à Casa Verde, que era simplesmente o hospício local.

    Então, se um cidadão ficava prostrado à porta de sua casa, gozando as delícias dos favônios da tarde, imediatamente o Simão Bacamarte passava a olhar com suspeita aquele cavalheiro e, em breve, verificava que se tratava de uma anormalidade. E, apontado ele ao prefeito, à polícia, à câmara de vereadores, era recolhido à Casa Verde.

    Se um outro que porventura teria tirado uma sorte lotérica e resolvia distribuir os seus dinheiros entre os pobres, os humildes, evidentemente teria essa conduta apontada como anormal e o Simão Bacamarte, de olho vivo, se encarregaria de fazer recolher o distinto cavalheiro à Casa Verde, ao hospício local.

    O sacerdote, com a sua sotaina e seus murmúrios, não escapou às acusações de Simão Bacamarte e acabou também sendo recolhido à Casa Verde. Houve tantas acusações e tantos recolhimentos que a população de Itaguaí se tornou diminuta e, no final das contas, havia mais malucos na Casa Verde do que moradores normais em Itaguaí.

    Então, o Simão Bacamarte verificou que se o número de loucos era maior do que o número de sadios, então os sadios eram os loucos e os loucos eram os sadios. Qual a maneira de tornar os sadios loucos, isto é, normais, e de fazer os loucos se tomarem sadios, isto é, fazerem jus a sair da Casa Verde? Inculcar no espírito e nos costumes de cada pessoa, dita normal, e na eventualidade louca, hábitos, manias, psicoses e costumes que fizessem jus e justificassem o internamento dos mesmos na Casa Verde.

    Aí acabou indo o prefeito, acabou indo a câmara de vereadores e até o padre de Itaguaí, que também não foi deixado de mão. E, no final das contas, somente restou o Simão Bacamarte, doutor emérito pelas faculdades de Coimbra e pelas instituições européias. Mas ele, que era um homem justo e que somente realizava coisas em que acreditasse plenamente, chegou à conclusão de que se todos estavam loucos e somente ele sadio, era sinal de que o grande louco era ele e que todos os internados eram absolutamente sadios. Mas, por descargo de consciência, ele se internou também na Casa Verde.

    Aí, posta a unanimidade das pessoas de Itaguaí internadas no hospício, ele finalmente liberou a todos, porque a coletividade louca era a coletividade sadia, era a coletividade que assim, realmente, merecia essa denominação.

    Tenho a impressão de que, no Brasil, está começando a acontecer um fato dessa natureza, porque o jogo do bicho sempre existiu. Há mais de 43 anos que ele é proibido e há mais de 43 anos que ele funciona regularmente em todos os Estados da Federação.

    De repente, aparece essa onda de perquirição, que, parece, foi deflagrada no Brasil por um indivíduo extremamente sadio, que é aquele irmão do Presidente Fernando Collor, aquele que, por inveja, tratou de acusar o seu irmão. Imediatamente, o PT segurou "a bola", que estava no ar, e iniciou as Comissões Parlamentares de Inquérito. E ali foram submetidos à apreciação do Parlamento e dos seus próprios colegas, inúmeros cidadãos que foram apontados como indesejáveis, desonestos e injustos. E quem os apontava, por sinal, eram aqueles que se consideravam verdadeiros "Simões", justos, honestos e honrados. As coisas evoluíram e acabaram com um impeachment deflagrado contra o Presidente da República. Foi substituí-lo um Vice-Presidente, de panache erguido e flamejando ao vento, e as coisas decorreram, ao que me parece, de maneira bem diferente daquelas que estavam acontecendo naquela eventualidade.

    Aí, os acusadores de outrora começaram a ser apontados como loucos, isto é, como delinqüentes, como fraudadores da Comissão de Orçamento da República. De repente, começou a funcionar uma máquina terrível, talvez presidida, não por um Simão Bacamarte, mas pelo alvo do Bacamarte, que era esse querido ilustre membro deste consenso parlamentar, ou seja, o mestre Passarinho, com a sua probidade, com a sua indiscutível dignidade e o seu talento. Imediatamente, houve oportunidade a que os indigitados criminosos fossem apontados e cada um deles depois considerado criminoso pela referida Comissão. E, ocasionalmente, os criminosos apontados pela Comissão, em grande parte, eram os acusadores do ex-Presidente; aqueles que diziam que o Presidente merecia ser castigado, porque ele era culpado de inúmeros crimes, de ter permitido que algumas cornucópias particulares se derramassem nos seus cofres para permitir a sua campanha político-eleitoral.

    Pegou-se um homem calvo, de bigodes espessos e, através da sua sigla, que parecia com a sigla do Partido Comunista do Brasil, lá se foi ele amargar, como amarga até hoje, a dura frialdade das enxovias, sendo assim uma espécie de bode expiatório de toda a confusão.

    Começou, então, a aparecer aquilo que muita gente está chamando hoje de "A maldição de Collor": começou a acontecer uma degringolada naqueles que acusaram e que derrubaram o Presidente do poder. A maldição começou a se exercitar precisamente naqueles que tinham o dedo mais comprido e mais endurecido na direção da vítima, em forma de acusação.

    A verdade, Sr. Presidente, é que o espírito do Simão Bacamarte parece que baixou forte na coletividade e na sociedade brasileira. Hoje em dia, por qualquer dá-cá-aquela-palha, acusa-se um cidadão de ser um delinqüente, de ser um criminoso, de estar recebendo verbas ilegalmente. E lá no Rio de Janeiro, aquela terra festiva e amiga, onde o jogo do bicho é institucional e faz parte da atividade doméstica e social de cada pessoa que ali reside, começaram a aparecer batalhões inteiros acusados de receber propinas do jogo do bicho.

    Mas, afinal de contas, será esse jogo do bicho um bicho tão feio e tão apavorante que dê motivo a que tantas pessoas vão parar na Casa Verde? Será esse jogo do bicho uma instituição tão apavorante e avassaladora que permita que a maioria daqueles que erram considerados sadios passem a ser loucos e que os loucos passem a ser sadios? Não sei, Sr. Presidente. Sei que, em diversos Estados da Federação, o jogo do bicho funciona normalmente e, inclusive, as suas verbas são destinadas a instituições sociais.

    Quer um exemplo, Sr. Presidente? O Amazonas. O Amazonas tem, nas suas esquinas, os bicheiros funcionando com a sanção e as bênçãos do governo estadual. E as verbas que decorrem dessa atividade são canalizadas e conduzidas para o bem-estar daqueles mais carentes e mais necessitados.

    No Brasil, entretanto, já se acusou o Betinho - homem reconhecidamente altruísta, um coração generoso, voltado para o amor, para fazer a compensação da pobreza que assola todas as pessoas - de estar recebendo do jogo do bicho. Os caricaturistas, principalmente do jornal O Globo, não perdoam nada e não perdem a oportunidade de desenhar esses cidadãos brasileiros, ora de fraldas, ora de cuecas, ora nus, ora vestidos, trazendo a corrupção atrás deles como se fosse uma vacina, ou um terrível estigma. Não sabemos mais a quantas andamos.

    Por isso, Sr. Presidente, quero achar bonito o projeto ou a decisão do Líder do Governo deste Senado da República que andou dizendo por aí, em reuniões, que é necessário regulamentar o jogo do bicho. E é mesmo, porque se regulamentarmos esse jogo, proibido pelo Marechal Dutra e por Dona Santinha, sua piramidal esposa, ele será, quem sabe, uma fonte institucional de renda e de bem-estar para outras pessoas. Por isso, viva! Sus! para esse Líder do Governo que teve essa idéia tão feliz e festiva de regulamentar e normalizar essa situação de anormalidade.

    Sr. Presidente, Srs. Senadores, somos de entendimento que o número de acusações que se está fazendo atualmente está excedendo e está ultrapassando os limites. Acusa-se sem provas, faz-se, na base do boato, a vinculação de personalidades ilustres a crimes e a infrações penais, que não parecem ter plena justificativa com base na verdade.

    Nesta oportunidade, nesta ocasião em que se dialoga de irmão para irmão, nesta Casa de serenidade, tão diferente daquela outra, onde quando lhe transpomos os umbrais temos a impressão de ter entrado na sucursal do purgatório, aqui, nesta Casa de paz, neste céu, conforme foi definido por Tancredo Neves em determinada ocasião, neste ensejo de diálogo, me dá vontade de falar e de dizer aos meus eminentes pares que devemos ter muita atenção com relação a essa febre macarthista que está evoluindo em todo o País. Vamos ter mais cuidado com a honra dos outros! Vamos respeitar mais a dignidade dos nossos compatrícios! Vamos apreciar com maior serenidade, porque senão "A maldição de Collor" pode desabar em cima daqueles que praticaram as acusações, julgando-se talvez donos da verdade ou inteiramente integrados naquilo que julgam o certo e o correto.

    Querem endireitar o Brasil. Então, terão que endireitar o regime capitalista, terão que endireitar o sistema do homo homini lupus, em que o homem, sendo lobo do homem, procura passar à frente um do outro. Precisa-se acabar com a chamada "Lei do Gérson", que tem sido tão comentada e tão aplicada nesta Pátria.

    Diante disto, Sr. Presidente, um crédito de confiança para diversas e diversas pessoas que têm sido acusadas, de maneira que me parece precipitada, por delegados e juízes ávidos de publicidade, ansiosos por ver seus retratos publicados na revista Veja ou nas primeiras páginas do jornal O Globo. E que prospere a iniciativa daquele líder governamental, que teve a idéia de que o jogo do bicho deve ser passado ao próprio campo do Direito e que possa ser exercitado normalmente pelas pessoas que já o vêm fazendo há décadas e décadas subseqüentes.

    Existem vários projetos que estão tramitando na Câmara dos Deputados. Não sei se no Senado existe algum. Mas, Sr. Presidente, a verdade é que o Brasil não pode se transformar na casa do Simão Bacamarte, não pode se transformar na Casa Verde, não pode abrigar a todos no hospício da penalidade, porque senão, brevemente, chegaremos a uma ocasião em que haverá tantos culpados, haverá tantos loucos, haverá tantos criminosos, que eles é que serão os normais, eles é que serão os certos, e culpados serão aqueles que têm a mente correta, que terão, por sua vez, que ser submetidos a uma terapia que lhes permita também adquirir manias, obsessões e maus costumes, como queria o saudoso Machado de Assis.

    Sr. Presidente, muito obrigado pela oportunidade deste pronunciamento, e que os ossos de Machado de Assis repousem em paz.

    Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente. 


Este texto não substitui o publicado no DCN2 de 14/04/1994 - Página 1769