Discurso no Senado Federal

PARTICIPAÇÃO DE S.EXA. NO ENCONTRO INTERNACIONAL DE PARLAMENTARES CRISTÃOS, NA DEFESA DO INTERESSE SOCIAL COM BASE NOS ENSINAMENTOS BIBLICOS. A VIOLENCIA CONTRA OS SEM-TERRA. A NECESSIDADE DE REFORMA AGRARIA NO BRASIL.

Autor
Benedita da Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/RJ)
Nome completo: Benedita Souza da Silva Sampaio
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • PARTICIPAÇÃO DE S.EXA. NO ENCONTRO INTERNACIONAL DE PARLAMENTARES CRISTÃOS, NA DEFESA DO INTERESSE SOCIAL COM BASE NOS ENSINAMENTOS BIBLICOS. A VIOLENCIA CONTRA OS SEM-TERRA. A NECESSIDADE DE REFORMA AGRARIA NO BRASIL.
Aparteantes
Bernardo Cabral, Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 02/11/1995 - Página 2294
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • COMENTARIO, PARTICIPAÇÃO, ORADOR, ENCONTRO, CONGRESSISTA, CRISTÃO.
  • NECESSIDADE, REFORMULAÇÃO, DOUTRINA, BIBLIA, SOLUÇÃO, PROBLEMAS BRASILEIROS, NATUREZA SOCIAL, ESPECIFICAÇÃO, REFORMA AGRARIA, PROIBIÇÃO, VIOLENCIA ARBITRARIA, SEM-TERRA.
  • OPOSIÇÃO, PRISÃO, MULHER, PARTICIPANTE, MOVIMENTAÇÃO, SEM-TERRA.

            A SRª BENEDITA DA SILVA (PT-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não poderia deixar de vir a esta tribuna quando tive a oportunidade de participar de uma sessão solene, ontem, na Câmara dos Deputados, quando comemorávamos o ano da Reforma de Lutero, uma reforma comprometida com mudanças profundas, com transparência e esclarecimento não apenas para o povo cristão ou protestante. Lutero não concordava com aspectos daqueles dias em que a religião estava se tornando um grande dogma, fechada à compreensão dos seres viventes.

            A Reforma de Lutero fez com que nascesse em nós a esperança de um segmento religioso que levasse as boas novas e compreendesse que não há absolutamente em nenhum momento da nossa vida cristão uma contradição entre a prática da fé e a prática política e social. É importante que compreendamos o nosso papel como cristãos, ou seja, fazendo com que essa palavra esteja afinada com o ser humano, porque foi para isso e por isso que nasceu da vontade de Deus o seu filho Jesus Cristo, que morreu na cruz para dar uma esperança de vida, de uma vida com abundância. Por isso, a Reforma tem um compromisso social.

            Hoje, tive a oportunidade de participar do Encontro de Parlamentares Cristãos Internacional, porque não éramos apenas nós, mas um grupo que se articula há muitos anos, e que vê na Bíblia, na palavra de Deus, o caminho certo para estarmos, seja no Executivo ou no Legislativo, defendendo esse interesse social.

            Quis ocupar a tribuna para falar a respeito de uma situação específica, social, que acontece no nosso País e que, por compreensão política e ideológica, temos dado um tratamento de exclusão total, não nos permitindo, de jeito nenhum, discutir com transparência, com compromisso, o situação que está hoje levando até às prisões aqueles que querem defender um pedacinho de terra.

            É com essa compreensão que venho à tribuna, como uma manifestação muito mais espiritual do que política, para fazer a leitura da Bíblia Sagrada, O Primeiro Livro de Moisés, chamado Gêneses, Capítulo I, que diz algo muito simples:

            1 No princípio criou Deus os céus e a terra.

            2 A terra, porém, era sem forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o Espírito de Deus pairava por sobre as águas.

            3 Disse Deus: "Haja luz"; e houve luz.

            4 E viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas.

            5 Chamou Deus à luz Dia, e às trevas, Noite. Houve tarde e manhã, o primeiro dia.

            6 E disse Deus: "Haja firmamento no meio das águas, e separação entre águas e águas".

            7 Fez Deus o firmamento, e separação entre as águas debaixo do firmamento e as águas sobre o firmamento. E assim se fez.

            8 E chamou Deus ao firmamento Céus. Houve tarde e manhã, o segundo dia.

            9 Disse também Deus: Ajuntem-se as águas debaixo dos céus num só lugar, e apareça a porção seca. E assim se fez.

            10 A porção seca chamou Deus Terra, e ao ajuntamento das águas, Mares. E viu Deus que isso era bom.

            Mas essa terra é a terra prometida aos seres viventes. Mas não foi só isso.

            27 Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.

            28 E Deus os abençoou, e lhes disse: Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céus, e sobre todo animal que rasteja pela terra.

            29 E disse Deus ainda: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para mantimento.

            30 E a todos os animais da Terra e a todas as aves dos céus e a todas os répteis da terra, em que há fôlego de vida, toda a erva verde lhes será para mantimento. E assim se fez.

            31 Viu Deus tudo quanto fizera, e eis que era muito bom. Houve tarde e manhã, o sexto dia.

            E disse mais:

            21 Criou, pois, Deus os grandes animais marinhos e todos os seres viventes que rastejam, os quais povoavam as águas, segundo as suas espécies, e todas as aves, segundo as suas espécies. E viu Deus que isso era bom.

            22 E Deus o abençoou, dizendo: Sede fecundos, multiplicai-vos e enchei as águas dos mares; e, na terra, se multipliquem as aves.

            23 Houve tarde e manhã, o quinto dia.

            24 Disse também Deus: Produza a terra seres viventes, conforme a sua espécie: animais domésticos, répteis e animais selváticos, segundo a sua espécie. E assim se fez.

            25 E fez Deus os animais selváticos, segundo a sua espécie, e os animais domésticos, conforme a sua espécie, e todos os répteis da terra, conforme a sua espécie. E viu Deus que isso era bom.

            Por que fiz essa leitura nesta tarde? Por compreender que a terra foi dada para ser explorada, para ser ocupada e para dela extrair o que tem de melhor como uma bênção, uma dádiva de Deus. A terra não foi feita para ser simplesmente especulada, para servir de instrumento de violência e opressão para homens e mulheres.

            Assim como tivemos esse cuidado de tratar da terra por parte de Deus, que sabia e entendia da nossa necessidade, quis Ele ainda, na sua infinita misericórdia, dizer aos animais que se multiplicassem, e que povoássemos a terra, e nos deu o instrumento que usaríamos para nossa sobrevivência, para nossa vida. Ele disse ainda mais, que era extremamente importante que tudo isso que Ele havia criado estaria sob nosso domínio, de homens e mulheres. Ele nunca colocou isso acima das necessidades do homem e da mulher, mas colocou para as nossas necessidades.

            Como cristã, tenho isso como um compromisso social, como uma dádiva; não posso permitir que meu egoísmo não me deixe tratar essa questão de uma forma altamente humanística, social e cristã, porque nossa vida é passageira, e essa terra que habitamos, em determinado momento, não sei se ainda no segundo ou no terceiro milênio, ficará inteiramente vazia; mas queremos ocupá-la nesse momento, não apenas como uma ordem divina, mas também como uma necessidade humana.

            Estamos tratando da questão agrária como se estivéssemos tratando com os animais. Em Gêneses, coloca-se que os animais deveriam ser dominados por nós, e estamos dando-lhes tratamento igual aos dos seres humanos. Esses animais que foram criados para nossa alimentação têm tido, em certas ocasiões e famílias, um tratamento melhor do que o que se poderia dar a um ser humano e para eles é reservado o maior espaço possível da Terra, mais que aos seres humanos.

            Tenho uma visão humanística e ecológica nesse sentido, aprendida em Gêneses, que há milênios nos coloca um grande desafio: falamos que temos compromissos, falamos que somos os responsáveis pelo destino do País e que temos que dar-lhe condições de desenvolvimento, mas não podemos acreditar num desenvolvimento que não leve em conta os seres humanos. Estamos falando às máquinas, aos robôs, àqueles que não são cristãos, mas que sabem perfeitamente que devemos dar ao ser humano a prioridade no usufruto da terra e a ele dar as condições necessárias para que possa ocupá-la.

            A reforma agrária não é uma questão partidária; a reforma agrária não é uma questão ideológica; a reforma agrária é uma necessidade, e aqui cito em Gêneses para que ela não chegue em Apocalipse, com tragédias que se iniciam com prisões e que podem ter, quiçá, derramamento de sangue para ser defendida.

            Então, é uma responsabilidade e quis fazer esta meditação porque pensava na reforma de Lutero. Para que reformas? Naquela época, Lutero estava se contraponto a uma situação. Então, as reformas que hoje estamos fazendo têm que se contrapor a essas questões que são seculares na política brasileira, porque não há uma mudança profunda que leve em conta como principal, como prioridade os seres humanos. Não estamos falando de alguma coisa abstrata; estamos falando de algo com que convivemos e com o que temos responsabilidade. As reformas estão aí para serem manipuladas, para serem colocadas como um instrumento maior para nosso crescimento, seja econômico, seja social, seja para nosso bem-estar, nossa saúde do corpo, da alma e do espírito.

            Penso que estamos buscando, de todas as formas, fazer um diálogo; lembrem-se de Jesus, que nem nos piores momentos negou-se a dialogar, nem nas piores horas de contestações de uma multidão. É do diálogo que precisamos com relação a essa questão agrária.

            Não podemos deixar que mulher, trabalhadora, dona-de-casa, mãe de família seja presa, pura e simplesmente, porque está no Movimento dos Sem-Terra. Não é possível que concordemos com isso, quando sabemos que há muitos corruptos, muitos assassinos que estão a seu bel-prazer, com uma vida tranqüila, e nem sequer foram levados ao tribunal. Estamos vendo uma dona-de-casa, uma trabalhadora, uma guerreira ser colocada como uma marginal na prisão. Não concordo, Sr. Presidente, Srs. Senadores, não posso, de forma alguma, aceitar essa situação. Penso que estamos chegando ao limite e se há alguma radicalização com relação a esse movimento não é possível que a autoridade maior que é o Poder Público não tenha condição de solucionar isso, que essa medida não seja uma sucessão de outras, e que esse episódio não venha dar início a outro nesse momento da reforma agrária e da necessidade dos assentamentos.

            O Sr. Eduardo Suplicy - Permite-me V. Exª um aparte?

            A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª, Senador Eduardo Suplicy.

            O Sr. Eduardo Suplicy - Senadora Benedita da Silva, V. Exª fala a respeito de como a Justiça deste País estará avaliando se agiu corretamente, no cumprimento da lei estritamente, ao mandar prender uma mulher como Diolinda Alves de Souza, mãe de família, cujo filho está precisando de seus cuidados em função da necessidade de uma operação de hérnia, quando não se sabe especificamente que crime terá essa mulher cometido. Hoje, telefonei para o juiz de Pirapozinho que determinou a prisão com base em relatório de delegado e de promotor da região. Expus minha estranheza em termos semelhantes ao que V. Exª está aqui a dizer, porque, em verdade, o que estão esses trabalhadores a dizer, a fazer? Não estão ameaçando a vida de quem quer que seja. Sempre que receberam ordem judicial da Secretaria de Segurança Pública para deixarem alguma área, em cada um dos momentos em que realizaram ocupações, eles o fizeram de forma ordenada e pacífica. Voltaram a sinalizar com a ocupação de áreas movidos pela vontade de estarem lavrando a terra tornando-a produtiva, até porque nossa Constituição diz que a função social da terra exige que ela se torne produtiva. Repito, não estão ameaçando a vida de qualquer pessoa. Na tarde de hoje, os advogados Luís Eduardo Greenhalgh, Aton Fon e outros que estão assistindo o Movimento dos Sem-terra estão dando entrada a um pedido de habeas corpus no sentido de que seja revogada a prisão da Srª Diolinda e de Márcio Barreto perante o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Esperamos que a Justiça ouça o bom senso, ouça o clamor de V. Exª, Senadora, e coloque fim a essa prisão.

            A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço o aparte de V. Exª. Na verdade, Senador Eduardo Suplicy, não quero ser apenas uma voz clamando num grande deserto - e sei que não serei uma voz clamando no deserto, porque V. Exª já deu a notícia de que iniciativas no campo jurídico estão sendo tomadas para que se possa permitir, para que se possa dar oportunidade de que o diálogo prevaleça neste momento. Por isso, espero que o resultado da iniciativa citada por V. Exª venha nos trazer uma tranqüilidade, porque este é realmente um momento de dor. Não estou somente preocupada, mas sinto dor. E a sinto como uma mulher que é mãe, que é avó e que sabe que para ir para a luta nós, mulheres, sacrificamos demais a nossa família, deixando, às vezes, o momento em que poderíamos estar fazendo uma outra coisa, porque temos fé, esperança e uma expectativa de que a situação seja resolvida.

            Quando assisti, pela televisão, aquela mulher ser presa, sofri realmente um grande choque. Mas, ao mesmo tempo, senti que não se trata apenas de continuar a luta. Percebi que são mulheres como aquela que, verdadeiramente, poderão contribuir para a mudança desse quadro.

            O Sr. Bernardo Cabral - Permite-me V. Exª um aparte?

            A SRª BENEDITA DA SILVA - Concedo o aparte a V. Exª, Senador Bernardo Cabral.

            O Sr. Bernardo Cabral - Senadora Benedita da Silva, eu sou, por uma dessas circunstâncias do destino, o orador seguinte inscrito, e devo dizer que vou abordar este problema. Mas não poderia ficar calado quando está terminando o tempo de V. Exª, sem dizer-lhe que V. Exª aborda a matéria com absoluta isenção político-partidária. Se eu calasse, se não dissesse que o cuidado de V. Exª representa aquilo que mais deveria presidir o problema da reforma agrária, o diálogo, não estaria fazendo justiça ao seu discurso. Ainda que no meu eu pudesse me referir a isso. Mas eu gostaria que ficasse embutido na peça que V. Exª trouxe, a partir da lição bíblica, o fato de que vale a pena assistir um debate dessa natureza, em que não se parte para o campo emocional, mas racional. Cumprimentos a V. Exª.

            A SRª BENEDITA DA SILVA - Agradeço V. Exª por esse aparte. Sei que o meu tempo já se extinguiu, mas tenho certeza de que na abordagem de V. Exª, com todo o cuidado que V. Exª sempre tem, como um homem que conhece a justiça e a pratica, V. Exª fará soar mais uma voz neste plenário, que chegue ao Planalto, que chegue aos tribunais, e que dará a Diolinda a oportunidade de voltar ao seu lar, e a nós dará a oportunidade do diálogo e fará com que prevaleça - mas prevaleça mesmo - o entendimento, a responsabilidade, a política, nada além disso.

            Concluindo, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, como comecei o meu pronunciamento com uma palavra altamente profética, porque falei de Gênesis e dos acontecimentos dos dias de hoje, eu gostaria de também de finalizá-lo dizendo que talvez ela, Diolinda, não possa ouvir a minha voz, mas que todos aqueles que podem devem continuar segundo o que está escrito na Bíblia, e no que acredito:

            "Tocai a buzina em Sião e incomodai todos os moradores da Terra, mas faça justiça".

            Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente. Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/11/1995 - Página 2294