Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO EX-SENADOR NELSON CARNEIRO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM DE PESAR PELO FALECIMENTO DO EX-SENADOR NELSON CARNEIRO.
Publicação
Publicação no DSF de 08/02/1996 - Página 1415
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, NELSON CARNEIRO, EX SENADOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Para encaminhar a votação. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, inicio as minhas palavras exatamente da bancada que pertenceu a Nelson Carneiro, por tantos anos representante do Rio de Janeiro.

Aqui deste canto, talvez o canto mais recôndito deste plenário, algo escuro, mas que permite ter da Casa uma visão ampla e generosa, Nelson Carneiro, durante três períodos seguidos como Senador, honrou a representação do Rio de Janeiro.

Não é, portanto, sem emoção que, ao falar da tribuna que lhe coube, por ele honrada, um dos lugares - repito - menos aparentes deste plenário, mas exatamente por isso um lugar que poderá refulgir sempre que seja ocupado por pessoas como ele, peço licença aos Srs. Senadores e às Srªs Senadoras para uma observação básica.

Raros políticos, Sr. Presidente, poderão dizer que construíram uma obra legislativa. Uma obra legislativa é algo de certa forma grandioso e inglório. Grandioso, porque a obra legislativa penetra na sociedade, efetua transformações, é a forma pela qual as sociedades encontram o balizamento do seu processo evolutivo; inglório, porque a obra legislativa escapa do nome de seu autor.

V. Exª, Sr. Presidente, é um escritor de nomeada, membro da Academia Brasileira de Letras, tem também uma obra legislativa e uma obra literária. A obra literária fica agregada ao nome de seu autor. A obra legislativa, de certa forma, se desprende, ganha a sociedade. Dou um exemplo: todo o noticiário de hoje a respeito da morte de Nelson Carneiro aludia ao fato de que ele foi o Senador do divórcio. Verdade. Mas seriam os quase 50 anos, 49 anos de vida parlamentar de Nelson Carneiro caracterizados exclusivamente pela questão do divórcio? Evidentemente, não.

Se fôssemos fazer - e é interessante que o Senado possa fazê-lo - um levantamento da obra legislativa de Nelson Carneiro, até para publicá-la, verificaríamos que o divórcio foi um dos aspectos da inúmera e vária contribuição de Nelson Carneiro à legislação de família no Brasil. E aqui um aspecto sociológico importante: Nelson Carneiro consegue, mercê de enfrentar preconceitos existentes nesse campo, propiciar um tipo de legislação de família que, de certa maneira, modernizou os costumes ou, quando não modernizou, rompeu hipocrisias em torno das quais os costumes, muitas vezes, viviam atados por falta de uma legislação específica. Ele tem, portanto, uma obra importante sobre legislação de família. Essa obra aí está para ser exumada, conhecida e reconhecida, porque ela atinge, por exemplo, de modo direto, os filhos oriundos de ligações que não são as do casamento tradicional, que durante muitos anos viviam o opróbrio de ver os seus nomes indicados na certidão de nascimento como filhos naturais ou ilegítimos, fato que desapareceu da legislação brasileira graças também ao trabalho de Nelson Carneiro.

Hoje, vive-se um momento de expansão da mulher na sociedade, expansão que se expressa pela sua participação no mercado de trabalho, pela assunção do próprio corpo, pela assunção da própria sexualidade. A mulher é hoje o grande fator de transformação, de mudança, característico das últimas três décadas na sociedade. Pois bem, também no sentido de reconhecer à mulher o direito e a conquista natural, gradual, na sociedade industrial, que pouco a pouco ia sendo conseguida, a obra de Nelson Carneiro se apresenta luminosa, precisa e adequada, propiciando à mulher, nas suas relações amorosas, o direito de um reconhecimento que não existia, não fosse exclusivamente na forma do casamento tradicional. Ora, tudo isso num País com a carga de preconceitos como o nosso, num País com os atrasos ancestrais em relação a temas de natureza existencial como o Brasil, tem um significado muito grande! No campo de Direito Penal, a contribuição de Nelson Carneiro é também bastante significativa, bem como no campo do Direito Civil; sobretudo no Direito de Sucessões ele tem matéria suficiente para caracterizar uma grande obra legislativa.

Políticos há que se caracterizam por sua capacidade de luta. Políticos há que se caracterizam por suas virtudes oratórias. Políticos há que se caracterizam por sua qualidade de articulação. Políticos há que se caracterizam por sua capacidade de ação direta quando no Poder Executivo.

Nelson Carneiro, a meu juízo, significava uma figura política que teria a sua caracterização clara basicamente na obra legislativa e, em segundo lugar, na ação política. Ele pertence a um quadrilátero maravilhoso da política brasileira que durante quarenta anos ilustrou este País, e ele, desse quadrilátero, foi o último a partir: o quadrilátero Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Amaral Peixoto e Nelson Carneiro. Os quatro, inclusive, amigos. Os quatro que, aqui em Brasília, chegaram a morar juntos nos primeiros anos desta Capital. E os quatro que, a seu modo, nos seus partidos, até com estilos parecidos, sabiam singrar os mares da dificuldade sempre de olhos postos na democracia, sempre caminhando na direção de conciliações que não são as conciliações podres, as conciliações passivas, as conciliações da estagnação. São as conciliações feitas para avançar.

E a política talvez seja a arte da descoberta dessas conciliações ativas, as conciliações que permitem o avanço.

Nelson também provém dessa escola. É uma escola de prudência, é uma escola de firmeza, é uma escola de objetivos claros, mas também uma escola de discrição, é uma escola de saber fazer a política silenciosa - quando alguns supõem que política é o que se faz pelos jornais -, mas fazê-la sobretudo eficiente sempre que se necessita de uma ação efetiva na direção de alguma conquista.

Assim, Nelson ajudou o retorno à democracia no Brasil. Nelson soube singrar os mares tumultuosos dos anos de exceção, sem perda do mandato parlamentar, mas assumindo, com clareza, as posições de oposição e ocupando cada espaço de avanço possível que se lhe colocava como possibilidade. Reparemos que essa é a mesma atitude de Tancredo Neves, de Ulysses Guimarães e de Amaral Peixoto.

Portanto, na obra legislativa e na ação política, Nelson deixa um nome brilhantíssimo. Costumo dizer que o difícil na política não é nela entrar, é nela permanecer. É um tipo de atividade que tem a humildade de, a cada quatro anos, submeter-se à sanção popular para um novo mandato. Só quem faz política sabe o que significa poder nela permanecer, o que é necessário de energia, sabedoria, sagacidade, seriedade, participação e trabalho para a permanência na política, para uma permanência que não seja oriunda do uso indevido da máquina do Estado ou de formas anômalas de se conseguir eleição, normalmente ligadas a formas de poder econômico, que são tão poderosas num país com um grau de cidadania ainda tão baixo.

Nelson conseguiu esse milagre da sobrevivência e da permanência na política. Graças à sua permanência na política, pôde realizar a sua obra legislativa, que é, talvez, a mais ampla obra legislativa existente na vida republicana brasileira - talvez. Não posso afirmá-lo, porque não sou historiador nem tenho conhecimento e cultura suficientes para afirmá-lo, mas seguramente é uma das mais completas obras legislativas da história republicana deste País.

Quero dizer, ademais, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que me toca uma emoção particular neste momento. Na última eleição, fomos eleitos pelo Rio de Janeiro a Senadora Benedita e eu, e não foi eleito o Senador Nelson Carneiro. Para mim isso teve um aspecto duplo de igual valência: feliz fiquei por haver sido escolhido por um em cada cinco eleitores do Rio de Janeiro, que me deu um de seus votos, o que não é grande façanha, até porque são dois votos para senador, mas honra. Triste fiquei, embora sempre tenha calado a esse respeito, por constatar que a nossa vitória impediu a de Nelson Carneiro. Eu fora companheiro dele no PMDB durante muitos anos; mais do que companheiro, pertenci ao grupamento político que com ele lutava no PMDB. Sempre estivemos juntos nessas batalhas; inclusive quando estava cassado, ajudei algumas das eleições de Nelson ao Senado; participei de uma marcha com ele, essencial numa de suas eleições, que foi desfeita a borrachadas pela polícia de então, na Candelária, pela Avenida Rio Branco. Acompanhei-o, lutei pela candidatura dele ao governo do Estado, quando foi escolhido Moreira Franco por uma pequena margem de votos, na convenção do PMDB de então. Tínhamos uma profunda e antiga ligação, e eu o tinha também como mestre.

Na Constituinte, fui Relator de alguns capítulos na parte anterior à Comissão de Sistematização, e nesses capítulos a ajuda de Nelson foi essencial, porque entre eles estavam os capítulos sobre criança, família e idoso. E a Constituição brasileira, quem a examinar verificará que esses são capítulos que não têm praticamente nenhuma restrição nas fases de revisão. E falo isso sem nenhuma vaidade, porque não tenho o mérito de ser autor de quase nada, fui apenas o Relator, o coordenador. Mas posso, sim, dizer da importância do trabalho de Nelson nesta matéria. Quem ler o capítulo Da família, da Criança, do Adolescente e do Idoso na Constituição de 1988, encontrará um documento luminoso, muito pouco lembrado, porque essas matérias em geral não são lembradas, porque são matérias de conteúdo social profundo, não estão no dia-a-dia das discussões. A Constituição Brasileira é extremamente avançada na matéria do idoso, da família e do menor. Recordo-me ainda da importância do trabalho de Nelson e de quantas vezes, como Relator, a ele recorri, buscando o formato adequado, a redação que coubesse com perfeição, e, mais do que a redação que coubesse com perfeição, graças à experiência que ele tinha, a redação que tivesse chance de ser aprovada, afinal, na votação definitiva.

Portanto, para mim, num sentido profundo do meu ser, não foi com plena felicidade que ocupei esta cadeira, sendo ela uma cadeira que poderia igualmente caber a Nelson Carneiro e em relação ao qual, sem nenhum desdouro de mim para mim mesmo - porque não sou uma pessoa que tem pena de si mesma, nem tem também soberba em relação a si mesma - sempre me ficou um travo de sensação de injustiça, não minha, mas dos fatos para o não retorno de Nelson Carneiro. Isso lhe custou muita dor e, a meu ver, até uma pequena demasia de injustiça num discurso feito a esta Casa em relação ao comportamento do Governador Marcello Alencar, que não foi o comportamento aludido pelo Senador Nelson Carneiro - eu sou testemunha vivencial dessa realidade.

Fato menor, porém, que se justifica pelo amor que um homem de 84 anos à época, que havia na campanha mesmo dado exemplos fortíssimos de disposição, capacidade de luta, denodo, vontade exemplares, um desabafo que um homem, naquelas circunstâncias, após cinqüenta anos de vida parlamentar tinha mais do que o direito de ter: tinha razão para ter. Um episódio de quem está ferido, de quem está magoado. E nesse sentido jamais tive nenhum pronunciamento, até porque sabia que qualquer pronunciamento a favor do que ele disse me parecia injusto e contra o que ele disse igualmente injusto seria. Há ocasiões em que o silêncio e o recato são o melhor comportamento que cabe a um homem público.

Por isso, é com emoção que falo a esta Casa, aqui da cadeira de Nelson Carneiro. Espero poder, de alguma forma, acompanhar a trajetória desse grande brasileiro, desse homem que tanto lutou, desse "baiano fluminense carioca", pois ele começou a sua vida pública na Bahia, como suplente de Deputado, e viveu o resto, no Rio de Janeiro, o tempo todo.

Homem que ajudou tanto essa transição brasileira, de um período antigo para a fase moderna, Nelson foi um fator determinante dessa passagem, e, para concluir toda essa vida, algo que ninguém jamais lhe negou: a extrema dignidade pessoal. Não que se tenha que saudar a dignidade como a finalidade da ação política. Dignidade não é finalidade da ação política, é fundamento, mas é importante que esse fundamento seja lembrado ao longo de uma carreira de 50 anos.

De Nelson, jamais se pode ter a mais leve suspeita em relação à honradez com que conduzia a coisa pública e à permanente vigilância no sentido de matérias do interesse público. Um grande exemplo para nós, uma grande dor para os que ficam.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/02/1996 - Página 1415