Discurso no Senado Federal

ARGUMENTAÇÃO CONTRARIA AO VOTO FACULTATIVO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
LEGISLAÇÃO ELEITORAL.:
  • ARGUMENTAÇÃO CONTRARIA AO VOTO FACULTATIVO.
Aparteantes
Ademir Andrade, Geraldo Melo, José Eduardo Dutra, José Fogaça.
Publicação
Publicação no DSF de 06/11/1996 - Página 18135
Assunto
Outros > LEGISLAÇÃO ELEITORAL.
Indexação
  • ANALISE, REFORMA CONSTITUCIONAL, REFERENCIA, OBRIGATORIEDADE, VOTO, OPOSIÇÃO, ORADOR, VOTO FACULTATIVO, DEFESA, CONCEITO, DEVER LEGAL, CIDADÃO.
  • ANALISE, VOTO, PRATICA EDUCATIVA, FORMAÇÃO, CIDADANIA, PREVENÇÃO, FALTA, INTERESSE, POLITICA, PAIS.
  • CRITICA, FALTA, REPRESENTAÇÃO POLITICA, ELEIÇÃO, VOTO FACULTATIVO, MOTIVO, INDICE, OMISSÃO, ELEITOR, QUESTIONAMENTO, LEGITIMIDADE.
  • CRITICA, VOTO FACULTATIVO, POSSIBILIDADE, MANIPULAÇÃO, VOTO, ELEITOR, AUSENCIA, DESENVOLVIMENTO, CIDADANIA, OMISSÃO, CLASSE MEDIA.
  • DEFESA, OBRIGATORIEDADE, VOTO, MOTIVO, LEGITIMIDADE, COMPARAÇÃO, PROCESSO ELEITORAL, UTILIZAÇÃO, SEGUNDO TURNO.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, está em tramitação na Casa o Projeto de Reforma Política, que, nos últimos dias, atraiu a atenção da imprensa e de várias pessoas pela quantidade de matéria reformadora, nova que contém.

É um belo trabalho. Aproveito a oportunidade para saudar o seu Relator, Senador Sérgio Machado e os membros da Comissão e também para dizer que é uma matéria que não se esgotará com análises eventualmente feitas, por nós, em cada pronunciamento, pois é matéria de grande extensão.

Ao longo desse processo, seguramente, a Casa e o Congresso Nacional como um todo viverão momentos de intenso debate pela necessidade fundamental de uma reforma política no País e, ao mesmo tempo, pela complexidade dos temas ali tratados.

Quero, hoje, apenas ferir um dos tópicos e iniciar um debate que será, por certo, prolífico dado o nível de interesse dos Srs. Senadores nesta Casa. Por acaso, firo um tema que me separa, do ponto de vista da opinião, do Líder do meu Partido aqui no Senado, Senador Sérgio Machado, no que se refere à questão do voto facultativo e do voto obrigatório.

O voto facultativo está sendo passado à Nação com muito charme, porque ele parte de um princípio sedutor, o de que a pessoa é inteiramente livre para fazer sua escolha e, ao mesmo tempo, pode, acima de qualquer outro direito, decidir se vota ou não.

O voto facultativo é demais apetitoso ou sedutor pelo fato de que vive a classe política um momento de desprestígio, penoso desprestígio para nós, mas um desprestígio que evidentemente existe e que precisa ser considerado. Portanto, a idéia do voto facultativo cai como luva na linha desse desprestígio.

Finalmente, um terceiro aspecto é sedutor no voto facultativo: a idéia da plena liberdade individual, que, evidentemente, é uma meta em qualquer democracia.

Porém, gostaria de, gradativamente, argumentar em contrário, talvez até sem muita esperança de convencimento. Pretendo enumerar razões pelas quais a mim parece fundamental para a estabilidade do processo democrático brasileiro e para o seu prosseguimento a existência do voto obrigatório.

O primeiro argumento é de natureza puramente jurídico-institucional. A nossa Constituição tem, em seu bojo, a hierarquização de direitos e deveres do cidadão. Ela não é uma Carta exclusivamente de direitos; ela é uma carta de direitos e deveres. Entre os deveres do cidadão, ou entre os deveres da cidadania, há alguns sobre os quais o legislador - eu fui Constituinte - muito meditou antes de neles votar. Por exemplo, o dever do serviço militar e o dever do serviço à Pátria em caso de guerra. Entre os deveres paralelos aos direitos, os Constituintes de 1988 incluíram o dever ao voto. Aqui cabe uma distinção muito interessante, porque, quando se usa a palavra obrigatório, parece que de certa maneira se distorce o sentido verdadeiro do voto como dever. Se pusermos o voto obrigatório contra o facultativo, dito assim, evidentemente haverá mais simpatia para o voto facultativo, uma vez que obrigatório tem algo de imposição e, efetivamente, assusta. O voto não é obrigatório; o voto é um dever. Essa distinção entre o que é obrigatório, entre o que o cidadão é compelido a fazer, e entre o que é o dever é muito clara. O dever faz parte de um mínimo de atitudes que o cidadão tem com o seu país, com a sua sociedade, a mesma sociedade dentro da qual ele vive, cresce, casa, ama, tem filhos, morre, constrói, trabalha. O dever não é necessariamente uma obrigação. O dever é uma postura de natureza interna, ditada por uma lei, que é da mesma natureza da lei que nos dá o dever de pagar os impostos, o dever de cumprir os regulamentos, o dever de seguir a lei. O voto não facultativo não é necessariamente o voto obrigatório. Ele é um dever, juntamente com um direito. Os países precisam de uma escala de deveres, porque são felizes os países nos quais a população cumpre os deveres cidadãos. Esse é o primeiro argumento.

O segundo argumento ainda é um argumento de natureza subjetiva, nem por isso menos importante. Quando o voto é um dever e quando não é facultativo, ele cumpre uma tarefa de formação de cidadania, paralelamente à tarefa de escolha de governantes. Ora, nós somos uma Nação que engatinha na formação cidadã da maioria de sua população. É sabido por todos nós o quanto o Brasil tateia na formação cidadã. Aí estão os partidos políticos, aí estão as organizações não-governamentais, aí estão as organizações da comunidade, as organizações religiosas, políticas, ideológicas, nacionais, internacionais; aí está o processo educativo do País, visando à formação da cidadania, porque vivemos ainda fóruns de cidadania muito aquém dos necessários. Há uma plena participação da sociedade como um todo na construção da obra comum do progresso de um país.

Quando o voto é facultativo e, de certa forma, permite o deixar para depois, permite o desinteresse, permite o fácil desligar-se de uma matéria que, por sua complexidade, é extremamente difícil de ser compreendida - a matéria política -, ele não colabora tão diretamente para essa formação da cidadania, que é inerente ao processo do voto.

Um terceiro argumento quero trazer à baila e à discussão dos Srs. Senadores. Esse, sim, é um argumento mais poderoso, a meu ver, do ponto de vista objetivo. Ele se articula com o que seria o quarto argumento. São dois aspectos que estão entrelaçados. O primeiro deles tem diretamente a ver com a legitimidade do resultado. Um país como os Estados Unidos da América do Norte - que estão exatamente hoje a fazer a sua eleição presidencial -, em eleições com a atual, em que parece fácil a decisão para um dos candidatos, mobiliza cerca de 40% a 45% do eleitorado. Então, 40% do eleitorado americano escolhe hoje o Presidente da República.

O Brasil não tem ainda o grau de extensão, de articulação, de aprofundamento da ação política que leve, numa eleição com o voto facultativo, o interesse de 30% da população. Ora, Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o que será, o que representará no Brasil da instabilidade democrática, da falta de freqüência e permanência dos processos democráticos - o Brasil que desde 1927 até hoje teve apenas dois presidentes civis que chegaram ao fim do mandato - o que leva, no Brasil, numa eleição na qual 70% não participam, a certeza de que os escolhidos terão, além da legalidade, que não se nega, a legitimidade da representação popular? E o que ocorre num País de tão frágil estrutura institucional a existência de governos de baixa taxa de legitimidade na opinião pública? O apelo ao golpe. É muito fácil montar a teia de intrigas necessárias a derrubar qualquer governo que tenha contra si 70% da população, 60% da população, 50% da população. Isso vai depender do resultado. Não posso afirmar que serão 30%, 40%, 50% ou 60%.

Nós, que estamos saindo de processos autoritários, que vivemos esse estado cicatricial da democracia brasileira, temos a responsabilidade de buscar todas as formas de legitimidade possíveis ao processo. Quando há o apoio popular de maiorias significativas (Evidentemente os intentos golpistas, os avanços anti-institucionais que marcam a tradição lamentável e dolorosa da república presidencialista no Brasil, até porque o presidencialismo é a véspera do golpe ...), temos a obrigação de estruturar o processo político, para que ele seja carregado da legitimidade necessária.

Quando um governo não é escolhido pela maioria da população ou a maioria da população não participa do processo da sua escolha, sempre haverá o argumento de que ele é uma representação de minorias insignificantes, de minorias que se apossaram do poder por esse ou aquele golpe mercadológico - como está tão em moda -, por esse ou aquele estratagema político. O voto, portanto, tem esse caráter de legitimidade do processo, de legitimação de um processo.

E mais, seria o quarto argumento, este nem sempre fácil de entender, mas a meu ver o mais sério de todos. Há no Brasil, por conta de nossa baixa taxa de desenvolvimento cidadão, um contingente significativo de eleitores que são levados a votar por razões pré-cidadãs. Votam porque o chefe político manda, votam porque o coronel do interior assim o deseja, votam porque as oligarquias determinam, votam porque o poder econômico interfere diretamente no pleito, votam por razões as mais comezinhas, diretamente ligadas a um interesse imediato que a falta de cidadania faz confundir com a natureza profunda do voto. Votam porque são pagos, votam porque são levados.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, com a existência do voto facultativo no Brasil, não tenhamos ilusão. Os setores clientelistas, reacionários, os setores cartoriais que agem na política brasileira e conseguem tantos trunfos, estes levarão os seus eleitores de cabresto - para usar a expressão tradicional - para votar. Enquanto possivelmente outros setores até conscientes, mas por razões de natureza mais variada - o desprestígio dos políticos, a preguiça, o absenteísmo natural até muitas vezes nas classes médias -, desinteressar-se-ão pelo processo, desinteresse esse alimentado pela mídia de modo tão farto.

Enquanto esses setores de algum grau de lucidez, por razões até respeitáveis - não nego -, deixam de votar, os setores manipulados, todos eles, serão levados a votar e terão um peso eleitoral muito maior do que já têm hoje em dia - e é um peso muito grande. Teremos, então, a deterioração mais grave ainda do processo político brasileiro, deterioração essa que estará a caminhar pari passu com a debilidade do próprio processo institucional e do próprio processo que mantém as liberdades democráticas deste País.

Portanto, não se trata de um simples e superficial antagonismo entre duas palavras: uma simpática, o voto livre, o voto facultativo; outra antipática, o voto obrigatório. Trata-se de algo mais profundo, trata-se do exercício de um dever e do exercício de um dever que é também pedagógico, porque, ainda que seja por uma vez só, com a obrigatoriedade do voto, a cidadania tem que se exercer. E justamente aqueles setores que não são comandados ou dominados pelas chamadas elites - usando a palavra elite em todos os seus sentidos, no mais lato sentido do termo - terão oportunidade de votar e de fazer valer a sua opinião, ao passo que, do contrário, apenas os setores comandados pelas elites comandarão também o processo eleitoral.

O Sr. Ademir Andrade - Senador Artur da Távola, permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouço com muito prazer o Senador Ademir Andrade.

O Sr. Ademir Andrade - Senador Artur da Távola, V. Exª se mantém brilhante como sempre. Eu gostaria de ressaltar um aspecto nessa reforma político-partidária que também tem muito a ver com o que V. Exª diz. Foi seu terceiro argumento, sobre a questão da representatividade, da legitimidade daqueles que chegam ao poder, a questão do segundo turno, Senador Artur da Távola. Preocupa-me o fato de que, além de quererem criar o voto facultativo, figuras eminentes do Partido de V. Exª, incluindo o Presidente da República, falam na extinção do segundo turno. Preocupo-me muito com essa questão, porque, na minha opinião, entendo que o segundo turno deveria existir em todas as cidades deste País, inclusive nas pequenas, sem nenhuma exceção. Na Constituinte defendi essa posição. Assusta-me imaginar um prefeito ou um governador, quiçá um Presidente da República eleger-se - imagine V. Exª - com 20% dos votos de uma população. Isso é claramente possível quando não há segundo turno. Tivemos agora, na segunda maior cidade do Estado do Pará, um prefeito que se elegeu exatamente com 21% dos votos. Que representatividade pode ter esse cidadão para governar uma cidade, quando 79% da população rejeitou o seu nome? E lá não há segundo turno, pois é uma cidade de 160 mil eleitores. Será que não fica mais fácil pensar-se em golpes numa situação em que não haja o segundo turno? Eu gostaria de ouvir a opinião de V. Exª, que é uma pessoa extremamente respeitada dentro do seu Partido, em relação à posição manifestada pelo Presidente da República e pelo Líder do seu Partido, Senador Sérgio Machado, dizendo que o segundo turno é um incômodo, é algo ruim, é algo que desagrega. Não consigo compreender isso. Penso que o segundo turno, ao contrário, agrega, responsabiliza e traz uma condição completamente diferente ao governante, que assume os seus compromissos e o seu mandato com muito mais responsabilidade. Para mim, o segundo turno é uma das coisas mais úteis que se estabeleceu na Constituição deste País. Creio que a questão do segundo turno está extremamente associada à questão que V. Exª levanta sobre a diferenciação entre o voto facultativo e o voto obrigatório. De forma que quero manter a posição - espero que o Congresso também a mantenha - de continuar defendendo o segundo turno nas eleições de prefeitos, governadores e Presidente da República. Sem dúvida alguma, isso é melhor para o nosso País e para a democracia, mas a opinião de V. Exª é muito importante para nós.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Senador Ademir Andrade, tendo em vista que praticamente já esbocei o meu raciocínio relativo ao chamado voto que não quero chamar de obrigatório, mas de voto do dever, quero concordar plenamente com a opinião de V. Exª, apesar de, na minha concordância, discordar da posição do meu Líder e da posição, segundo entrevista que li, do Presidente da República, caso Sua Excelência realmente mantenha a idéia de não haver o segundo turno.

O procedimento escolhido pela sistemática brasileira para o segundo turno é muito interessante. Este só se dá quando a soma dos votos dos demais candidatos ultrapassa os votos do primeiro colocado. E isso exatamente pelas mesmas razões que estou a defender o chamado voto obrigatório, qual seja, a legitimidade do pleito.

Com a proliferação de partidos políticos no Brasil, quando se colocam em uma disputa seis, sete, até dez candidatos, como ocorre, o vencedor muito raramente ultrapassa os 30% dos votos válidos ou, se ultrapassar a soma dos votos dos demais candidatos, está automaticamente eleito. O princípio da legitimidade está, assim, mantido.

A meu ver, ter-se governantes, em qualquer nível, sem o grau de legitimidade ou sem o lastro do apoio popular necessário é ter governantes fracos, é ter governantes que vão enfrentar ingentes dificuldades, é ter governantes definitivamente embaraçados na sua ação executiva posterior.

Há ainda mais um outro argumento na linha da concordância com V. Exª. O voto do segundo turno é um voto antipático, mas exatamente por sê-lo é que não devemos ceder ao fato de que é mais simpático, mais simples, mais clean para o eleitor votar uma só vez. O voto no segundo turno é antipático por uma razão muito simples e muito profunda ao mesmo tempo: é antipático porque é um voto político.

O voto do primeiro turno é um voto pessoal, é uma escolha do eleitor diante dos candidatos, enquanto no segundo turno o eleitor é obrigado a fazer, muitas vezes, uma opção que não é a dele, e que não está movida pelos seus principais argumentos ou pelos seus principais convencimentos interiores. O eleitor precisa fazer uma opção de natureza política e, nesse instante, mesmo com dificuldade, ele está avançando do ponto de vista da cidadania; nesse momento, está-se dando uma espécie de pedagogia política, de compreensão da natureza profunda da atividade política, que leva o indivíduo a votar em alguém que não é o da sua escolha predominante, mas é alguém que, de alguma forma, efetuará as alianças políticas necessárias à vitória.

Portanto, o voto em segundo turno é um voto que induz à aliança. Como em política todo poder é dividido, as alianças são bem-vindas, porque elas são o trabalho construído com dificuldade entre os diferentes para tornar viável uma obra de Governo. Assim, o voto no segundo turno é um voto político e, conseqüentemente, é um voto pedagógico. A função pedagógica da política também se estabelece de modo mais claro, além dessa outra que V. Exª destacou muito bem: a legitimidade do voto.

Quando um governante recebe uma quantidade significativa de votos da maioria da população e quando ele é obrigado até a abrir mão da incolumidade da sua posição partidária para efetuar uma aliança política, está amadurecendo o processo político, está compreendendo que a política é plural e que os governos têm de representar essa pluralidade, ainda que ela seja difícil e tenha aparentes ou reais antagonismos.

O Sr. Geraldo Melo - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouvirei V. Exª com muito prazer.

O Sr. Geraldo Melo - Considero esse assunto tão importante, que até me atrevi a privar a Casa, por alguns minutos, do prazer que sempre é ouvir V. Exª, porque tendo, pelo menos até agora, a não concordar muito com esse entusiasmo em torno do segundo turno. Na realidade, o segundo turno é um momento político, mas existe uma profunda distância entre a sociedade, que é a dona do País, e a superestrutura política, que realmente muito mal se comunica com a base popular do País. O que temos visto na prática, Senador Artur da Távola, é que se realiza um exercício compulsório de formação de alianças no momento do segundo turno, mas esse compromisso se esgota às 5h da tarde, quando acaba a votação. Não vi, até agora, projetar-se sobre os governos nascidos das alianças que se formaram para o segundo turno esse apoio popular, supostamente mobilizado para dar ao eleito a legitimidade popular que lhe faltava, porque não atingiu 50% da maioria absoluta dos votos. Hoje, o que estamos observando? Não é por ter tido mais de 50% dos votos que o nosso Presidente Fernando Henrique Cardoso tem a força que tem. Se fosse, os atuais Governadores estariam vivendo o momento luminoso de sua força. Se o segundo turno tivesse o condão de transmitir para o Governo que se instala aquilo que falta para evitar que houvesse governantes fracos, não estaríamos vendo, em muitos Estados, o enfraquecimento deplorável de todas as autoridades que estão no comando do Executivo - não só os governos de Estado mas, também, as prefeituras municipais. Há um fenômeno mais profundo que está associado à desarticulação, à noção de soberania do Estado em relação ao cidadão; a nossa incapacidade de compreender que deveríamos nos preocupar mais com os problemas que incomodam o dia-a-dia das pessoas do que com as questões que possam estar atingindo o Tesouro dos Estados ou da União. Deveríamos procurar resolver os incômodos; afastar os dissabores que infernizam a vida do povo muito mais do que estarmos preocupados em garantir que o Tesouro Nacional, ou o Tesouro dos Estados, resolva os seus problemas. Talvez precisássemos que nossa geração de políticos se empenhasse em tentar refazer a aliança entre a superestrutura política e a sociedade, porque ela está desfeita. Na minha opinião, não vejo como nenhum segundo turno possa prover os eleitos dessa fragilidade original que está nessa dissociação. Desculpe ter interrompido sua intervenção, como sempre, brilhante.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Fui desviado do assunto do voto chamado obrigatório pelo aparte do Senador Ademir Andrade.

Evidentemente, há alguma relação entre um argumento que dei para o voto chamado obrigatório - não gosto da palavra obrigatório - e a questão do segundo turno. Também me manifestei favorável ao voto do segundo turno pelas mesmas razões de legitimidade na base da escolha.

Permita-me discordar de V. Exª em parte. Não com o conteúdo do seu discurso, que é justamente o de verberar a separação entre os acordos das cúpulas políticas e a base. V. Exª tem toda razão. V. Exª é homem de alto espírito público e de cultura, um ex-Governador de Estado, e, evidentemente, projeta o seu modo de ver, um modo evoluído e maduro, no processo. Mas lhe diria que o que V. Exª aponta como defeito do segundo turno é muito mais um defeito de governantes do que propriamente do instituto do segundo turno. V. Exª mesmo deu um exemplo. Veja o caso do Presidente da República. Sua Excelência foi eleito no primeiro turno, com uma aliança entre partidos e vem fazendo um esforço enorme para sua manutenção. Esta - quando o governante é maduro - não se esboroa; ao contrário, nosso Presidente passou a ser um agente diário da dificuldade de operar as contradições que existem no seio dessa aliança - que não são poucas! Para quê? Para existirem as condições de governabilidade e, portanto, uma aproximação efetiva daqueles compromissos da campanha. Vejo, no aparte de V. Exª, a manifestação da maturidade do seu espírito público. Mas creio que este defeito está muito mais em governantes incapazes de compreender o sentido profundo da legitimidade - saída das urnas com as alianças do segundo turno - do que propriamente um defeito dessa instituição, que é o segundo turno.

Como o tema é muito vasto, teremos - somos Companheiros de Partido e, por certo, vamos discuti-lo na Bancada - ainda a oportunidade de muito trabalhar esse assunto.

O Sr. José Eduardo Dutra - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouço o aparte do nobre Senador José Eduardo Dutra.

O Sr. José Eduardo Dutra - Senador Artur da Távola, não pude ouvir todo o seu pronunciamento, mas quero registrar minha concordância com os dois temas que acabei de ouvir. Primeiro, em relação ao segundo turno. A crítica feita no relatório do Senador Sérgio Machado foi, de forma semelhante, ainda há pouco, feita pelo Senador Geraldo Melo, no sentido de o segundo turno não ter atingido o seu objetivo de formar governos de coalizão ou de alianças políticas mais duradouras. Concordo com V. Exª, quando do aparte do Senador Geraldo Melo, que este não é um defeito do sistema do segundo turno. Existe esse aspecto levantado por V. Exª e existe o aspecto da própria falta de maior tradição do nosso quadro político-partidário, no sentido de que as alianças e as coligações, pela própria fragilidade do nosso quadro partidário, não têm sido feitas com base em projetos, com base em programas. Então, o defeito, que é do sistema partidário, está sendo agora colocado sobre as costas do instituto do segundo turno. O segundo turno serve, naturalmente, para as forças partidárias tentarem encontrar suas convergências, mas também serve para o eleitor. Todos sabemos que cada eleitor tem o seu candidato de preferência pessoal, política, ideológica, mas todos pensam: "se fulano não for eleito, prefiro o sicrano, em detrimento do outro". Então, o segundo turno é uma oportunidade efetiva de se dar essa maioria, do ponto de vista do eleitorado, para o que se eleger. Com relação à questão do voto-dever, confesso que saio muito satisfeito da sessão de hoje, porque alguns setores da imprensa tentam caracterizar os defensores do voto-dever - para não usar o termo obrigatório, como V. Exª está dizendo -, que teriam até deixado aqueles que se alinham no campo progressista um pouco incomodados, como se o fato de defender o voto-dever seja uma coisa retrógrada, uma coisa atrasada. Os argumentos levantados por V. Exª me deixam bastante satisfeito, por ver que a forma como está sendo colocada essa discussão é uma forma falsa, até porque, como disse, se não me engano, o Ministro Sepúlveda Pertence, a cidadania é muito mais do que um simples direito. Ela é um direito-dever, uma relação dialética entre o direito e o dever. Quanto ao voto obrigatório ou voto de dever, não cabe citar exemplos de outros países, porque existem exemplos dos dois lados. A Bélgica, a Itália, a Austrália, por exemplo, são países onde existe o voto obrigatório. O objetivo do meu aparte era concordar com esses dois pontos que V. Exª apresenta. Muito obrigado.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Agradeço a V. Exª e fico feliz com essa concordância. O tema é complexo, belo e desafiador e ainda vai mobilizar muito os debates desta Casa.

O Sr. José Fogaça - V. Exª me permite um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Ouço V. Exª com prazer.

O Sr. José Fogaça - Gostaria de participar do debate, não só porque V. Exª o está coordenando como orador, mas também porque os apartes me estimularam a tentar trazer um pouco de reflexão em torno dessa instituição que criamos para o regime presidencialista, ou seja, o sistema de dois turnos. Não estou insatisfeito com o sistema de dois turnos. Creio que ele tem funcionado razoavelmente bem, mas acredito que poderíamos introduzir algumas modificações. Por exemplo: criamos, para as eleições municipais, estaduais e presidenciais exigência de 50% mais um. Não sei se, em caso de municípios com duzentos ou trezentos mil eleitores, não seria razoável aceitarmos que, ao atingir 35 ou 40% - esse número pode ser fixado por um acordo de bom senso -, fosse assegurada a vitória no primeiro turno. É evidente que alguém que não alcançasse 35% ou 40%, não teria a autoridade política, a supremacia política e democrática que lhe desse essa condição. Esta é uma proposta de reflexão. Ela não está elaborada nem está definida. Não está sequer apresentada formalmente. Eu a estou esboçando como idéia. Um outro aspecto que me parece - este sim - consensual é que o espaço de tempo entre o primeiro e o segundo turno está muito grande. É possível reduzi-lo. Fixou-se tal espaço de tempo, porque havia, naquele período, a certeza de que a contagem dos votos era demorada - e naturalmente era. Esse prazo foi pensado, urdido, montado no final de 1987 e princípio de 1988, ou seja, há dez anos. Agora, há o voto eletrônico nas capitais e nas cidades com mais de duzentos mil eleitores. É perfeitamente possível reduzir-se até pela metade esse prazo. A data histórica de 15 de novembro acabou servindo como um ponto de referência. Alargou-se o prazo até 15 de novembro, porque era preciso ajustar o figurino na medida da data da República, que era tradicionalmente uma data de eleições no Brasil. Creio que é possível reduzirmos o prazo, sim. Acredito que seja possível tornar, principalmente no caso de eleições municipais, esse prazo menor e evitar o que está acontecendo nesta semana e acontecerá certamente na semana subseqüente no Congresso Nacional, que é uma espécie de paralisia, desnecessária se tivéssemos prazo menor. De fato, em estando ocorrendo eleições, não há como exigir que o Congresso Nacional siga o seu curso normal. A participação dos Parlamentares, a participação dos políticos é inevitável, natural e exigida pela população ao fim das contas. Desse modo, quero concordar com V. Exª. O sistema de dois turnos é funcional, mas isso não elimina a possibilidade de fazermos mudança. A outra observação que gostaria de fazer é quanto ao voto obrigatório e voto facultativo. Eu sempre fui militante do voto obrigatório, um sistemático adepto da idéia de que ele faz a população votar e que, portanto, aquelas demandas mais legítimas socialmente expressam-se de forma mais clara na eleição. Após o plebiscito de 1993, entretanto, passei por um longo processo de meditação e mudei meu posicionamento. O plebiscito de 1993 foi uma clara demonstração de que o voto obrigatório, em alguns circunstâncias, tem um caráter antidemocrático; antidemocrático porque era um voto dado por obrigação, mas desprovido das informações e dos elementos conceituais que permitissem ao cidadão votar adequadamente segundo sua perspectiva e seu interesse. Verificou-se que uma considerável parcela da população votou "não" ao parlamentarismo, votou "sim" ao presidencialismo, por um razão: entre o desconhecido e o ruim conhecido, entre a necessidade de estudar, analisar, refletir, comparar, medir as conseqüências do voto para o parlamentarismo e o estado, digamos assim, de quase letargia ou de passividade que o voto "sim" representava, essa foi a opção da maioria. Creio que naquele plebiscito o voto obrigatório sofreu, no Brasil, o seu primeiro golpe, ou seja, teve sua primeira fissura exposta. O voto obrigatório pode ser antipopular e antidemocrático, quando obriga uma população a votar em relação a situações sobre as quais ela não se esclareceu, não se aprofundou devidamente. Se ali o voto fosse facultativo, ou seja, só votassem os cidadãos que fizessem essa opção consciente, deliberada, pessoal, individualizada, não tenho nenhuma dúvida de que a vitória seria do parlamentarismo. Entre os cidadãos que estudaram o assunto, que fizeram reflexões, fizeram opções, a maioria era pelo parlamentarismo. E boa parte da população que desconhecia o tema - a pesquisa mostrou isso - votou no presidencialismo. Essa foi, para mim, a primeira fresta que se abriu contra o voto facultativo. E a mim determinou uma certa reflexão, uma mudança de visão. Então, eu diria que talvez, nos plebiscitos, nós tenhamos que introduzir o voto facultativo, para permitir que a opção consciente se expresse de maneira legítima e democrática. Não sei ainda se nas eleições nominais, como as que temos para prefeito, deputado, governador e presidente, seria esse o caso. Obrigado a V. Exª.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA - Agradeço-lhe a percuciência do aparte. Na primeira parte do dito, V. Exª traz elementos que devem ser considerados de imediato por nós, legisladores, no sentido de aprimorar o processo do segundo turno. Tanto a questão de aproximar a data como a de pensar na quantidade de votos necessária a uma aprovação pelo primeiro turno simplificariam o processo.

Quanto ao relativo desencanto de V. Exª com o voto de dever - prefiro chamar "voto de dever" a "voto obrigatório" -, V. Exª não estava aqui quando eu argumentava que, posto entre facultativo e obrigatório, a sedução da palavra "facultativo" e a antipatia da palavra "obrigatório" jogam elementos contrários à verdadeira discussão do problema.

Mas, quanto ao relativo abandono da idéia do voto como dever, vou ainda ter a esperança de que V. Exª retome a posição anterior. É claro que V. Exª, com muita prudência, disse ser facultativo no caso de plebiscitos e de referendos.

Eu, como V. Exª, militei na campanha parlamentarista e também sofri as dores da derrota. Agora, tenho uma visão diferente, embora não discorde de V. Exª. Era evidente que foi dado à população optar por um sistema que já conhece e outro sistema muito mais complexo, muito mais elaborado, e que, evidentemente, por causa da complexidade e da elaboração, não pôde ser compreendido.

Mas penso que há na sociedade o que costumo chamar de camisas de força de comunicação. Essas camisas de força de comunicação são "verdades" isoladas absolutamente impossíveis de serem contraditadas, por menos verazes sejam essas verdades.

Há algumas camisas de força de comunicação que posso citar de memória. Por exemplo, quando o processo da reforma da previdência chegou ao Congresso, a meu juízo, por erro de comunicação do Governo, passou-se para a população a seguinte frase: Vão acabar com os direitos dos aposentados. Isso é uma camisa de força de comunicação; nessa reforma, não havia uma vírgula, uma linha que atingisse os direitos dos aposentados. Não me refiro à recente medida provisória no caso do funcionalismo, refiro-me à reforma apresentada à época. E recordo que, antes mesmo de o projeto chegar aqui, vi na televisão pessoas idosas, sofridas, acostumadas a uma relação perversa do Estado com o aposentado, irem para as passeatas e, entrevistadas pela televisão, dizerem que estavam ali defendendo os direitos do aposentado.

Da mesma forma, ocorreu uma camisa de força na questão do parlamentarismo. A campanha presidencialista, de modo hábil, e, a meu ver, incorreto, mas eficaz, passou para a população a seguinte pergunta: Você quer deixar de votar para Presidente da República? Você quer perder o direito de escolher o Presidente da República? É evidente que a pessoa respondia que não. E, a partir dessa camisa de força de comunicação, foi absolutamente impossível remover este direito sagrado do cidadão, de escolher o governante. E ele ficou sem saber que, no parlamentarismo, ele escolheria o governante de modo muito amplo, porque há grande escolha partidária, e os governantes escolhidos na pluralidade partidária escolhem o Primeiro Ministro, escolhem o Poder Executivo. Mas foi ali também o aprisionamento da opinião pública por uma idéia simplificadora, sintética, massificadora e altamente divorciada de uma análise mais profunda do tema.

Sr. Presidente, em geral, os oradores acabam com uma bela peroração. Acredito que os apartes recebidos são a mais bela peroração do meu discurso.

Muito obrigado a V. Exª pela paciência.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/11/1996 - Página 18135