Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA PELO FALECIMENTO DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.

Autor
Sebastião Bala Rocha (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AP)
Nome completo: Sebastião Ferreira da Rocha
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA PELO FALECIMENTO DO SOCIOLOGO HERBERT DE SOUZA, O BETINHO.
Aparteantes
Ademir Andrade, Junia Marise, Marina Silva.
Publicação
Publicação no DSF de 15/08/1997 - Página 16324
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, HERBERT DE SOUZA, SOCIOLOGO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. SEBASTIÃO ROCHA (Bloco/PDT-AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs Senadoras, Srs. Senadores, venho à tribuna nesta tarde para me juntar aos Senadores e Senadoras que já tiveram oportunidade de venerar, de homenagear a memória do nosso Herbert de Souza, o Betinho. E o faço em meu nome e em nome do Partido Democrático Trabalhista.

Betinho, que não era filiado a nenhum partido político, desenvolveu, como bem apontou a Senadora Benedita da Silva, atividades cívicas e também na área da política e contribuiu com o Partido Democrático Trabalhista ajudando na elaboração do estatuto do Partido. Por isso, esta homenagem, prestada também à família de Betinho, ao Daniel, ao Henrique, à esposa Maria Nakano, é feita também em nome do Partido Democrático Trabalhista.

Betinho, que nasceu em 3 de novembro de 1936, para uma existência marcada pelo sofrimento físico e pela ameaça permanente da morte. Foi vítima do mesmo mal que continua a levar milhares de brasileiros à morte: a transfusão de sangue contaminado. Hemofílico, como todos sabemos, o sociólogo descobriu, em 1986, que recebera direto na veia o vírus da Aids. Seis anos depois, também por meio de uma transfusão de sangue, foi contaminado pelo vírus da hepatite C. Morreu, portanto, não em função diretamente da AIDS, mas, sobretudo, por causa da hepatite.

Formado em Sociologia, Betinho ajudou a fundar, em 1962, a Ação Popular (AP). Era assessor de Paulo de Tarso, Ministro da Educação do Governo João Goulart, quando aconteceu o o golpe militar de 64. Foi perseguido, preso, saiu para o exílio e, em 1979, foi anistiado.

Como membro do Conselho de Segurança Alimentar (Consea), tornou-se a grande mola propulsora de uma das maiores mobilizações populares contra a fome jamais vistas no Brasil. Nesse período, o Brasil viveu um dos movimentos mais solidários de sua história: 25 milhões de pessoas contribuíram de alguma forma e outras 2 milhões e 800 mil engajaram-se diretamente na campanha contra a fome, através dos 4 mil comitês da Ação da Cidadania que foram criados em todo o País.

Betinho deixa como legado uma série de campanhas que ganharam adesões em todo o País e que foram reconhecidas internacionalmente. Foi, indiscutivelmente, o marco fundamental da luta contra a fome, contra a Aids e contra a injustiça social. Deixou o exemplo da dignidade, da sua luta permanente pela cidadania e pelas reformas sociais. Sua morte, entretanto, não representa o fim dessas batalhas, que certamente terão continuidade - é o que esperamos - nas mãos de milhares de brasileiros que compreenderam e que absorveram o trabalho magnífico desenvolvido por Betinho.

Betinho morreu como herói, como um brasileiro verdadeiro, cuja memória será cultuada por todos nós. Muitas autoridades que se pronunciaram a respeito dele consideraram-no um símbolo, um ícone. Mas o que simbolizava Betinho? Ele começou a sua militância em favor dos mais pobres quando era estudante. Ainda em 1960, em congressos estudantis, Betinho pôde destacar-se por suas idéias e já despertava a Nação para o que de mais bonito existia na sua personalidade: a solidariedade.

Betinho simbolizou a luta de uma sociedade, de um segmento importante do País que queria a liberdade plena e que não queria a implantação da ditadura militar. Betinho simbolizou a luta contra as injustiças sociais. Mais do que tudo, Betinho, de fato, foi um dos maiores símbolos brasileiros no âmbito da solidariedade humana. Como Betinho, tivemos a Irmã Dulce e podemos citar talvez mais uma dezena de brasileiros que se destacaram na luta para minorar o sofrimento humano.

Como seria bom se, quando se fala em globalização econômica, o Brasil pelo menos conseguisse nacionalizar o espírito de Betinho e a sua vocação para servir e para contribuir para a solução dos problemas que tanto maltratam o povo brasileiro, sobretudo os mais humildes.

Mas o nosso País foi incapaz de nacionalizar o símbolo Betinho, o exemplo de Betinho. Como todos sabemos, meses antes de sua morte, Betinho teve de afastar-se do Programa Comunidade Solidária em função de discordâncias quanto aos rumos que eram traçados, as decisões e ações que eram implementadas por aquele Programa. Ao concorrer com um outro projeto liderado por Betinho, um projeto de combate à fome e à miséria e em favor da cidadania, o Comunidade Solidária, de certa forma, inibiu a ação magnífica de Betinho.

Nosso País foi incapaz de se inspirar no exemplo de Betinho para trazer à nossa população, sobretudo à mais humilde, aquilo de que ela mais necessita, que é a solidariedade humana. Se já foi tão difícil nacionalizar, incorporar no espírito das ações de Governo o exemplo de Betinho, mais difícil certamente será globalizar as ações voltadas para o social.

O Governo brasileiro tem norteado a sua política na globalização, mas, infelizmente, centra todos os seus esforços apenas na globalização da economia. Pouco ou quase nada é feito para se trocar experiências de outro nível; nada praticamente recebemos de apoio social de países capitalistas - como hoje é o nosso País -, que tanto reclamam de uma parceria do Brasil no processo de globalização.

Acredito que seria fundamental que os problemas dos mais humildes no nosso País fossem, de fato, tratados de forma universal, e que os países ricos, ao sentar na mesa para negociar, conjuntamente, ações de globalização, não deixassem de lado o aspecto da solidariedade humana, do apoio àqueles que não têm moradia digna, que não recebem o tratamento adequado à sua saúde e não dispõem sequer do grau mínimo de alfabetização.

A Srª Marina Silva - V. Exª me permite um aparte?

O SR. SEBASTIÃO ROCHA - Pois não.

A Srª Marina Silva - Parabenizo V. Exª pelo pronunciamento e cumprimento os que já o antecederam na homenagem à memória do Betinho.

Uma das coisas interessantes que podemos observar na trajetória do Betinho é que ele foi um dos poucos cidadãos brasileiros a receber uma das maiores homenagens da sociedade brasileira, que foi um perdão público, um perdão social, quando ele, em nome de uma boa causa, admitiu que havia cometido um erro. Quando Betinho recebeu uma doação para ajudar pessoas portadoras de Aids, em dinheiro ligado ao jogo do bicho, houve imediatamente um estranhamento do Brasil e das pessoas que conheciam quão era correto o sociólogo Herbert de Souza. Imediatamente, Betinho apresentou um pedido de desculpas à sociedade brasileira.

Pelo que acompanhei e senti, não apenas os brasileiros que ouviram ou leram nos jornais, mas inclusive os meios de comunicação foram capazes de entender o gesto de Betinho. Poucas pessoas conseguiriam um ato como esse da sociedade brasileira, em momentos em que as pessoas vêem com estranheza qualquer coisa que, embora coberta de boa intenção, possa ter algum indício de irregularidade. Atribuo isso à figura de alguém que, pelo trabalho que fez e o comportamento que tinha, passou a ser identificado como alguém incapaz de cometer um erro proposital ou para tirar qualquer tipo de proveito pessoal.

Faço questão de fazer este registro, porque mesmo quando foi, digamos assim, aventada a possibilidade de que ele poderia ter cometido um erro, a sociedade brasileira reconheceu e identificou no seu gesto algo de grandioso. Inclusive na sua capacidade de reconhecer que, embora cheio de boa intenção, os métodos usados para atingir o nobre objetivo não eram os mais corretos. Quanto ao que V. Exª está dizendo sobre os problemas da fome, os problemas sociais e a relação disso tudo com o processo de globalização, só posso repetir aqui uma das frases do Professor Cristóvam Buarque, Governador de Brasília, que considero muito interessante. S. Exª diz que o mundo já está completo em termos de modernidade técnica e que precisaríamos, principalmente os países desenvolvidos, buscar uma modernidade ética, onde o interesse humano estivesse acima dos interesses mesquinhos de grupos, do lucro fácil, do aproveitamento indevido, daquilo que foi disponibilizado de forma democrática pelo Criador. Parabenizo V. Exª pelo brilhante pronunciamento.

O SR. SEBASTIÃO ROCHA - Agradeço a V. Exª e incorporo o seu aparte, com muita satisfação, ao meu pronunciamento.

Em relação ao episódio relatado por V. Exª, de que Betinho teria utilizado dinheiro do jogo do bicho na campanha contra a fome, ele teve a dignidade de exibir para o País um de seus momentos mais célebres, ao dizer que o episódio servia para desmistificá-lo, ao mostrar que ele não era santo, mas que estava empenhado na solução de um problema crucial da população brasileira, que era a fome. Ele teve a humildade e a dignidade de reconhecer que, embora cometendo um equívoco, o objetivo final de sua ação era sanar um dos graves males que abatem a nossa população.

Não tive o privilégio de desfrutar da companhia de Betinho, da sua convivência. Tudo que sei sobre ele é o que mostra a literatura, a imprensa e o que lemos sobre suas ações, sua vida e sua biografia.

Na juventude, participou do Juventude Católica e, mais tarde, dessagralizou-se completamente e se afastou de qualquer religião. Apesar disso, Betinho foi um verdadeiro apóstolo, porque conseguiu entender e incorporar, nas suas ações, os mandamentos de Deus, trazidos ao mundo por Jesus Cristo. Betinho teve essa sabedoria: sem ser crente, soube seguir o exemplo da boa-fé, da ação em favor dos mais humildes, dos mais pobres e de desenvolver, no nosso País, um dos trabalhos mais brilhantes em função da solidariedade humana.

O Sr. Ademir Andrade - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. SEBASTIÃO ROCHA - É com prazer que ouço V. Exª., Senador Ademir Andrade.

O Sr. Ademir Andrade - Senador Sebastião Rocha, quero me associar às manifestações de V. Exª e de todos os Senadores que o antecederam nesta homenagem ao sociólogo Herbert de Souza. Já disse aqui e volto a repetir que um dos pontos mais importantes na vida de Betinho foi a compreensão do valor da existência. Muitas pessoas passam pela vida e não compreendem que são efêmeros; passam pela vida agitados por resolver seus problemas pessoais, com uma ganância enorme para acumular riquezas, dominar e explorar pessoas. Às vezes até conseguem sucesso nesse campo, mas morrem e são totalmente esquecidos. O Sociólogo Herbert de Souza conseguiu o que deve ser o caminho almejado por todos nós: valorizar a sua existência enquanto ser humano; ter o desprendimento dos bens materiais; pensar no todo; enxergar o mundo, a sociedade, o sofrimento do seu semelhante; combater a exploração e buscar uma sociedade mais digna e solidária, uma sociedade onde haja o amor, a fraternidade e a igualdade. Betinho morreu. Hoje, é homenageado por nós e será lembrado por toda a vida. É isso o que vale na vida do ser humano: não limitar a sua realização ao seu bem-estar pessoal ou até mesmo ao de sua família, mas ver mais longe, ver o mundo como a sua própria família. Foi o que fez Herbert de Souza, e é assim que se devem comportar todos os homens deste nosso tão belo Planeta. Se assim acontecer - espero que muitos sigam o seu exemplo -, haveremos de realizar o sonho que ele teve: vamos permanentemente lutar para construir. Concluo minhas palavras congratulando-me com V. Exª por esta homenagem, inclusive com o Senador Lúcio Alcântara, por ter proposto esta sessão de homenagem. Que Herbert de Souza sirva de exemplo para todos nós; que o seu ideal nos ajude a transformar nossa Pátria e o nosso mundo. Muito obrigado.

O SR. SEBASTIÃO ROCHA - Estou convencido de que V. Exª está coberto de razão. Betinho valorizou a existência humana, Betinho valorizou o seu semelhante, mas Betinho, sobretudo, valorizou a vida. Isso é o mais importante na sua trajetória.

Ao concluir, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, gostaria de dizer que, no meu entendimento, não basta afirmar que Betinho foi um exemplo, que Betinho é um símbolo, que Betinho se constituiu num ícone da solidariedade humana. Se não formos capazes, se o nosso País, se o Governo brasileiro, se os governos dos países ricos não forem capazes de entender a vida de Betinho como um ensinamento dos caminhos que devem ser seguidos, em busca de se igualar os cidadãos do mundo inteiro, combatendo as desigualdades sociais, garantindo dignidade à vida de cada ser humano, pouco valerá o símbolo, o ícone, o exemplo, porque, daqui a alguns anos, ele poderá cair no esquecimento.

Portanto, faço um apelo ao Governo brasileiro, na pessoa do Presidente da República, Senhor Fernando Henrique Cardoso, para que incorpore, para que absorva no seu programa de Governo os ensinamentos de Betinho e que transforme o Programa Comunidade Solidária num conjunto de ações que, de fato, venham a contribuir para a erradicação das desigualdades sociais neste País em favor daqueles que não têm comida, em favor da habitação daqueles que não têm onde morar, em favor da educação para os que não tiveram oportunidade de aprender, em favor da saúde.

Aliás, uma das causas da morte de Betinho, seguramente, foi a fragilidade do nosso sistema de saúde. Muitas vezes, nós, que ajudamos no aporte de recursos para a saúde - porque ajudei a aprovar a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, uma vez que compreendo a necessidade de injetar mais recursos no nosso sistema de saúde -, questionamo-nos sobre a aplicação desses recursos.

Por isso, entendo e faço este apelo, para que o Presidente da República busque, nos ensinamentos de Betinho, os caminhos para o Comunidade Solidária. Ao mesmo tempo, apregoar pelo mundo inteiro e conclamar as nações ricas a se juntarem numa campanha que tenha como fundamento básico o combate à fome e à miséria em favor da cidadania. Esta é a globalização que desejamos: não apenas a globalização da economia, mas a globalização da qualidade de vida que desfrutam os países mais ricos, que se negam a oferecer numa parceria aos países pobres.

A Srª Júnia Marise - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. SEBASTIÃO ROCHA - Concedo, com prazer, o aparte à Senadora Júnia Marise.

O SR. PRESIDENTE (Antonio Carlos Magalhães) - Permita-me interromper V. Exª, Senadora Júnia Marise, para prorrogar a Hora do Expediente por 15 minutos, porque temos matéria na Ordem do Dia. Prorrogada por 15 minutos a Hora do Expediente, com a palavra V. Exª.

A Srª Júnia Marise - Senador Sebastião Rocha, agradeço a V. Exª pela oportunidade do aparte nesta sessão em que o Senado Federal presta homenagem ao sociólogo Herbert de Souza. Manifesto a minha solidariedade não apenas nesse momento em que o Brasil perde um dos brasileiros que mais atuou nas últimas décadas em favor da população mais pobre do País, mas também como mineira - Betinho também o era -, orgulhosa do trabalho que ele vinha desenvolvendo com toda a sua energia, com toda a sua força, com toda sua coragem de posicionar-se, cobrando, nos momentos mais importantes e mais decisivos, ações do Poder Público voltadas para minorar a pobreza e o sofrimento da nossa população. Por essa razão, Betinho transformou-se no cidadão brasileiro, no homem que estabeleceu na sociedade os parâmetros de ética em relação à nossa vida pública e, acima de tudo, à vocação de servirmos a uma Nação que está hoje, segundo Betinho, em situação de pobreza e miséria social. Concluo, Senador Sebastião Rocha, enfatizando, como bem V. Exª o fez, a origem, a trajetória e os valores morais do nosso sociólogo Herbert de Souza. A homenagem a Betinho não acontece apenas agora no Senado Federal, mas acontecerá em todo o Brasil quando se der prosseguimento à sua ação em favor do desenvolvimento econômico e principalmente do desenvolvimento social do nosso País. Foi dessa forma que Betinho agiu como sociólogo, mas, acima de tudo, como cidadão brasileiro voltado para a cidadania do nosso povo, para o resgate da miséria e da pobreza da nossa sociedade. Muito obrigada a V. Exª.

O SR. SEBASTIÃO ROCHA - Obrigado, Senadora Júnia Marise.

Encerro, Sr. Presidente, enfatizando a essência do meu pensamento: se Betinho foi capaz de mobilizar 25 milhões de pessoas em favor de uma causa justa, a seu critério, sem dispor dos meios de comunicação, sem dispor de recursos abundantes, se foi capaz de sanar uma das maiores mazelas da nossa população, a fome, imaginem o que aconteceria se o Governo brasileiro, se os governos estaduais, as prefeituras e os governos dos países ricos, incorporando o ensinamento de Betinho, multiplicassem esse exemplo, que deve ser considerado tese vitoriosa, e o adotassem em suas administrações.

Era isso que tinha a dizer, Sr. Presidente. Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 15/08/1997 - Página 16324