Discurso no Senado Federal

ANALISE DAS CONSEQUENCIAS DA REVOLUÇÃO RUSSA DE 1917, POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DOS 80 ANOS DO ADVENTO DO COMUNISMO. RELATANDO O CALVARIO DE INTELECTUAIS RUSSOS RETRATADO PELO PESQUISADOR VITALY SHENTALINSKY, NA OBRA 'THE KGBS LITERARY ARCHIVES', EXTRAIDO DO ARQUIVO SECRETO DA POLICIA POLITICA RUSSA, A KGB.

Autor
Jefferson Peres (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SISTEMA DE GOVERNO.:
  • ANALISE DAS CONSEQUENCIAS DA REVOLUÇÃO RUSSA DE 1917, POR OCASIÃO DA COMEMORAÇÃO DOS 80 ANOS DO ADVENTO DO COMUNISMO. RELATANDO O CALVARIO DE INTELECTUAIS RUSSOS RETRATADO PELO PESQUISADOR VITALY SHENTALINSKY, NA OBRA 'THE KGBS LITERARY ARCHIVES', EXTRAIDO DO ARQUIVO SECRETO DA POLICIA POLITICA RUSSA, A KGB.
Aparteantes
Bello Parga.
Publicação
Publicação no DSF de 19/11/1997 - Página 25107
Assunto
Outros > SISTEMA DE GOVERNO.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, IMPLANTAÇÃO, DESENVOLVIMENTO, SOCIALISMO, PAIS ESTRANGEIRO, RUSSIA.
  • ANALISE, CRITICA, ATUAÇÃO, JOSEPH STALIN, GOVERNANTE, PAIS ESTRANGEIRO, RUSSIA, FORMA, MANUTENÇÃO, PODER, SOCIALISMO, PERSEGUIÇÃO, CONDENAÇÃO, MORTE, INTELECTUAL, POLITICO, DEMONSTRAÇÃO, OPOSIÇÃO, REGIME, DITADURA, COMUNISMO.

           O SR. JEFFERSON PÉRES (PSDB-AM. Pronuncia o seguinte discurso.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, lerei hoje, com atraso, o pronunciamento que deveria ter feito no dia 7 de novembro. Infelizmente, o começo de crise que mergulhou o País e outros acontecimentos particulares não me permitiram fazê-lo.

           Sr, Presidente, Srªa e Srs. Senadores, Karl Marx passou quase toda a vida lutando para distanciar-se do que chamava de equívocos idealistas de seu grande mestre Hegel. No entanto, jamais conseguiu escapar completamente ao fascínio exercido por um aspecto crucial do legado hegeliano. Refiro-me àquela insuperável sensibilidade do autor de A Fenomenologia do Espírito para uma certa dimensão “irônica” da dialética histórica.

           Foi assim, por exemplo, que, ao desmaracar a manobra propagandística de Luís Bonaparte, empenhado em convencer os franceses de que o golpe de Estado de 1851 assinalava a volta dos dias de glória do império criado por seu tio, Marx não hesitou em recorrer à velha advertência de Hengel: “a história só se repete como farsa”...

           Nascido em 1818, tivesse Marx chegado aos 100 anos para testemunhar a Revolução de Outubro de 1917, na Rússia, ele, por certo, enriqueceria o tesouro do pensamento dialético com um postulado inverso - o de que as farsas não tardam a degenerar em tragédia.

           Já me explico, antes que os nostálgicos da velha Esquerda me acusem de estar praticando o covarde esporte do chute ao cachorro morto. Nem Karl Marx, nem seu infatigável companheiro de lutas políticas e intelectuais, Frideric Engels, poderiam, em sã consciência, conceber a Russia, a santa Rússia dos czares e dos mujiques, como centro histórico da revolução mundial. Para ambos, o advento do socialismo só poderia resultar de um longo, contínuo e portentoso processo de desenvolvimento das forças produtivas - aí compreendidas a tecnologia e a organização do trabalho. Ora, a Rússia agrária, atrasada e “oriental”, baluarte do reacionarismo europeu do Século XIX, era o solo menos provável de onde poderia brotar o socialismo, prelúdio do comunismo, versão marxista do fim da história, aliás, outra concepção hegeliana.

É curioso ver como a Esquerda investiu tanto contra Francis Fukuyama quando ele disse que com a vitória do liberalismo teríamos chegado ao fim da história.

Ora, quando Marx disse que a etapa superior do socialismo seria o comunismo com o fim do Estado, com o fim da sociedade de classe, ele preconizou e prognosticou o fim da história, Sr. Presidente.

Os entusiasmos generosos suscitados pela jovem revolução ao redor do Planeta sufocaram a advertência de Marx aos líderes da socialdemocracia alemã que haviam pedido sua bênção ao programa partidário aprovado em Gotha, no ano de 1875: "Somente quando, das fontes do progresso social, a riqueza e o bem-estar jorrarem com abundância, poderá a humanidade escrever em sua bandeira: 'de cada um segundo sua capacidade; a cada um segundo suas necessidades’." Uma advertência acima de tudo coerente com que o jovem Marx havia registrado quase 30 anos antes no seu Manifesto comunista, cuja primeira parte é uma verdadeira ode à tarefa histórica, heróica e revolucionária que a burguesia então apenas iniciava: a unificação do mundo em apenas um mercado. Uma tarefa que hoje prossegue sob o nome de globalização e cujo fim, apesar dos aplausos de uns e desalento de outros, ainda nem sequer pode ser adivinhado no horizonte das possibilidades históricas.

           Assim, para Marx, de acordo com a lógica de sua filosofia da história, as “locomotivas” do socialismo/comunismo só poderiam ser aqueles países onde a revolução industrial e tecnológica tivesse atingido seu apogeu, tais como a Inglaterra, a Alemanha, ou mesmo os Estados Unidos. Nunca a Rússia, onde a ausência dessas condições objetivas, a rigor, obriga-nos hoje até mesmo a questionar o caráter “revolucionário”, em sentido marxista, dos acontecimentos de outubro de 1917. Seu contorno histórico é muito mais o de um golpe de força, desferido por uma minoria implacável e audaciosa contra o pano de fundo de um país atrasado, exausto em razão dos sacrifícios humanos e materiais da Primeira Guerra Mundial e dilacerado entre a incompetência de suas elites decadentes e o desespero das massas camponesas famintas. Esse é o diagnóstico histórico de duas das maiores autoridades na área atualmente: o americano Richard Pipes e o francês Martin Malya.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, essa ironia histórica teve conseqüências infinitamente mais graves que o mero ajuste dos esquemas teóricos originais do marxismo. A Revolução Russa sulcou o século que agora se encerra com um rastro macabro de dezenas de milhões de cadáveres. Matou mais cidadão soviéticos que a Wehrmacht de Hitler. Juntos, Lênin e Stalin, eliminaram mais comunistas que todos os regimes de direita somados, desde o golpe contra a Assembléia Constituinte (em 1918) e o massacre dos marinheiros rebelados na fortaleza de Kronstadt (em 1921), até a supressão, manu militari, do levante húngaro comandado por Imre Nagy (em 1956) e da breve Primavera de Praga (em 1968), passando, é claro, pelos gigantescos expurgos stalinistas dos anos 30, cujo longo braço fatal atravessou meio mundo para assassinar Trostky em seu exílio mexicano. Que coisa mais trágica e mais irônica, Sr. Presidente, tenha sido um corifeldo comunismo Stalin, o homem que matou mais comunistas em todo o mundo. É um caso para realmente os remanescentes da Esquerda meditarem profundamente. Nem Hitler matou mais comunista do que Stalin matou na Rússia, e alguns dos mais fiéis e ilustres como; além de Trostky, Bulkharim, Zinoviev, Kamanev e tantos outros. Que o diga também a lembrança de outros bolcheviques de primeira hora, todos pertencentes à velha guarda revolucionária, todos afogados no mesmo rio de sangue: Bukharim, Zinoviev, kamanev, para mencionar apenas alguns dos mais famosos.

           Uma última ironia cruel do comunismo, regime que não sobreviveu para comemorar esses 80 anos da revolução que lhe deu origem, esmagado pelo peso do terror e do militarismo que, paradoxalmente, revestiam-no com a aparência de monolítica invencibilidade: foi um sistema erigido por intelectuais sequiosos de operar uma síntese, de natureza e proporções inéditas, entre a teoria e a prática, e que, no entanto, se transformou em uma máquina de destroçar homens e mulheres de cultura, das letras e das artes, cujas aspirações de liberdade espiritual, por mais tênues e sutis, afiguravam-se insuportáveis a um aparato votado a ser um monopólio estatal no pensamento, mediante duas pedientes da intimidação policialesca e da mistificação ideológica, conforme insuperável retrato do fenômeno totalitário traçado pela filósofa alemã Hannah Arendt a partir dos regimes em grande medidas gêmeos de Hitler e Stálin.

A mim, pessoalmente, essa contradição diabólica sempre soou perturbadora e absurda. Por isso, em vez de fatigar os que me ouvem com um exercício de estatística macabra, citando as numerosas ondas repressivas em que milhões e milhões de súditos da ditadura soviética foram devorados pela tortura, as execuções, as deportações em massa e a infâmia mentirosamente orquestrada pela máquina de propaganda do regime, quero personalizar meu pronunciamento com o relato do calvário de alguns poucos intelectuais russos, reconstituído com pungente brilhantismo documental por Vitaly Shentalinsky na obra Os Arquivos Literários da KGB, publicado há cerca de quatro anos, extraído dos arquivos da famigerada Polícia Secreta Russa.

Ossip Mandelstam, um dos mais ilustres intelectuais russos dos anos 20 e 30. Ossip Mandelstam, poeta e ensaísta judeu, considerado hoje um dos maiores nomes da poesia russa, foi preso em 1934, Sr. Presidente, por ter recitado, para uma roda de amigos o poema contra Stálin, vindo a morrer em um campo de concentração de Vladivostok, na Sibéria, dois anos depois.

Não me passa pela cabeça, não posso conceber num regime criado em nome do humanismo, Sr. Presidente, da redenção da humanidade, um ilustre intelectual ser preso, mandado para um campo de concentração porque numa roda de amigos recitou um poema contra o ditador. Por maiores que tenham sido as atrocidades cometidas, por exemplo, pelo regime militar brasileiro, jamais isso poderia acontecer num país como lá. Aconteceu na Rússia de Stálin.

Isaac Babel - outro judeu - terá sido coincidência haver tantos judeus condenados -, autor dessa verdadeira obra-prima que é o conjunto de contos intitulado A Cavalaria Vermelha, onde relata, com vívida concisão, suas aventuras como soldado durante a Guerra Civil de 1917/19. Foi preso em 1939 e executado em janeiro de 1940.

Nikolai Klinev , poeta camponês, herdeiro da tradição eslavófila de Iessiênin, teve sua poesia folclórica condenada como estética e ideologicamente reacionária. Preso em Tomsk em 1936, foi executado no ano seguinte.

Para concluir, Sr. Presidente, reproduzo aqui uma terrível passagem da carta encontrada pelo pesquisador Shentalinsky na pasta da polícia política dedicada ao famoso diretor teatral Vsevollod Meyerhold, que, havendo apoiado o regime soviético ao longo dos anos 20, cairia em desgraça e seria preso em 1939, por discordar da diretriz estética oficial do chamado realismo socialista.

V. Exª sabe que Andrei Gikanovitch era o ditador intelectual no tempo de Stálin. O burocrata Andrei Gikanovitch decidia o que era poesia ou literatura, revolucionária, socialista, portanto, publicava o que era literatura burguesa reacionária que por isso, não, apenas, era publicada, mas também seus autores estavam sujeitos à prisão e à morte.

Dirigida ao líder, Ministro das Relações Exteriores, Viacheslav Molotov, a carta provavelmente jamais foi entregue. E, permito-me uma breve especulação, mesmo que o tivesse sido, de nada valeria, já que o próprio Molotov serviu a Stálin com abjeta fidelidade, por todo o tempo em que sua mulher permaneceu presa em um campo de concentração siberiano. A mulher dele presa no campo de concentração, como dissidente, e ele Ministro de Estado das Relações Exteriores.

Mas, vamos ao depoimento de Mayerhold:

"Os investigadores começaram a usar a força contra mim, um velho doente de 65 anos. Fizeram-me deitar com a cara no chão e então bateram nas solas dos meus pés com uma tira de borracha. Pelos próximos dias, quando partes da minha perna estavam cobertas com hemorragias internas, eles bateram novamente sobre os ferimentos com a correia [....]. Urrei e chorei de dor[....]. Com a cara no chão, descobri que podia me contorcer, me enroscar e guinchar como um cachorro quando é açoitado pelo dono[......] “A morte, com toda certeza, é melhor do que isso”; a pessoa interrogada se diz. Comecei a me incriminar, na esperança de que isso ao menos me levaria mais rapidamente ao patíbulo..."

Minhas Senhoras e meus Senhores:

A reflexão sobre estes e outros horrores evidencia a cada um de nós que, para além do fracasso econômico e da "indigestão geopolítica", a derrocada do regime inaugurado pela Revolução de Outubro não pode ser explicada sem referência à sua lancinante dimensão moral.

O Sr. Bello Parga (PFL-MA) - Permite V. Exª um aparte?

O SR. JEFFERSON PÉRES (PSDB-AM) - Concedo, com todo prazer, o aparte a V. Exª.

O Sr. Bello Parga (PFL-MA) - Nobre Senador Jefferson Péres, no momento em que V. Exª faz, em rápidas pinceladas, uma apreciação sobre o quadro terrível que foi o domínio da força bruta, como exercício político, proveniente da Revolução Russa de 1918, permita-me acrescentar apenas dois aspectos que sintetizam muito bem o que foi a verdadeira guerra interna, que se travou no seio do poder soviético. O Congresso do PCUS, Partido Comunista da União Soviética, de 1934, teve 1.966 delegados; ao Congresso subseqüente faltaram 1.108, porque foram fuzilados. Essa foi a guerra intramuros pelo poder, lá deflagrada, conduzida e executado por Stálin e seus sequazes, dos quais a história destaca Kaganovitch e Lavrenty Béria. E, finalmente, após a morte de Stálin o conflito que se estabeleceu para a sucessão foi muito descrito por Jorge Senprum, escritor espanhol de língua francesa porque foi exilado - exilou-se após a vitória de Franco, época da Guerra Civil na Espanha -, contado para ele por quem foi...na ocasião era Santiago Carrilho, Líder comunista espanhol com quem teve desavenças posteriormente e acabou sendo expulso, porque não seguiu a linha do socialismo realismo da literatura. Para a primeira reunião do Politburo depois da morte de Stálin, Béria, como chefe de segurança, estabeleceu um sistema rigoroso de acesso ao Politburo. Somente os militares poderiam entrar armados, e foram eles que chegaram adiantados, trouxeram armas escondidas em seus uniformes, distribuíram-nas aos outros membros do Politburo e, logo ao se iniciar a sessão, Béria foi fuzilado. Felizmente, porque data do assassinato de Béria o início do degelo e o começo da democracia na revolução russa.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PSDB-AM) - Muito obrigado, Senador Bello Parga.

Durante mais de 30 anos, Stálin prendeu, matou e exilou não apenas os inimigos do regime, mas também excelentes comunistas que dele discordavam. Enquanto isso, aqui, no Ocidente, semanalmente era publicado um manifesto de apoio ao “paizinho” Joseph Stálin. Eu próprio, quando jovem esquerdista, quantas vezes fui instado a assinar manifestos a favor do Stálin, e todos os que denunciavam as atrocidades, Senador Bello Parga, estavam a serviço da burguesia. Eram mentirosos, caluniadores e inimigos do socialismo, era assim que olhavam. Tinha toda a razão Raymond Aron, quando disse que o marxismo sempre foi o ópio dos intelectuais, em uma obra famosa que deveria ser leitura obrigatória de todas as pessoas que queiram realmente se informar um pouco, e mais do que se informar, compreender como foi que essa monstruosidade pôde prosperar em todo o mundo, mais do que com a complacência, com o apoio dos intelectuais de todo o mundo.

Na ausência dessa reflexão, todos nós, que nos sentimos responsáveis pela atualização da herança ética e humanista do marxismo, na vertente socialdemocrática de Eduard Bernstein e Carlo Rosseli, estaremos desequipados para enfrentar os complexos desafios e também capitalizar as notáveis oportunidades com que o terceiro milênio nos aguarda.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/11/1997 - Página 25107