Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM POSTUMA AO SENADOR DARCY RIBEIRO, NO TRANSCURSO DO PRIMEIRO ANO DE SUA MORTE.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • HOMENAGEM POSTUMA AO SENADOR DARCY RIBEIRO, NO TRANSCURSO DO PRIMEIRO ANO DE SUA MORTE.
Aparteantes
Lúcio Alcântara.
Publicação
Publicação no DSF de 05/03/1998 - Página 3325
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, DARCY RIBEIRO, SENADOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ).

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs. Senadoras, Srs. Senadores, fico a pensar no que faria Darcy Ribeiro se tivesse que falar sobre ele mesmo numa sessão especial. Com aquela sua alegria e capacidade permanente de improviso e criatividade, o que teria a dizer depois de um discurso tão importante e exaustivo como o que fez o nobre Senador Abdias Nascimento, que exauriu toda a beleza da vida de Darcy numa biografia rápida, precisa, concisa, emocionada e sobretudo justa?

Imagino que, se tivesse que falar depois de um discurso tão concatenado, Darcy buscaria o improviso absoluto, a anarquia criativa do pensamento. E é com esse espírito que, espero, iluminado por ele, venho a esta tribuna, sem a preparação que merecia esse fato. Mas estimo que Darcy gostaria desse pensamento que flui livremente, alegre como ele, se possível até irreverente, se bem que, infelizmente, essa não seja uma das característica deste Orador.

O Darcy pessoa precisa ser muito bem compreendido por todos nós. Posso falar com algum conhecimento, porque o conheci em 1960. Trabalhei diretamente com ele no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais. Tivemos uma longa convivência. Depois convivemos ao tempo da formação da Universidade de Brasília. Fomos exilados juntos, embora para países diferentes, e depois o reencontrei aqui no Senado.

A pessoa de Darcy Ribeiro era possuída por aqueles diabinhos benditos que fazem muito mais parte do céu do que do inferno - Deus também tem os seus diabinhos! E esses diabinhos brincavam no seu olhar, na sua fala, na sua constante alegria, naquela criança livre que morava dentro de Darcy e que o acompanhou durante toda a sua vida. Esses diabinhos estavam presentes até no seu jeito e no seu rosto. Darcy nunca perdeu o brilho de uma criança livre. E foi uma criança livre do pensamento, da política, na qual se atirava com as alegrias de uma aventura deliciosa. Darcy enfrenta dificuldades ingentes, porém sempre com a disposição, a alegria. “Estão fechadas as portas do Brasil. Semearei universidades pelo mundo! Estou exilado político. Serei um exilado político afirmativo!”, dizia Darcy.

Eu, que fui exilado político, sei o que significa o exilado político deprimido e o exilado político alvissareiro. Este último era Darcy. “Vou fazer uma conferência na Sorbonne. Eu a farei em português” - e assim Darcy, na Sorbonne, para espanto dos doutos, falou em português.

Era essa a sua personalidade cativante, macunaímica, como foi dito, porque ao mesmo tempo que séria, participante, não estava absolutamente presa aos formalismos e à rigidez da compostura habitual do trato político, que nos faz, muitas vezes, sermos seres endurecidos, distantes da vida, distantes do amor, distantes de tudo que pulsa, para sermos exclusivos servos das questões econômicas, administrativas, políticas e sociais.

Darcy sempre, portanto, como pessoa, deixa uma marca que não desaparecerá de todos nós, até quando ficávamos irritados com ele - fiquei várias vezes irritado com Darcy, como ele comigo. Mas jamais se perdia aquele traço que ele conseguia com um gesto, com uma frase, imediatamente trazer à tona, um traço de solidariedade, de generosidade, de alegria, de capacidade de convivência com o próximo. Assim que o Darcy pessoa é um ser muito interessante.

Escutei-o contar a fase de sua juventude em que pensou no suicídio. Quem diria, Darcy Ribeiro pensar no suicídio. Pois ele pensou e, por pouco, não se matou, jovem, quando se achava absolutamente perdido, inútil, sem caminhos. Imaginem esse curumim com quem convivemos aqui perdido, sem caminhos, na juventude! E vejam o quanto a questão existencial marca o ser humano, e como é possível mergulhar na depressão para dela sair renovado e fazer da sua existência um hino à vida. E esse hino à vida viria aparecer no Darcy enfermo.

Quando ele se operou, em 1968 ou 1969, se não me engano, eu já havia voltado do exílio e fui visitá-lo na Beneficência Portuguesa. Ele estava assistido por nossa amiga comum, Vera Brant, e estava nos minutos anteriores a um exercício de respiração, pois se lhe havia extirpado um pulmão, e ele precisava fazer exercícios respiratórios muito fortes. Ele me olhou, firme - eu não o via há bastante tempo -, e me disse: “Olha, não vai ser um cancerzinho que vai me abater”. Nunca esqueci e recordo com emoção aquele olhar do Darcy. Ali estava uma disposição de vida de alguém que não tentara, mas pensara no suicídio. Ali estava a afirmação da vontade de continuar, que tinha a ver, em profundidade, com a nossa vontade de continuar na luta pela redemocratização do País. Foi um gesto de força do qual minhas memórias e retinas jamais se olvidarão.

Pouco antes da morte, Darcy deu uma entrevista muito emocionada a Roberto D´Ávila. E ali Roberto D´Ávila, apesar de seu modo gentil, suave e doce de entrevistar, tocou no problema da morte com alguém que estava condenado a morrer. Foi visível a emoção do Darcy e, ao mesmo tempo, podíamos perceber com clareza o tumulto das idéias que dentro dele vicejavam; de um lado, o materialista ateu, em nada acreditando a não ser na matéria; de outro lado, alguém que, em função de toda sua formação, em função de amigos queridos com visões da possibilidade da transcendência diferentes da dele, ao mesmo tempo em que revelava uma aceitação quase que guardada, impossível de ser aceita pela sua razão, da possibilidade da existência de algo após a morte, firmava-se com coragem naquilo que fora a sua convicção e dizia: “Eu não posso dizer que tenho medo da morte, porque não tenho medo de morrer, mas sou obrigado a aceitar que estou sofrendo por uma imensa saudade da vida”. Então não era o medo da morte pelo medo de morrer, mas o medo da morte pela perda da vida; a idéia da vida a predominar.

O Sr. Lúcio Alcântara (PSDB-CE) - V. Exª me permite um aparte?

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Com muito prazer, Senador.

O Sr. Lúcio Alcântara (PSDB-CE) - Eu estava acompanhando atentamente tanto o discurso do nosso nobre colega Senador Abdias Nascimento, quanto o de V. Exª, que, nesse tom coloquial, define com muita precisão essa personalidade polimórfica que era Darcy Ribeiro. Meu ex-correligionário, pois militamos juntos durante determinado tempo no PDT, o fato de ter admitido uma nova opção partidária nunca me afastou de Darcy Ribeiro, pelo contrário, talvez me tenha aproximado mais dele. Tivemos oportunidade de fazer vários trabalhos em conjunto no Senado, dos quais eu citaria dois: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, à qual ofereci muitas emendas, acatadas quase que em sua totalidade por ele, e o projeto de lei sobre transplante de órgãos, para o qual elaborei um substitutivo que teve como base, entre outros dois, um projeto de lei, audacioso e revolucionário, de autoria do Senador Darcy Ribeiro. Muitas vezes estivemos reunidos traçando estratégias para a aprovação do projeto e para a sanção do Presidente da República. Darcy sempre foi um homem ousado, audacioso e muito afirmativo nas suas idéias e nas suas propostas. Nos últimos dias de vida, estive em seu apartamento tratando dessas matérias. Uma vez, Darcy me disse: “Lúcio, tenho outra incumbência para você”. Ele gostaria que eu fosse relator de um projeto apresentado por ele sobre a reforma agrária, e que, colaborando com ele, tentasse viabilizar sua aprovação, mas o projeto terminou não tramitando. Portanto, essa homenagem é justa, merecida e é a evocação de uma personalidade singular, porque Darcy Ribeiro também era um homem de paradoxos: era o mais cosmopolita possível, urbano por excelência e, ao mesmo tempo, um homem preso às nossas raízes, ao nosso sertão, ao índio, às nossas tradições e às nossas origens, ao nacionalismo, e assim por diante. Congratulo-me com o belo discurso que V. Exª faz, o que, aliás, não é nenhuma surpresa, sobretudo porque é feito com estilo muito próprio e muito sentimental, muito cálido quando se refere a essa personalidade fulgurante que foi Darcy Ribeiro. Ele foi realmente um homem surpreendente, que deixou legados diversos como legislador, como Senador, como professor, como homem ligado à educação - a concepção dos Cieps, levada a cabo, no Rio de Janeiro, pelo ex-Governador Leonel Brizola, o ensino de tempo integral, o ensino à distância - pela qual tinha apego, e também em outras áreas que poderíamos mencionar, como o Projeto Caboclo, que foi a sua última criação, não tendo ele, infelizmente, podido assistir a sua conversão em realidade, a sua materialização. Enfim, era um homem que sonhava, tendo transformado em realidade muitos desses sonhos. Congratulo-me com V. Exª, associando-me ao seu discurso.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Muito obrigado, Senador Lúcio Alcântara.

O Darcy político. Certa vez, um intelectual espanhol, alguns anos após a queda de Franco, ao chegar no bar onde, classicamente, se reunia com os amigos, deu uma pancada na mesa e disse: “Que enormes saudades eu tenho do tempo de Franco! Os seus companheiros, espantados: “Como? Você? Que é isso? Ele os acalmou, porque percebeu que estavam achando que ele iria elogiar Franco, dizendo: “Não, não, não; não tenho saudades dos tempos de Franco por ele, mas porque naquele tempo éramos todos tão amigos!”

Essa observação do intelectual espanhol cabe perfeitamente a todos os países que se libertaram das ditaduras. De certa forma, o sofrimento une e a liberdade separa. Curiosa contradição da vida!

E é sobre essa união e essa separação que gostaria de trazer uma palavra ao lembrar Darcy Ribeiro. Para nós, do Rio de Janeiro, houve um momento crucial na política: ou ficávamos com o PMDB, que executara uma política de frente na direção de empurrar a ditadura para trás e abrir caminhos pacíficos - felizmente os caminhos abertos no Brasil -, ou, para nós que vínhamos dos trabalhistas, encaminhar-nos-íamos para a direção do PDT.

Recordo-me de um telefonema que o Darcy me deu, brigando comigo, porque permaneci no PMDB naquele momento, sem ir ao PDT, oriundo das tradições trabalhistas às quais pertenci - e pertenço até hoje, dentro do meu pensamento.

Posteriormente, acontece, na sociedade brasileira, um fato que ainda não está concluso e que é muito rico de lições para todos nós. A socialdemocracia, Partido ao qual pertenço, não tem o monopólio do pensamento socialdemocrático; este está também em setores do PMDB, predominante; está em setores, talvez minoritários, do PFL; está em setores do próprio PT e está no PDT. O pensamento socialdemocrático surge numa tentativa de organização no Brasil, que já leva 10 anos. Curiosamente, após a eleição do Presidente Fernando Henrique Cardoso, os socialdemocratas brasileiros situaram-se - não diria que estão porque estar é algo mais profundo - numa posição distante de partidos trabalhistas, de partidos de socialismo democrático, aliança que seria natural. A aliança natural do partido socialdemocrata está com os partidos - vamos chamar assim - da posição de centro-esquerda.

Isso trouxe e traz, para todos aqueles que vêm das lutas de 64, alguns problemas de extrema dificuldade no plano pessoal: muitas vezes, a separação política promove separações de natureza pessoal. Nunca foi o caso da relação com Darcy Ribeiro, mas foi, sim, o caso nosso de muitas discordâncias ao longo do tempo. O interessante é que as discordâncias não se dão pela essência do problema, nem pela visão de mundo, nem pela meta: elas se dão pelos modos, pelos caminhos políticos.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, o PSDB é um Partido que pensa que, mesmo com idéias de Esquerda, só é possível avançar pelo centro, enquanto partidos que têm a mesma idéia na formação crêem, supõem - sabem, não ouso dizer; creio que supõem - que as idéias de Esquerda têm que caminhar pela esquerda. Essa diferença na pujança da vida político-partidária separa mais do que une nomes, figuras e pessoas de pensamento próximo.

Não fomos capazes ainda, no Brasil, de fazer um grande pensamento comum, um grande debate, que pudesse trazer ao pensamento de Esquerda caminhos de maior amplitude. Há, no território da Esquerda, uma espécie de disputa por primazias, purezas e superioridades de critérios ideológicos, e isso tem afastado muitas pessoas, muitos partidos, muitas iniciativas, de gente que pensa de maneira próxima e que vislumbra um futuro democrático e socialista dentro de uma sociedade de mercado.

            O tempo e o caráter da homenagem não permitem desenvolver essa idéia, que é muito rica e se presta a outras considerações, mas permite, sim, lembrar que Darcy Ribeiro foi um daqueles que permaneceram fiéis aos elementos da sua formação. Ele é um dos que trazem a marca daqueles que se formaram na filosofia do Estado-Nação, que vem do século XIX, marca o século XX e, só no final do século XX, com o fim da Guerra Fria, com megatransformações na sociedade, via comunicação, via inter-relação econômica, via comércio internacional, cria situações novas, absolutamente novas para o pensamento. E é justamente aí que se dão algumas separações de pessoas que deveriam e poderiam estar do mesmo lado na política. Diferentes concepções sobre a mesma visão de mundo. Interessante!

Nesse ponto, Darcy, uma vez mais, foi um baluarte, um herói, porque se manteve até o final ligado às idéias e aos modos de atuar concebidos pela formação de um homem - vamos chamar - da geração de 40, daquela geração nascida, forjada ao fim da ditadura Vargas, ao fim da Segunda Guerra Mundial e num momento em que o sonho do socialismo de Estado pareceu a todos, a todos os jovens generosos e idealistas, o único caminho pelo qual o socialismo poderia trilhar.

Essa fidelidade à própria crença levou Darcy a todas as suas posições políticas. Acontece que a posição política para Darcy não era apenas um fato lógico, racional: a posição política para Darcy era também um fato estético, um fato existencial. A sua existência se explicava, o seu sentido de mundo, a sua estética, a sua literatura se explicava na medida em que se tornava expressão da sua idéia política.

Leiam os livros de Darcy e vão verificar que, na pulsação do seu estilo, tão próximo ao seu modo de ser: ágil, súbito, criativo, inusitado, inesperado, brilhante, talentoso, a visão estética está presidida constantemente por uma visão política.

Podemos discutir horas se a arte deve ou não ser engajada. Eu, pessoalmente, creio que não, embora também não creia que nenhum autor possa deixar de ter formas poderosas de engajamento, porque até quem não as tem tem, porque quem se diz apolítico político é, já que pelo menos está de acordo com o status quo. Não creio que as pessoas sejam apolíticas. Não há pessoas apolíticas: há pessoas apartidárias, apolíticas jamais, porque até quem pretende ficar alheio à política está ficando de acordo com alguma política, pelo menos o status quo.

O Darcy político, portanto, está firmemente presente em tudo o que marcou a coerência de seus passos. O mais, Srªs. e Srs. Senadores, é o Brasil, o mais é a paixão enlouquecida, deliciosa por este País, que ele amou como todos nós amamos, porém de um modo mais brilhante, mais esfuziante, mais cantante, mais talentoso. Este País das contradições, este País das injustiças graves, este País capaz de construir uma arte e uma literatura notáveis para exemplo do mundo e incapaz de construir elementos básicos, indispensáveis a que a vida funcione com igualdade de direito para todos os seus filhos.

O mais em Darcy foi esse Brasil tropical, irreverente, carregado de seiva, de verve, de busca, carregado de amor. E amor não lhe faltou jamais, nem o amor político de seus eleitores nem o amor pessoal de suas tantas mulheres, que ele fazia questão de citar sempre com enlevo, sempre com admiração.

Por tudo isso, fica em nossa memória este exemplo de vida, este exemplo de liberdade, este exemplo de amor a esta Pátria. Amor esse que uma Casa como o Senado da República, que diariamente o exerce a despeito de todas as dificuldades, não poderia ficar alheio quando relembra - porque não direi comemora -, quando relembra um ano da desaparição de um dos seus mais elevados membros, de um de seus mais importantes Senadores em toda a história das cinqüenta Legislaturas existentes até hoje.

Muito obrigado, Sr. Presidente, pela consideração.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/03/1998 - Página 3325