Discurso no Senado Federal

HOMENAGEM AOS CINQUENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. FEMINISMO.:
  • HOMENAGEM AOS CINQUENTA ANOS DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS.
Publicação
Publicação no DSF de 11/12/1998 - Página 18314
Assunto
Outros > HOMENAGEM. FEMINISMO.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS.
  • COMENTARIO, AUMENTO, VIOLENCIA, VITIMA, MULHER, BRASIL, RESULTADO, DESRESPEITO, DIREITOS HUMANOS.
  • ANALISE, DOCUMENTO, CONFERENCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL (CNBB), REFERENCIA, ETICA, NECESSIDADE, COMBATE, VIOLENCIA, ABUSO, PODER, CORRUPÇÃO, SOCIEDADE, OBJETIVO, GARANTIA, RESPEITO, DIREITOS HUMANOS, BRASIL.

           O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB-CE. Pronuncia o seguinte discurso) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no dia 10 de dezembro de 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas, em deliberação histórica, aprovou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, reconhecendo e proclamando a dignidade inerente a todas as pessoas, a igualdade e inalienabilidade de seus direitos, pilares da liberdade, justiça e paz no mundo.

           Hoje, ocupo a tribuna do Senado Federal para tratar de um assunto referente a um dos mais importantes capítulos desses direitos: o Dia Mundial contra a Violência à Mulher, comemorado no dia 25 de novembro.

           Essas duas datas, além da proximidade no calendário, têm também a mesma motivação, a mesma matriz original e se baseiam nos princípios filosóficos de justiça, paz e liberdade que deveriam reger todos o relacionamento de todos homens e mulheres do mundo: a igualdade e a dignidade da pessoa humana.

           Decorridos 50 anos da proclamação da Declaração dos Direitos Universais do Homem, podemos nos perguntar por que ainda persiste tanta violência contra o ser humano e, muito pior, por que tanta violência contra a mulher?

           Às vésperas do Terceiro Milênio, esse mundo dotado de tecnologia sofisticada, com grandes avanços em muitas áreas científicas, continua muito atrasado em termos éticos, sociais e morais, pois continua a usar e a abusar da violência como forma de resolver conflitos pessoais e sociais.

           Nada mais humilhante, vergonhoso e deplorável para a toda a humanidade do que a persistência desse grave mal social e moral: a violência contra a mulher.

           A mesma civilização que é capaz de colocar um homem na Lua e um robô no planeta Marte continua a praticar a violência e a cometer vergonhosos crimes contra a mulher, demonstrando uma incapacidade de manter uma convivência humana fraterna e harmoniosa.

           Certamente, a violência, e particularmente a violência contra a mulher, tem estado sempre presente na história humana e com o homem de todos os tempos.

           No entanto, é lícito afirmar que a atual crise moral e ética de nossa sociedade é responsável direta por novos e graves tipos de violência contra a mulher, brutalidades das quais não se tem notícia nem mesmo num passado remoto.

           Na entrevista concedida ao jornalista Vittorio Messori, que se transformou no livro Cruzando o Limiar da Esperança, o Papa João Paulo II assim se pronunciou sobre os problemas das mulheres no mundo de hoje:

           Se o nosso século, nas sociedades liberais, é caracterizado por um crescente feminismo, é lícito supor que esta orientação seja uma reação à falta de respeito devido a toda mulher. Tudo aquilo que escrevi sobre o assunto, na MULIERES DIGNITATEM, carregava-o comigo desde quando era muito jovem; em certo sentido, desde a infância. Talvez, tenha influído sobre mim também o ambiente da época em que fui educado, caracterizado por grande respeito e consideração pela mulher, especialmente pela mulher-mãe. Acredito que um certo feminismo contemporâneo encontre suas raízes exatamente aqui, na ausência de verdadeiro respeito pela mulher. A verdade revelada sobre a mulher é uma coisa bem diferente. ... Na nossa civilização a mulher tornou-se, antes de tudo, objeto de prazer.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o século XX que poderia ter sido um século de luz, liberdade, fraternidade e desenvolvimento, tem sido muito mais um século de trevas, com grandes guerras, genocídios, fratricídios, holocaustos, crimes hediondos e tantas outras formas de violência.

           Além da miséria, da fome, das epidemias, da violência e das guerras, o século 20 tem sido um período de grande desrespeito aos direitos humanos, em todos os continentes, principalmente em relação aos povos e pessoas mais fracas e indefesas.

           Em plena década de 90, às vésperas do Terceiro Milênio, o mundo assistiu, estarrecido, não num país da África ou na América Latina, mas em plena Europa dita civilizada, a uma das mais maiores brutalidades cometidas contra as mulheres: o estupro como arma de guerra, o que nos traz a infeliz lembrança dos abomináveis métodos adotados pelo ditador nazista Adolf Hitler.

           O Concílio Vaticano II, numa página profética, dramática e profundamente atual, principalmente no que se relaciona com a atual situação das mulheres, afirma:

           Tudo quanto se opõe à vida, como seja toda espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador”.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nesse panorama inquietante, constatamos que a violência contra a mulher, ao invés de diminuir tem aumentado nos últimos tempos: são muitos os crimes e atentados contra a dignidade das mulheres, desde os mais sutis e camuflados até aqueles mais grosseiros e impiedosos.

           Alguns desses crimes contra a vida e a dignidade das mulheres são cometidos, ironicamente, em nome da liberdade individual, com a ajuda de alguns meios de comunicação e até mesmo com autorização do Estado, sob a fachada de programas de saúde da mulher, contrariando a lei, a Constituição e os Direitos Universais do Homem.

           Vivemos num mundo em que muitos defendem pássaros, árvores e animais e o meio ambiente, mas não se preocupam com a dignidade da vida humana, com a humilhação que sofrem milhares e milhares de mulheres a cada dia, em todas as partes do mundo, vítimas de todas as formas de violência.

           Essa violência é especialmente grave e preocupante em relação às mulheres operárias, pobres, marginalizadas, analfabetas, desprezadas e oprimidas em seus direitos humanos, vítimas de grandes injustiças sociais, em de uma economia mundializada, em que a ética é a primeira vítima da tirania do dinheiro.

           Todos os homens e mulheres de todo o mundo são irmãos, todos têm a mesma dignidade, o mesmo direito à inviolabilidade da vida.

           Por isso mesmo a violência cometida contra qualquer homem ou contra qualquer mulher representa uma perigosa ruptura para toda a família humana, que deveria se reger por uma fraternidade espiritual que congregasse toda a humanidade.

           Seja na ex-Iugoslávia, na Somália, na América Latina e até mesmo nos países considerados desenvolvidos, a violência contra a mulher geralmente vem acompanhado de outras graves conseqüências sociais e morais.

           A violência contra a mulher tem várias faces: a miséria, a subnutrição, o desemprego, a fome, a distribuição injusta da riqueza e da renda, principalmente nos dias de hoje, em que muitas mulheres são chefes de famílias, vítimas da paternidade irresponsável praticada por muitos homens.

           A difusão criminosa das drogas, da pornografia, o tráfico internacional de mulheres, o abuso sexual e a exploração das mulheres como meros objetos de prazer representam outras formas condenáveis de violência contra a mulher, o que nos obriga a todos a uma necessidade imediata de resgate dos valores éticos de nossa sociedade.

           A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, no magistral documento Ética: Pessoa e Sociedade, realiza uma análise profunda da crise moral por que passamos, do qual destacamos:

           Impressionantes são os níveis de violência, discriminação social, abuso do poder, corrupção, permissivismo, cinismo e impunidade. Chega-se à deformação das consciências, que aceitam como ‘normal’ ou ‘inevitável’ o que não tem nenhuma justificativa ética.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, todos concordamos com a necessidade de melhoria de nossas instituições sociais, econômicas e humanas, tendo como princípio diretor uma nova ética, uma evolução moral e a incorporação de valores mais elevados em nossa sociedade.

           Numa sociedade em que a economia desempenha um papel hegemônico em relação às demais esferas do social, subordinando a seus interesses até mesmo a ética, é maior a violência econômica contra a mulher, que não tem nem mesmo um mínimo de bem-estar garantido, é discriminada em termos salariais, exercendo geralmente um papel subalterno.

           A exclusão e a miséria são os caminhos forçados para grande número de mulheres: é essa uma nova face da violência desse contraditório mundo moderno, globalizado, adepto do eficientismo, da lógica da economia e da técnica, porém, desprovido de valores éticos e morais.

           A violência contra a mulher, assim como todo e qualquer tipo de violência, revela, antes de tudo, a grave crise moral e ética por que passa o mundo e, particularmente, o Brasil.

           A banalização da violência, a violência contra as mulheres chegou ao ponto de muitos considerarem quase “normal” o absurdo de uma situação de violência sistemática.

           Isso se agrava em decorrência de nossa sociedade individualista, geralmente desprovida de valores éticos e do senso de fraternidade e solidariedade, em que até mesmo as liberdades democráticas algumas vezes são usadas de forma abusiva e anti-social.

           O Brasil, campeão mundial das desigualdades sociais e econômicas, ainda não se libertou de sua herança escravagista nem de uma elite violenta e opressora das culturas negra e indígena.

           A mulher operária, pobre, negra ou iletrada é geralmente discriminada da forma mais cruel e injusta: aqui prosperou uma hierarquia em que pobres e ricos, homens e mulheres, embora tenham iguais direitos do ponto de vista jurídico-formal, recebem tratamento completamente diferente e discriminatório em nossa realidade social.

           Na área das relações de trabalho ainda existe muita discriminação e violência contra as mulheres, que são, muitas vezes, obrigadas a cumprir jornadas de trabalho longas, cansativas, com poucos direitos trabalhistas e com salários inferiores aos pagos aos trabalhadores do sexo masculino pelo mesmo tipo de tarefa.

           Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, seria infindável a longa lista de discriminações, violências e abusos cometidos contra as mulheres, não apenas em nosso Brasil, mas em todo o mundo, neste momento em que homenageamos as mulheres lembrando o Dia Mundial contra a Violência à Mulher.

           Não há dúvida de que a mulher é a parte mais vulnerável em todas essas situações críticas representadas por guerras, fome, epidemias, catástrofes, miséria, distribuição injusta das riquezas, corrupção desenfreada, desorganização governamental e instituições deformadas pela injustiça.

           Apesar de o mal progredir em grande escala na sociedade em que vivemos, não devemos nem podemos perder a esperança nem tampouco negar nossa responsabilidade para com nossos semelhantes, principalmente para com as mulheres, crianças e idosos.

           A violência contra a mulher, violência essa que acaba por atingir também crianças, idosos e a família como um todo, somente poderá terminar efetivamente quando novos comportamentos, eticamente mais elevados e aceitáveis, ocorrerem em nossa sociedade, como fruto de um trabalho de renovação da consciência pessoal e pública.

           Neste final de século violento e com muitas decepções, não devemos nem podemos perder a esperança, principalmente porque em meio a tantas desilusões temos o exemplo de grandes mulheres, como Madre Teresa de Calcutá, que dedicou toda sua vida e partilhou tudo quanto tinha com todos os excluídos e marginalizados, fiel ao lema: “servir com amor aos mais pobres entre os pobres”.

           Todos nós que temos deveres e obrigações de natureza pública devemos lutar com todas as nossas forças não apenas elaborando leis justas e humanas contra todo o tipo de violência contra a mulher, mas principalmente contribuindo para a elevação dos padrões éticos na política, como forma de possibilitar uma convivência mais humana e fraterna entre homens e mulheres.

           O Programa de Direitos Humanos desenvolvido pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso já caminha nessa direção, apesar de termos consciência de que ainda há muito por se realizar efetivamente, ao passarmos dos objetivos proclamados para a realidade social.

           Estou convicto de que o Senado Federal dará todo o seu apoio para a melhoria dos direitos humanos no Brasil e principalmente no que se refere aos direitos da mulher, combatendo e extirpando todos os tipos de violência contra a mulher.

           Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/12/1998 - Página 18314