Discurso no Senado Federal

TRANSCURSO DOS 10 ANOS DE FALECIMENTO DA CANTORA NARA LEÃO.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • TRANSCURSO DOS 10 ANOS DE FALECIMENTO DA CANTORA NARA LEÃO.
Aparteantes
Gilberto Mestrinho.
Publicação
Publicação no DSF de 11/06/1999 - Página 15019
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, NARA LEÃO, CANTOR, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), ELOGIO, ATUAÇÃO, MUSICA POPULAR, BRASIL.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, no dia 7 de junho, a recente segunda-feira passada, fez 10 anos da morte de Nara Leão. Com a preocupação de abordar sempre nesta tribuna assuntos de natureza cultural, que considero tão decisivos e importantes para a Nação quanto quaisquer outros - talvez até mais -, desejo abordar o que foi um período significativo da cultura popular brasileira. Esse período foi motivado pela canção de protesto, pela importância política da canção de protesto e por tudo o que dela resultou de formação de uma consciência libertária, de impulsionamento das lutas pela democracia, sendo, portanto, uma contribuição decisiva no processo de retomada do desenvolvimento democrático do País.  

Nara Leão é um marco dessa luta, principalmente porque as características que a cercavam não induziam a que ela poderia vir a ser um pontal da luta pela resistência democrática no Brasil. Digo as características, porque ela era uma moça da zona sul carioca, de classe média, filha de um advogado, nascida em Vitória, em 1942, cuja família se transferiu para o Rio um ano depois. Ela se forma na Copacabana dos anos 50, mocinha, adolescente - digamos - e se torna madura e artista na década de 60, justamente estreando em 63. Aparece com vigor, a partir de 1964, quando o show "Opinião" inicia o marco da resistência democrática no Brasil poucos meses após o Golpe Militar.  

Interessante aquela jovem de voz curta, sem especial volume de voz, isto é, sem potência vocal, com um tipo de canto intimista, quase segredado, que se foi aperfeiçoando, do ponto de vista da afinação, inclusive, ao longo do tempo; interessante aquela moça, de zona sul, possivelmente ligada a tudo o que significava a zona sul carioca nos anos 50, 60 e 70 - evasão, alienação, contato com a natureza, alegria e vida extrovertida -, aquela moça, nessas circunstâncias, vir a ser um dos primeiros pontais da resistência democrática no País. Isso se dá mais pela intuição, num primeiro momento, em Nara Leão e, depois, por uma consciência crescente da sua importância na cena artístico-política daqueles anos.  

O show "Opinião" é o primeiro brado de resistência organizada. Ali, já, Nara Leão, juntamente com Augusto Boal, o diretor, e todo o grupo que compôs o elenco do show, vai buscar nas raízes populares de nossa música alguns elementos de genuíno protesto. Exemplos: a obra "Carcará", de João do Vale; os sambas de Zé Keti - carioca. Um nordestino, um carioca, ambos de origem muito pobre, ambos significativos da capacidade do povo brasileiro de cantar as suas agruras com absoluta amplitude.  

"Carcará", "pega, mata e come"; "Opinião", "podem me prender, podem me bater que eu não mudo de opinião" - Zé Keti; "Acender as velas"- Zé Keti: "Acender as velas já é profissão. Quando não tem samba, tem desilusão".  

Aí começava, pela música popular - setor até então não percebido ou não identificado como um setor potencialmente político -, o protesto social, com imediata aceitação da população, traduzido, portanto, em sucesso. O sistema econômico tem essa contradição: em geral, ele apoia os golpes de força que vêm em seu benefício, mas, quando ele é beneficiado, do ponto de vista mercadológico, pelo protesto contra o próprio sistema, de alguma forma ele ampara o protesto, porque se lhe rende benefícios. E, dessa contradição, surge no Brasil um importante movimento que gradativamente se dissemina ao longo dos anos da ditadura, ao longo dos anos terríveis posteriores ao Ato Institucional nº 5.  

Faço, aqui, algumas lembranças: "Cálice" - de Chico Buarque e Gilberto Gil (1973), pedindo ao Senhor que ajude a enfrentar e a beber o cálice da amargura; "Roda Viva" - de Chico Buarque (1967); peça do mesmo nome, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, estreada no Teatro Princesa Isabel, no Rio de Janeiro, depois, em São Paulo e em Porto Alegre, foi proibida pela censura, invadida e violentamente agredida pelo sistema. Já citei o "Carcará", de João do Vale e de José Cândido, se não me engano, de 1964.  

É preciso não esquecer que Gilberto Gil e Caetano Veloso foram praticamente expulsos do Brasil, ou aconselhados, depois de uma prisão absurda, a se afastarem do País. Gilberto Gil deixa o País, enviando "aquele abraço", em que faz uma visão extremamente bem humorada, generosa, e deixa para o Brasil, com as suas questões tropicalistas: "O Chacrinha balançando a pança", "O Rio de Janeiro cada vez mais lindo"; tudo, enfim, que é esse País multifário e complexo. Deixa para o Brasil "Aquele Abraço", indo para um exílio doloroso, que lhe custariam dores, penares. Posso dizer o quanto o exílio é doloroso, porque também o enfrentei.  

Lembro Sérgio Ricardo, que sempre teve uma postura diretamente engajada na luta social. Lembro Geraldo Vandré: "Para não dizer que não falei de flores". Até, pessoalmente, na época, não concordei com aquele momento político, levado da forma como foi, que acabou desaguando no AI-5, que nos levou a muitos mais anos de ditadura. Até porque também não pertenço aos que crêem "que quem sabe faz a hora". Creio que essa é uma generosidade belíssima de pensamento, mas um equívoco político. Creio que quem sabe a hora faz e não que quem sabe faz a hora. Mas, isso não retira a importância política daquele grito, daquele gesto naquele instante, num festival de música.  

Ali se deu outra contradição interessante: a própria televisão, veículo do sistema, propagadora das virtudes do sistema então implantado, na sua necessidade de audiência, era obrigada a receber e a abarcar e até, de certa forma, a proteger a manifestação desses artistas. E dali surgem movimentos que vão à televisão, onde aparece Gonzaguinha, onde aparece Ivan Lins, Aldir Blanc, que é um dos letristas mais importantes da música popular brasileira. E, a partir de um certo momento, alastra-se, no próprio território de cantores e compositores, a certeza de que as vozes deles, unidas naquele instante, eram significativas do ponto de vista do público consumidor e do ponto de vista da luta política.  

Posso citar muitos, posso lembrar Julinho da Adelaide, que nada mais era do que Chico Buarque de Hollanda, oculto ou revelado num pseudônimo. Também fui obrigado a fazer um pseudônimo, que hoje me acompanha, à época da ditadura. Julinho da Adelaide, com o qual Chico Buarque burlou a censura, que nunca mais o perdoou por haver feito isso, e o sistema igualmente. Rui Guerra, vindo do cinema, mas letrista. Já citei Gonzaguinha, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Zé Keti, tenho que lembrar de Gianfrancesco Guarnieri, que além de teatrólogo fundamental desse período e do anterior, dramaturgo, foi letrista de algumas obras importantes, juntamente com Rui Guerra, com Oduvaldo Vianna Filho. Posso lembrar tudo que veio no período da abertura, o "Vai Passar", de Chico Buarque de Hollanda, no qual ele apresenta, em 1975, num festival de televisão, uma alegoria de um samba de enredo altamente rico.  

É preciso não esquecer ainda do Chico, que jogou um papel importantíssimo em tudo isso, o "Apesar de Você", feito com uma letra de duplo sentido, que se aplicava à situação política e, nada obstante, aplicava-se perfeitamente a um caso amoroso, proibido pelo pai da moça. Como ele dizia, "você não gosta de mim, mas sua filha gosta", aludindo à filha do Presidente Geisel, que era admiradora dele. Aliás, uma pessoa de grande caráter essa Amália Geisel, e de opiniões próprias, pessoais, reservadas, ao tempo do governo do pai, mas claras, do ponto de vista das suas opções interiores.  

Seguramente estou a esquecer nomes, nem é meu propósito fazer aqui um balanço completo, no tempo que me cabe, da canção de protesto no Brasil. Mas quero dizer que, ao lembrar os dez anos da morte de Nara Leão, prematuramente falecida aos 47 anos, é necessário um balanço da importância artística e política do intérprete popular.  

É verdade que, a esse tempo, a canção de protesto político, de luta pela abertura, veio dos segmentos da chamada elite musical, dos segmentos de classe média. Mas, se pensarmos no povo brasileiro, este de há muito tem canções de protesto e tem canções de protesto que, em geral, não são lembradas. O povo brasileiro tem uma incomensurável capacidade de cantar a sua realidade. Se há uma peculiaridade neste País é a riqueza do seu canto popular, seja por sua latitude e longitude, seja pela mescla das três raças tristes que o constituíram, no dizer de Olavo Bilac, a propósito de nossa língua, "Flor Amorosa de Três Raças Tristes", seja pela tragédia social da qual este País não se liberta, por mais esforços se façam, seja pela resistência das classes dominantes brasileiras à ascensão de segmentos diversificados da nossa população. O povo brasileiro tem uma capacidade formidável de cantar a sua realidade e de protestar. Talvez até ele vaze no protesto musical e artístico, porque é um povo de alta sensibilidade, o que poderia ou deveria, não sei, estar a vazar na luta política. Mas, seguramente, na música popular vaza essa carga de sofrimento de modo muito mais eloqüente até do que na participação política.  

O povo brasileiro tem essa capacidade. Sempre cantou o protesto. Não precisa ir longe. Toda a música do Nordeste, grande parte da música do norte brasileiro, tão desconhecida dos grandes centros - terra, aliás, do nosso querido Presidente desta sessão neste instante -, canta o protesto. Canta o sambista do Rio de Janeiro, cantavam os compositores do carnaval "Lata d’água na cabeça, lá vai Maria, lá vai Maria", vendo a questão das favelas muito antes delas se transformarem em problema social, e este, por acaso, um compositor do Rio de Janeiro oriundo das Forças Armadas, Luiz Antônio, como cantou sempre o povo das escolas de samba, como cantou sempre o povo do sertão brasileiro tão esquecido e hoje tão transformado no que se chama sertanejo, o que nada mais é do que uma mélange, uma mistura de gêneros que aí se movimentam e que são reelaborados pela mídia com grande importância, com grande significado, mas aí já sem o vigor do verdadeiro protesto de quem vive a dura realidade deste País, anonimamente, nos seus rincões.

 

O povo brasileiro sempre cantou, nos cantadores, nos repentistas, nos músicos populares, nos poetas do povo. Poucos povos no mundo cantaram de modo tão amplo a sua realidade, de modo tão variado e com tanto talento como o povo brasileiro. Razão pela qual este País tem, no seu repertório - e nem sabe disso -, mais de cem ritmos diferentes em sua música popular, ritmos alguns que vêm de origem indígena, ritmos, felizmente, transformados pela contribuição da raça negra, prodigiosa, que tanto contribuiu aqui como contribuiu no Caribe, como contribuiu nos Estados Unidos, para a eloqüência da música popular desses países. O povo brasileiro sempre soube cantar tudo isso.  

Nara Leão é importante também porque ela foi buscar, no seu repertório, autores que pela década de 60 começavam a ser esmagados por um aluvião de gravações vindas de fora do Brasil e absolutamente afastados da presença no rádio e na televisão. Ela ajuda a redescobrir Cartola. Ela e seu então marido, o cineasta Carlos Diegues, ajudam Cartola diretamente quando ele faz, no Rio de Janeiro, um restaurante com o qual buscava conseguir mínimas condições até de sobrevivência, um restaurante que toda a intelectualidade acabou por apoiar de alguma forma, na Rua da Carioca.  

Nara Leão vai buscar, nesses intérpretes, o que estava esquecido da chamada mídia da época, e, com sua pequena voz, com sua fragilidade de pessoa, mas com a sua inteireza, dignidade e capacidade de ver o Brasil, soube trazer ao conhecimento de grandes platéias.  

Aqui a identificação plena do papel do artista com o papel do político. O artista, inclusive, no mundo contemporâneo, tem muito mais prestígio que o político e consegue essa transformação, essa multiplicação, em doses muito mais poderosas. A classe política precisa reconquistar condições para chegar de modo poderoso à emoção do povo. Os artistas já chegaram. Observe-se que, hoje em dia, os comícios políticos praticamente não existem sem artistas, para trazerem público, tema que deveria ser profundamente meditado pela classe política.  

Portanto, ao lembrar aqui os dez anos da morte de Nara, trago à tona, de um modo um pouco desordenado, como todo discurso de improviso, mas acredito que claro, do ponto de vista da minha intenção e do que estou a querer dizer, todo um universo de beleza, coragem, coragem cívica, vigor, autenticidade de algo que é fundamental: crença no Brasil – razão, inclusive, que alimenta o protesto – e amor pelo povo deste País.  

São marcos de uma carreira, são marcos de alguém que abriu esse caminho. Pelo caminho aberto por Nara Leão passaram tantas outras importantes estrelas da Música Popular Brasileira, como Maria Bethânia, Elis Regina e todas as cantoras de protesto. Foi ela, aquela menina tímida, capricorniana - digo isso com certo orgulho por também o ser -, teimosa, portanto. Aliás a grande maldade que se faz com os capricornianos é chamá-los de teimosos. Os capricornianos são pertinazes, não são teimosos, além do que essa questão de teimosia é muito relativa, porque não existe o teimoso sozinho. Se ele é teimoso, é porque há alguém a teimar com ele. Portanto a teimosia do capricorniano é algo que, no caso, prefiro transformar em pertinácia; sim, pertinácia.  

Nara sempre se dividiu entre a carreira artística - e política, evidentemente - e, ao mesmo tempo, a sua vida privada, que ela preservava muito e era muito invadida por esse fato. Ela, várias vezes, deixou a carreira, inclusive formou-se em psicologia e chegou a montar um consultório de psicologia, mas sempre voltava à música popular, porque ela se sentia identificada com a construção de uma obra.  

Dez anos depois de sua morte, ainda hoje em dia e ao longo do tempo também acontecerá: ouvem-se canções de Nara Leão nas emissoras de rádio. Por quê? Não está na moda – a moda, inclusive, é outra –, mas ali há uma obra, e o que obra, o que é bom, não dura pouco, como se costuma dizer: o que é bom dura muito, transmite-se gradativamente, dissemina-se aos poucos, vai sendo compreendido ao longo do tempo. É assim que se constrói uma obra. E ela trabalhou muito mais para a construção de uma obra do que para a obtenção de sucessos passageiros, até porque de sucessos ela não precisava, uma vez que estranhamente já começou pelo sucesso.  

O Sr. Gilberto Mestrinho (PMDB-AM) - V. Exª permite-me um aparte?  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Ouço, com muito prazer, o Senador Gilberto Mestrinho.  

O Sr. Gilberto Mestrinho (PMDB-AM) - Nobre Senador Artur da Távola, as palavras de V. Exª acerca de Nara Leão se equivalem à beleza do seu canto...  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Muito obrigado.  

O Sr. Gilberto Mestrinho (PMDB-AM) -...e à importância do cantor popular. Especialmente para nós que fomos cassados, as canções de Nara tinham um significado extraordinário. Violeta Parra já dizia que "se si calla el cantor, calla la vida". Daí é importante cantar. E os grandes intérpretes da música popular tiveram papel importantíssimo no processo de luta do povo brasileiro pela anistia. Foi por essa luta que chegamos aqui. Por isso a minha homenagem, a solidariedade, homenagem a Nara, e solidariedade às palavras de V. Exª, que tão bem homenageia uma das mais expressivas intérpretes da luta popular mediante o canto.  

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ) - Muito obrigado, Senador. V. Exª, ao me honrar com o aparte, traz à memória elementos extremamente emotivos para mim.  

Fui exilado político no Chile - não gosto de fazer discurso na primeira pessoa, mas vou fazer este parêntese - em 1964; fui à Bolívia e depois ao Chile. Fui amigo de Violeta Parra, que conheci de perto. Agora me recordo também do Carlos Lyra: "mais que nunca é preciso cantar". E aplico, em todos os tempos e a todo o momento, o que aqui já foi expresso.  

A certeza e o aparte do Senador Gilberto Mestrinho, como síntese, com absoluta perfeição, encapsulou ao mesmo tempo em que revelou – encapsulou pela síntese e revelou pelo conteúdo. O canto popular é um grande condutor da luta política. A canção - isso vem de Goethe - é um milagre. A canção condensa em dois minutos vivências que são capazes de invadir séculos de história. E esse milagre da canção, portador da capacidade de conduzir a um grau de consciência pelo invólucro da música, é um milagre que está aí à disposição de todos aqueles que saibam compreender a sua importância e que tenham talento e, tanto quanto talento, coragem para elevá-la ao nível ao qual foi elevada pela obra, pela coragem, pela firmeza, pela decisão, pela honradez de figuras como Nara Leão.  

Muito obrigado, Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, pela atenção.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/06/1999 - Página 15019