Discurso no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE O FIM DA GUERRA NA IUGOSLAVIA.

Autor
Artur da Tavola (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/RJ)
Nome completo: Paulo Alberto Artur da Tavola Moretzsonh Monteiro de Barros
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL. SEGURANÇA PUBLICA.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE O FIM DA GUERRA NA IUGOSLAVIA.
Publicação
Publicação no DSF de 12/06/1999 - Página 15169
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL. SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • COMENTARIO, COMEMORAÇÃO, CONCLUSÃO, GUERRA, PAIS ESTRANGEIRO, IUGOSLAVIA.
  • ANALISE, FUNÇÃO, POLITICA, IMPEDIMENTO, OCORRENCIA, GUERRA, ESPECIFICAÇÃO, DIPLOMACIA.
  • COMENTARIO, OCORRENCIA, CONFLITO, AMBITO INTERNACIONAL, CRITICA, AUSENCIA, INICIATIVA, GOVERNO ESTRANGEIRO, PARALISAÇÃO, GUERRA.
  • COMENTARIO, VIOLENCIA, BRASIL, ESPECIFICAÇÃO, QUANTIDADE, HOMICIDIO, NECESSIDADE, ADOÇÃO, POLITICA, DESARMAMENTO, AMBITO INTERNACIONAL.

O SR. ARTUR DA TÁVOLA (PSDB-RJ. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, esta tribuna, que é alvo de tantos lamentos, pode hoje receber uma palavra de alegria, talvez uma alegria triste, porque ela nasce da dor. Refiro-me ao símbolo das imagens ontem vistas nas telas de televisão de todo o mundo da população iugoslava a comemorar o fim da guerra. Ao lado disso, os cães ferozes da política a blasonar suas vitórias. De um lado, os dentes do tigre Bill Clinton, ainda com mostras de agressividade no que toca à reconstrução da Iugoslávia; de outro lado, o ditador Slobodan Milosevic, proclamando vitória, resistência, operando naquela linha do populismo tão característico, o populismo messiânico, com base em conceitos de patriotismo, buscando catalisar o impulso nacionalista e patriótico existente nos povos. No caso, o mesmo impulso nacionalista responsável por uma guerra étnica de incomensurável perversidade.  

Portanto, comemorações de lado a lado. Mas comemoração mesmo era a daquele povo livre, a cantar, até por momentos nos lembrando as alegrias que o esporte traz a clubes - o esporte é a guerra da paz. Era comovente, porque justamente ali que está o cerne da questão da paz. É a população que está sempre a pagar pelos delírios dos donos do poder. É o povo, sempre. Os homens são onipotentes, os poderosos são arrogantes, a realidade é violenta, quem paga é o povo. Os homens blasonam grandezas, os homens erram, quem paga é o povo. Os homens deliram a ilusória manifestação de deslumbramento com as suas ideologias ou os seus encantamentos filosóficos ou as suas posturas religiosas, mas quem paga é o povo.  

Não pude deixar de me comover ao ver aquelas imagens. Ali estavam pessoas que nada têm com a OTAN, com Milosevic, com guerra de limpeza étnica, com a brutalidade de bombardeios que destruíram mais de duas mil vidas, destruíram um país inteiro, para conseguir algo que talvez pudesse ter sido obtido por intermédio dos acordos internacionais.  

Muito pouca gente compreende a política. Política, que, no fundo, se chegarmos à sua definição básica, primeira e última, nada mais é do que a arte de impedir a guerra. A política existe para impedir a guerra, tanto a guerra interna nos países, tanto a violência interna nos países, como a guerra entre os povos. A diplomacia é a política internacional. A política é o instrumento que a Humanidade conseguiu, em séculos de dolorosa evolução, para impedir a guerra. É a busca do entendimento até o último instante. É o exercício pleno da liberdade para que as idéias possam ser defendidas integralmente. É a substituição no poder como regra básica do comando dos homens. É o primado de valores, de valores institucionais capazes de criar as condições para que o jogo do delírio humano, para que o jogo do poder, para que o jogo do idealismo, para que os antagonismos possam ser resolvidos no espaço de paz. A política só existe para isso.  

Por isto ela é uma das artes mais complexas de nosso tempo, porque ela é destinada a impedir que os diferentes se estraçalhem. Por isto ela é mal compreendida até, porque ela exercita ao máximo o exercício da conciliação, e o faz através da exacerbação do embate. Uma contradição aparente. Não chamaria de contradição; nessa dinâmica, está a grandeza, a beleza e a incompreensão da política. Porque a política, juntamente com o Direito, é a atividade que impede que a paixão em estado puro venha trazer choques, em que o instinto guerreiro e destrutivo do ser humano predomine sobre essa outra sua capacidade, a do discernimento, a da inteligência, a da harmonia.  

Sr. Presidente, Srs. Senadores, vejo com freqüência, nessa mania tão superficial de se ver as coisas sobre quem ganhou e quem perdeu, inúmeras entrevistas na televisão e no rádio a propósito do fim da guerra da OTAN, quando alguns especialistas em política internacional, muito interessantes aliás, têm falado: Quem ganhou? Dou um sorriso de tristeza diante dessa pergunta. Ninguém ganhou. Quem ganha numa guerra estúpida? Os seus causadores? Os seus participantes? Numa guerra, em qualquer guerra, principalmente nas guerras estúpidas, todos perdem. Todos perderam nessa guerra. Perde o mundo porque vê acima das Nações Unidas instalar-se um procedimento de força que existia na Guerra Fria ou da OTAN, em função do receio ocidental do expansionismo russo, transfigurar-se hoje numa máquina de guerra que hegemoniza o potencial militar no mundo e, simbolicamente, dita regras para a humanidade.  

Certa vez, mesmo sendo uma pessoa moderada, fui aqui radical e talvez até indelicado, mas o faria de novo, recusando-me a comparecer a um ato quando aqui esteve o Presidente da França, Jacques Chirac, porque ele havia recentemente feito explosões nucleares, segundo a França, para fins pacíficos. Não era nem uma atitude compatível com alguma cortesia, mas era uma forma de manifestar discordância, silenciosa e respeitosa, como cabe à política. Tive até, na Comissão de Relações Exteriores, uma discussão com o Embaixador Francês, à época, discussão elevada, é claro, porque ele quis convencer-nos de que havia necessidade de manifestar ao mundo que a França está inserida entre as potências atômicas. Ora se isso faz virtude à grande França das idéias, dos valores, do pensamento, da liberdade, da Revolução Francesa, enfim, tudo que a faz um país formidável do ponto de vista da defesa dos valores humanos, do desenvolvimento do Direito, no avanço na política!  

Pela mesma razão, agora - esta inclusive concreta -, não podemos, de forma alguma, buscar vencedores, aprisionados dentro dessa idéia maniqueísta da vitória ou da derrota, dessa "futibolização" da realidade. Porque, quando a vitória e a derrota são exercitadas no campo simbólico do esporte, ali se esgotam as potencialidades agressivas do ser humano. Não na guerra! Não na estupidez! Não na morte! Não nos erros de alvo! E, por outro lado, não na perseguição brutal que os sérvios do Kosovo faziam à população de origem albanesa, 80% daquele país.  

Situação interna em relação à qual não temos que nos envolver, dolorosa, dramática. Há outras no mundo, que ocorrem em outros países, mas, como não há OTAN, porque não são na Europa, em relação a eles nada se faz. Nada se fez no Sri Lanka, nada se faz em relação aos curdos, nada se faz sobre alguns dos problemas profundos do Oriente Médio em relação às populações que vivem em torno da conflagrada região da Palestina. Nada se faz em massacres outros que há em continentes. Nada se faz em formas indiretas de violência, como a miséria, como a doença, que relegam milhões à morte!  

Somente nesses primeiros meses do ano, morreu muito mais gente vítima de homicídio no Brasil do que na Guerra do Kosovo que estamos a lamentar. Essa é uma forma indireta de violência, tão grave como a outra. Qualquer vida é grave quando se perde; qualquer morte é condenável quando fora de razões naturais.  

De passagem, um dado: o Brasil possui uma média alarmante de homicídios: são 47 mil homicídios por ano. Isso é muito mais do que essas guerras, é mais do que aconteceu, inclusive, na Guerra do Vietnã. São 47 mil homicídios por ano, em geral do povo pobre. Quem mais paga é o povo pobre. É uma forma de violência.  

Portanto não se justifica que uma forma isolada de violência, condenável sob todos os aspectos, sobreponha-se a uma outra que tem muito mais do que a finalidade de combater a violência específica existente no Kosovo: a de alardear para o mundo que, a partir do fim da Guerra Fria, existe uma nova ordem político-militar responsável pelo mundo, polícia do universo, destrutora de tudo aquilo que foi conseguido à custa de enormes sacrifícios em mais de 50 anos após a Segunda Guerra Mundial.  

O que há de grave nesse episódio, Srs. Senadores, Srªs Senadoras, Sr. Presidente, passa despercebido no volume espetacular das notícias: é tudo haver sido feito por cima do Conselho de Segurança das Nações Unidas.  

No momento em que se derroga a ordem internacional politicamente organizada, nesse momento paira sobre o mundo uma nova ameaça. Como custa organizar institucionalmente um país, acalmar-lhe os excessos, abranger-lhe as correntes contrárias. Imaginemos o que não é organizar uma ordem mundial dentro de princípios acatados por todos e que só tem no Direito a sua força para existir. É o grande sentido das Nações Unidas.  

Várias vezes os direitos implícitos dos povos não foram assegurados pelas Nações Unidas, pela truculência, pela violência de questões locais que superavam a possibilidade de sua intervenção, mas todos os homens atados a valores do Direito, voltados ao verdadeiro espírito da paz, todos esses não podem deixar de considerar que no momento em que as Nações Unidas nem sequer foram ouvidas nesse episódio, ali se dá uma cisão muito grave na ordem internacional e um novo valor se estabelece, paralelamente.  

A própria OTAN, que comemorou festivamente os seus cinqüenta anos em pleno bombardeio e que foi criada durante a Guerra Fria, nela, pelo equilíbrio de forças, jamais atuou. Ela foi criada como uma Organização do Tratado dos Países do Atlântico Norte para protegerem-se do que, à época, chamava-se de "ameaça soviética", e durante a Guerra Fria não foi necessário o seu funcionamento. Por quê? Porque a Guerra Fria estabeleceu um equilíbrio do terror. Sabia-se que a destruição total era uma possibilidade e basta que se diga que o que havia de armamento instalado era suficiente para vinte e cinco destruições totais da face da Terra - basta uma, mas havia vinte e cinco.  

A Guerra Fria estabelece, então, o equilíbrio do terror entre as duas grandes nações beligerantes, entre os sistemas em conflito. Com o desamar-se do socialismo de Estado, com a falência econômica russa, com a pulverização do que era a antiga União Soviética, tornando independentes os países, a Guerra Fria acaba e, ao acabar, trouxe para o mundo um alívio.  

Primeiro, o equilíbrio do terror se desmobilizava. Houve, inclusive, inúmeras vitórias no tocante ao desarmamento, principalmente ao atômico. Ora, quando o equilíbrio do terror se desfaz pela ação política dos homens - e, sobretudo, pela ação, a meu juízo, genial de um político, Gorbachev, hoje posto de lado na União Soviética, exatamente por seu talento, por compreender que o mundo, a economia dos países, a estabilidade não poderia mais estar sujeita àquela possibilidade permanente de equilíbrio pelo terror, ou de gastos militares que tornavam inviáveis a situação interna dos países -, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, feita para o equilíbrio do terror, aí, sim, aparece grandiosa, poderosa e incompetente a destruir, por armas violentas, o que é uma não menos violenta atividade interna de um país, massacrando um povo inteiro, desassistido por causas milenares que pertencem até internamente à história desse país ou dessa região.

 

Vejam como é grave. No equilíbrio do terror não houve necessidade da OTAN. Terminado o equilíbrio do terror, então ela entra com armas aparentemente convencionais - aparentemente, porque muito modernas - e estabelece uma nova ordem no mundo por cima das Nações Unidas, com base no poderio militar. E quando se sabe que, por trás de tudo isso, agita-se, medonha, tenebrosa, mortal, a indústria bélica, tem-se, ainda, uma visão muito mais deplorável em relação a que ponto pode chegar a Humanidade na sua ânsia de destruir.  

Malditos sejam, sim, os fabricantes de armamentos! Eles estão por trás, sempre, de tudo isso. Hoje, em nosso País, há um movimento - pequeno, em relação aos problemas que estou aqui a trazer - de desarmamento, de proibição da venda de armas, mas ele tem, no seu bojo, na sua natureza, um valor intrínseco que, se aplicado aos países do mundo, evidentemente, poderia terminar com muitas guerras.  

A rigor, o desarmamento do mundo nunca houve para valer. Os países nunca abriram mão de se armar e até mesmo o nosso País tem muito orgulho de algumas fabricações de armamentos que, hoje, exporta para outros países. É preciso declará-lo, com toda clareza e com toda a franqueza. Uma vez mais, a economia a suplantar os valores, os interesses econômicos a suplantar valores de vida, o que é, aliás, o grande drama do nosso tempo, porque a Economia não é uma ciência de fins, é uma ciência de meios. Não sendo uma ciência de fins, não é uma ciência de valores, de finalidades de ação política. Ela é uma ciência de meios para se atingirem determinados fins. E esses fins, sim, é que são a construção filosófica dos valores de vida das civilizações que pretendemos criar.  

Portanto, quando aquele povo estava ali, nas ruas, a saudar o retorno da vida, o que predominava, o que valia era, exatamente, a certeza de que são esses sopros de esperança que fazem a Humanidade continuar. Que ele possa vir com uma paz não mais brutalmente cercada por ameaças, como as que ainda ontem, desnecessariamente, fez o Presidente Clinton, no momento em que um país totalmente destroçado está a se reerguer, naquela posição de um boxeador que derruba o outro e, uma vez derrubado o outro, ainda o humilha.  

Ao invés de dirigir palavras ao ditador Milosevic, igualmente responsável por tudo isso, deveria ter dirigido palavras de respeito ao povo iugoslavo, porque ele foi, no fundo, o único e grande sofredor de tudo isso.  

Muito obrigado, Sr. Presidente.  

Obrigado Srªs e Srs. Senadores pela atenção.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 12/06/1999 - Página 15169