Discurso no Senado Federal

INDIGNAÇÃO PELA ABSOLVIÇÃO DOS ACUSADOS DO MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJAS. NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE COMISSÃO EXTERNA DO SENADO FEDERAL PARA ACOMPANHAMENTO DO REFERIDO JULGAMENTO.

Autor
Heloísa Helena (PT - Partido dos Trabalhadores/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • INDIGNAÇÃO PELA ABSOLVIÇÃO DOS ACUSADOS DO MASSACRE DE ELDORADO DOS CARAJAS. NECESSIDADE DE CRIAÇÃO DE COMISSÃO EXTERNA DO SENADO FEDERAL PARA ACOMPANHAMENTO DO REFERIDO JULGAMENTO.
Aparteantes
Eduardo Suplicy, Geraldo Cândido.
Publicação
Publicação no DSF de 20/08/1999 - Página 21703
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • PROTESTO, RESULTADO, JULGAMENTO, ABSOLVIÇÃO, OFICIAL DA POLICIA MILITAR, ACUSADO, HOMICIDIO, TRABALHADOR RURAL, SEM-TERRA, MUNICIPIO, ELDORADO DOS CARAJAS (PA), ESTADO DO PARA (PA).
  • DENUNCIA, PARTICIPAÇÃO, ALMIR GABRIEL, GOVERNADOR, FRAUDE, MONTAGEM, JULGAMENTO, REALIZAÇÃO, CAPITAL DE ESTADO, ESTADO DO PARA (PA), DEMONSTRAÇÃO, MANIPULAÇÃO, JUSTIÇA, ABSOLVIÇÃO, COMANDANTE, POLICIA MILITAR, RESPONSAVEL, ORDENAÇÃO, HOMICIDIO, TRABALHADOR RURAL, SEM-TERRA.

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT-AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, também compartilho da homenagem que o Senador Maguito Vilela faz à nossa linda Cora Coralina, sem dúvida orgulho de todas as mulheres deste País.  

Infelizmente, em vez de trazer um poema de Cora - e poderia até fazê-lo, porque seu coração feminino cantou tantos poemas sobre as tristezas e as alegrias dos corações femininos -, terei que falar de mais uma vergonha nacional, que foi o julgamento de Eldorado de Carajás.  

Sr. Presidente, Senador Carlos Patrocínio, é muito ruim falar continuamente dessas vergonhas nacionais. Sinceramente, eu preferiria não estar mais falando delas, porque sei que essas vergonhas nacionais levam ou ao desencanto, ao desalento da população de um modo geral, à desesperança ou à banalização da miséria, da perversidade, da crueldade. E esses são valores extremamente deploráveis para a vida em sociedade.  

Tenho visto isso até nas reações mais simples. Quando eu mostrava minha indignação diante do televisor, pelo resultado do julgamento, meu filho, de 13 anos, criado numa família que representa a contínua esperança de que possamos construir uma Nação melhor, dizia: "Mãezinha, não se estresse. Este País não tem mais jeito".  

Vejam V. Exªs a reação de uma criança criada numa família que a todo momento tenta fazer de sua postura cotidiana um exemplo de esperança, para que possamos construir uma Nação mais justa, solidária, igualitária e fraterna. Imaginem como fica a população de forma geral, imaginem como ficam os familiares das vítimas do massacre de Eldorado de Carajás.  

Acompanhei o primeiro dia de julgamento, juntamente com os Deputados Federais José Genoíno, Valdir Ganzer, Paulo Rocha, o Deputado Federal Babá, que representava a Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Revivemos o massacre por fitas de vídeo e por fotos extremamente vergonhosas para um país, que mostram claramente a proximidade dos tiros no tórax, as marcas de sangue, indicando que as vítimas estavam algemadas ou deitadas.  

Há depoimentos de pais e mães de família que, na televisão, gritavam, abraçando seus filhos, pedindo-lhes que não saíssem de casa. Uma mulher com dois tiros na coxa pedia ao filho que não fosse defender os outros companheiros junto à polícia. O filho dizia: "Mas meus companheiros estão sendo massacrados lá fora." Ela o abraçava e dizia: "Meu filho, mãe você só tem uma. Pelo amor de Deus, não vá."  

Determinadas cenas e fotos mostram tiros na testa, na cabeça, tiros dados à queima-roupa, em pessoas já imobilizadas, marcas de tiros na orelha, na nuca, golpes dados, pessoas arrastadas de seus barracos para serem assassinadas, crianças que se viram mergulhadas em poças de sangue, pessoas que entraram num caminhão que transportava todas as vítimas.  

Uma das testemunhas, fingindo-se de morta, entrou no caminhão com medo de ser assassinada, e disse que viu quando um policial atirou numa pessoa que estava a seu lado. Essa testemunha simplesmente sentiu o sangue da vítima cobrir seu próprio corpo.  

Não é possível que nos conformemos diante dessas cenas, diante dessa barbárie, diante da fraude montada para o julgamento. Para que V. Exª tenha uma idéia, Sr. Presidente, o julgamento foi montado numa faculdade particular, cujo Reitor é secretário especial do Governador do Estado, que deveria estar sendo arrolado como réu nesse processo. O que não aconteceu. Dos 300 lugares disponíveis para o julgamento, apenas 12 foram destinados ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ora, todos sabemos que, se o julgamento estava sendo realizado numa faculdade de Direito, se havia estudantes querendo acompanhar o julgamento, nada melhor do que colocar um telão para que todos pudessem acompanhá-lo, compartilhando a experiência. No entanto, apenas 12 lugares foram reservados aos sem-terrra.  

Dentre os familiares das vítimas, que estavam com muito medo, Sr. Presidente, havia um senhor de idade, pai de um dos rapazes assassinados, que era conhecido, por sua deficiência mental, como Surdinho. A única coisa que o Surdinho fazia, conforme todos os depoimentos dados, era brincar com as crianças. Vergonhosamente, ele foi a primeira vítima do massacre. Lembro-me com clareza de ver o pai, enquanto assistia pela televisão às cenas e às fotografias do massacre, seus olhos se enchiam de lágrimas, e as lágrimas caíam. E, ao mesmo tempo em que olhava para as cenas deploráveis, ele olhava para os réus, para os oficiais, como que querendo deles um único gesto de arrependimento ou de consolação a ele como pai. Mas nada acontecia. Eles estavam lá frios, absolutamente imóveis, como se já adivinhassem o resultado.  

Para nossa surpresa, hoje aparece na televisão uma cena, uma suposta cena que mostra um suposto trabalhador, um suposto sem-terra com uma arma na mão. Essa cena foi mostrada pela imprensa como se fosse a grande cena que levou à absolvição dos oficiais. Mas que grande mentira nacional! Fiquei impressionada com o fato de que, nessa mesma fita, analisada durante três anos por peritos da Unicamp, não tivessem sido descobertas essas cenas desse suposto trabalhador com a arma. E o que é mais grave: mesmo que houvesse um suposto trabalhador rural com uma arma, a Justiça deveria tê-lo indiciado. Entretanto, absolveu os três oficiais que comandaram essa operação com requintes de perversidade, que resultou no assassinato de 19 pessoas. Dessa forma, diante desse exemplo dado, se matarem meu filho, posso me sentir à vontade para matar quantas pessoas eu considerar que tiveram relação direta com o episódio. Por isso, deixamos aqui o nosso protesto.  

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, as pessoas que participaram da acusação, todos vamos envidar nossa capacidade de luta e de trabalho no sentido de anular essa vergonha nacional, que foi o resultado desse julgamento, bem como a posição vergonhosa assumida pelo juiz. Sempre soube, embora não seja dessa área, que os chamados juízes leigos, nesses júris, votariam conforme sua consciência diante de fatos. Nunca soube que esses juízes leigos entrassem no mérito de julgar conceitos como "eficiência".  

Para se ter uma idéia, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, passaram um questionário para os juízes leigos, para o tribunal do júri, o qual eles assinaram, atestando que os réus — os três oficiais —, na qualidade de coordenadores dessa operação, concorreram, juntamente com todos os envolvidos na acusação, com o procedimento que levou à morte 19 pessoas. Nesse mesmo questionário, estabeleceram que as provas são insuficientes para a condenação dos réus. Nunca imaginei que o conceito do que é suficiente ou insuficiente pudesse ser estabelecido por um júri, com juízes leigos, em um tribunal popular.  

O Sr. Geraldo Cândido (Bloco/PT-RJ) - V. Exª me permite um aparte?  

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT-AL) - Concedo o aparte a V. Exª, Senador Geraldo Cândido.  

O Sr. Geraldo Cândido (Bloco/PT-RJ) - Senadora Heloisa Helena, em primeiro lugar, parabenizo V. Exª pelo pronunciamento e por sua indignação, da qual também participo. Foi vergonhoso o que aconteceu em Belém do Pará, no julgamento dos oficiais envolvidos no massacre de Eldorado dos Carajás. O que pensa o cidadão sobre essa decisão absurda em relação àquele massacre? Há pouco tempo foi publicada uma pesquisa cujo resultado demonstrava que, da população brasileira consultada, 45% afirmavam não haver democracia no Brasil. Tenho a mesma opinião. Na verdade, há democracia para uma minoria, enquanto que, para a maioria da população brasileira, há um sistema opressivo, antidemocrático. Imagine o que aconteceria se, em nosso País, fosse aprovada a pena de morte. Seriam executados exatamente os pobres, os negros e os favelados, e não os ricos. Está aí a resposta: o massacre de Eldorado dos Carajás. É impossível que essas pessoas fiquem insensíveis diante de tanto absurdo. Estavam lá as provas. Filmes documentando o massacre foram mostrados para os jurados. A Justiça usa uma venda como símbolo, para demonstrar que é cega, e ela é cega, sim. Mas é cega porque não quer enxergar, não porque é imparcial. A Justiça não tem nada de imparcialidade. Isso é uma hipocrisia! A Justiça está do lado dos poderosos. Isso sempre aconteceu neste País e continuará acontecendo. Esse tipo de absurdo faz com que trabalhadores desarmados, vítimas de um massacre, passem a ser os agressores. Temo que, ao final do julgamento, os sem-terra sejam condenados. Nesse processo montado em Belém do Pará, há um esquema financiado pelos latifundiários, com um recurso de R$3 milhões, para trazer as famílias dos policiais, alojá-los em bons hotéis, a fim de participarem do julgamento. O Governador do Estado do Pará, Sr. Almir Gabriel, é um dos comprometidos com o poder econômico, com esse massacre; é um dos responsáveis pelo massacre. S. Exª está financiando toda essa parafernália, inclusive limitando o número de pessoas que podem assistir ao julgamento. Do lado dos sem-terra, Parlamentares e algumas autoridades que foram acompanhar o julgamento tiveram direito a apenas 12 credenciais; do outro lado, 200 credenciais. Tudo isso mostra a conivência do Governo do Estado, do poder econômico com os assassinos de Eldorado dos Carajás. Portanto, aqui fica também o nosso protesto. Compartilho da indignação de V. Exª. Espero que um dia, neste País, ainda haja justiça para o nosso povo. Muito obrigado.  

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT-AL) - Muito obrigada, Senador Geraldo Cândido.  

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - V. Exª me concede um aparte?  

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT-AL) - Tem a palavra V. Exª, Senador Eduardo Suplicy.  

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT-SP) - Senadora Heloisa Helena, da mesma maneira, cumprimento V. Exª por seu pronunciamento. V. Exª mostra seu grau de indignação, que também é o nosso, o do Senador Geraldo Cândido e de todos aqueles que têm acompanhado de perto o episódio de Eldorado de Carajás, bem como o de Corumbiara. Em Eldorado de Carajás, no dia 17 de abril de 1997, 19 trabalhadores foram mortos; em Corumbiara, um ano e pouco antes, morreram 11 trabalhadores. Havia uma expectativa enorme, em todo Brasil e em muitos outros países, com respeito ao resultado desse julgamento. Surpreendi-me quando, nesta madrugada, soube que o juiz havia absolvido os três oficiais, a começar pelo Coronel Pantoja e aqueles que estiveram à frente das operações que levaram àquele massacre. Com diversos companheiros do Partido dos Trabalhadores, como o Presidente do Partido José Dirceu, Luiz Inácio Lula da Silva, advogados e deputados à época, como Luís Eduardo Greenhalg.

 

Há depoimentos de pais e mães de família que, na televisão, gritavam, abraçando seus filhos, pedindo-lhes que não saíssem de casa. Uma mulher com dois tiros na coxa pedia ao filho que não fosse defender os outros companheiros junto à polícia. O filho dizia: "Mas meus companheiros estão sendo massacrados lá fora." Ela o abraçava e dizia: "Meu filho, mãe você só tem uma. Pelo amor de Deus, não vá."  

Determinadas cenas e fotos mostram tiros na testa, na cabeça, tiros dados à queima-roupa, em pessoas já imobilizadas, marcas de tiros na orelha, na nuca, golpes dados, pessoas arrastadas de seus barracos para serem assassinadas, crianças que se viram mergulhadas em poças de sangue, pessoas que entraram num caminhão que transportava todas as vítimas.  

Uma das testemunhas, fingindo-se de morta, entrou no caminhão com medo de ser assassinada, e disse que viu quando um policial atirou numa pessoa que estava a seu lado. Essa testemunha simplesmente sentiu o sangue da vítima cobrir seu próprio corpo.  

Não é possível que nos conformemos diante dessas cenas, diante dessa barbárie, diante da fraude montada para o julgamento.  

No dia seguinte ao do massacre, pude ouvir dezenas de sobreviventes, que descreveram a situação, afirmando que os policiais militares não tiveram uma atitude de maior contemporização, em que pese a sugestão do cinegrafista de se estabelecer um diálogo, um entendimento, para evitar violência maior. Houve uma precipitação. Por ordem de quem? Qual a responsabilidade de um comandante de pelotão ou de um comandante da Polícia Militar, ao ordenar uma reação daquele tipo contra pessoas que não carregavam armas de fogo? Elas estavam com seus instrumentos de trabalho, preocupadas em fazer uma manifestação, em defender o seu direito de estarem assentadas para trabalhar a terra. Qual a responsabilidade deles ao procurarem desobstruir a estrada, provocando a morte de 19 trabalhadores que não tinham alternativa de sobrevivência? Ontem, o Deputado José Genoíno relatou-me uma cena que presenciou na segunda-feira, quando esteve presente, juntamente com V. Exª, ao início do julgamento. A viúva de um dos trabalhadores mortos estava preocupada, porque não tinha recursos para comprar um presente para a filha, que fazia aniversário e estava ali relembrando, mais uma vez, o triste episódio do falecimento de seu pai. Um jornalista, então, tomou a iniciativa de comprar uma boneca e dá-la à pequena menina — se não me engano, com idade em torno de sete anos —, que a ficou carregando durante todo o tempo, enquanto se iniciava o julgamento. Aquela cena havia impressionado muito o Deputado José Genoíno. Ouvi, hoje cedo, que os representantes do Ministério Público recorrerão da decisão tomada. Portanto, há ainda a esperança de que a justiça venha a prevalecer. É possível que as circunstâncias, descritas por V. Exª, do julgamento, que está se realizando em Belém do Pará, bem como as pressões sobre o juiz e sobre todas as pessoas envolvidas sejam de tal ordem, que possa estar havendo falhas na decisão da Justiça. No entanto, o sistema judiciário brasileiro prevê o direito de recorrer de uma decisão que não parece a mais correta. Então, continuaremos atentos. Vai-se iniciar também, proximamente, o julgamento referente ao massacre de Corumbiara, e é importante que prestemos atenção. Isso tem muito a ver com a justiça no campo, com a justiça no Brasil. Meus cumprimentos a V. Exª.  

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT-AL) - Agradeço o aparte de V. Exª, Senador Eduardo Suplicy, bem como o do Senador Geraldo Cândido. E é exatamente por isso, Sr. Presidente, que anteontem, no primeiro dia de julgamento, o qual acompanhei, logo que cheguei do acompanhamento, encaminhei um requerimento — e solicito que V. Exª o coloque na pauta da Ordem do Dia da próxima sessão ordinária — para que o Senado indique uma comissão externa para acompanhar todo esse processo. Sabemos que esse fato pode levar a mais violência no campo, pela impunidade, como também estabelecer uma sinalização extremamente perversa em relação ao julgamento de Corumbiara e à questão de Carandiru. É o maior julgamento da história, que se estenderá, certamente, até o final do ano. São três acusados em cada processo de julgamento. Com a absolvição dos comandantes dessa operação, fica ainda mais difícil a luta em prol da condenação de um ou outro policial que cumpriu ordem. Conforme lembrou o Senador Eduardo Suplicy, o cinegrafista que foi testemunha do processo disse que procurou os oficiais que comandavam a operação, porque um dos rapazes que tinham sido baleados apresentava sinal de vida, mas eles se negaram a prestar socorro.  

Portanto, solicito a V. Exª que faça um esforço, junto à Mesa Diretora, de possibilitar que o requerimento entre na Ordem do Dia da próxima sessão, a fim de que viabilizemos uma comissão do Senado para acompanhar todo o julgamento, que é extremamente importante para a Nação brasileira, no sentido do combate à impunidade e, acima de tudo, do estabelecimento da paz no campo, algo que todos nós que defendemos a reforma agrária queremos.  

Muito obrigada.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 20/08/1999 - Página 21703