Discurso no Senado Federal

SOLIDARIEDADE AOS LIDERES DA 'MARCHA DOS 100 MIL', A PROPOSITO DO PRONUNCIAMENTO DO SENADOR LUIZ OTAVIO. LEITURA DA CARTA DO PADRE PAOLINO BALDASSARI, QUE ALERTA PARA A TRAGEDIA DO ALCOOLISMO QUE ACOMETE OS INDIOS DA AMAZONIA.

Autor
Tião Viana (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Sebastião Afonso Viana Macedo Neves
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
MOVIMENTO TRABALHISTA. POLITICA INDIGENISTA.:
  • SOLIDARIEDADE AOS LIDERES DA 'MARCHA DOS 100 MIL', A PROPOSITO DO PRONUNCIAMENTO DO SENADOR LUIZ OTAVIO. LEITURA DA CARTA DO PADRE PAOLINO BALDASSARI, QUE ALERTA PARA A TRAGEDIA DO ALCOOLISMO QUE ACOMETE OS INDIOS DA AMAZONIA.
Aparteantes
Marina Silva.
Publicação
Publicação no DSF de 28/08/1999 - Página 22381
Assunto
Outros > MOVIMENTO TRABALHISTA. POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • SOLIDARIEDADE, LIDER, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, MARCHA, BRASILIA (DF), DISTRITO FEDERAL (DF), PROPOSIÇÃO, ALTERNATIVA, POLITICA ECONOMICO FINANCEIRA, POLITICA SOCIAL, PAIS.
  • LEITURA, CARTA, AUTORIA, PAOLINO BALDASSARI, SACERDOTE, ESTADO DO ACRE (AC), ADVERTENCIA, PROBLEMA, ALCOOLISMO, INDIO, REGIÃO AMAZONICA.
  • DEFESA, NECESSIDADE, ATENÇÃO, GOVERNO FEDERAL, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), SOLUÇÃO, PROBLEMA, COMUNIDADE INDIGENA.

O SR. TIÃO VIANA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, pretendo homenagear, pela segunda vez neste ano, uma figura muito especial para a História da Amazônia e deste País, cuja trajetória de vida consigo comparar à de Madre Tereza de Calcutá. Refiro-me ao Padre Paolino Baldassari.  

No entanto, antes de fazê-lo eu não poderia deixar de prestar a minha solidariedade à Senadora Marina Silva, ao Lula, ao ex-Governador Brizola e ao Governador Miguel Arraes. Entendo o livre exercício da democracia feito pelo Senador Luiz Otávio, um companheiro no Senado Federal, mas considero que o Governo não está adotando essa trilha do confronto. Ele está adotando a trilha de conciliação com o grito das ruas, feito ontem, e com a "Marcha dos 100 Mil". O melhor caminho é se encontrar uma alternativa para a política econômica e social do País, e não o confronto entre os Partidos de sustentação e de oposição ao Governo.  

Recentemente, algumas personalidades nossas, como o próprio Governador Jorge Viana tem dito que o maior problema do Governo Federal, hoje, são os seus aliados e não nós da Oposição, que temos feito uma política clara, objetiva e construtiva para o País.  

Solidarizo-me, integralmente, às figuras de nossos líderes nacionais, que têm muito ainda a construir para o futuro próximo deste País.  

Sr. Presidente, a carta do Padre Paolino é breve e objetiva, à qual faço questão de ler na íntegra.  

Rio Purús - viajando  

Exmº e caríssimo Senador Tião, há 8 dias que estou subindo o rio Purús e ficarei mais de um mês para visitar todas as Aldeias dos índios Kulina e Kaxinawá e também as várias cooperativas dos seringueiros e ribeirinhos que, a meu ver, são o princípio de uma esperança de viver e sobreviver, não deixando a mata e vindo para a cidade.  

Quanto aos índios, que tanto amo e que tanto desejo possam viver a sua vida, a sua cultura na sua reserva no rio Purús, há gravíssimos problemas que precisamos enfrentar e solucionar.  

Ontem mesmo, chegando na Aldeia Kulina de Santa Júlia, soube que dois índios morreram afogados no rio - eu sei muito bem como índio Kulina sabe nadar, porque desde pequenino as mães os ensinam a nadar - como dois índios morrem afogados? Soube que morreram afogados porque estavam bêbados, e não de pinga, mas de álcool puro.  

O bom amigo, como médico, sabe o estrago que faz o álcool puro. O problema é muito grave e precisa de uma solução e peço força nesse sentido.  

Continuo a viagem e chego à Aldeia Kaxinauá de Palmarí. Têm índios que me pedem uma passagem até à Aldeia Fronteira e na viagem me contam que iam comprar álcool na Aldeia Palmarí, porque na Morada Nova fizeram festa e veio a faltar álcool. Na viagem o motor parou e o motorista bêbado puxou a correia, perdeu o equilíbrio e caiu, e na queda se agarrou no motor e levou tudo para o fundo do rio, e teria também morrido afogado se não tivesse recebido a ajuda de dois que não estavam bêbados e o salvaram. O pior é que iam buscar álcool com o cacique, que talvez use o dinheiro de projetos e compra álcool para vender. O motor e a embarcação tinham sido dados pela Funai para o transporte de mercadoria e de produtos, e estava sendo usado para ir buscar álcool.  

Continua a viagem para Morada Nova, Aldeia Kaxinauá, todos bêbados. Continuo triste e preocupado por toda a viagem.  

No passado, recebi recursos da Itália, da minha família e de meus amigos e, para cada aldeia, dei umas cabecinhas de gado e que foram aumentando e prosperando. Quando os marreteiros de Manoel Urbano viram que podiam fazer bons negócios, enchiam a embarcação de caixas de álcool e foram trocando gado com álcool e as aldeias - como Santo Amaro, que chegara a ter 48 cabeças de gado - foram vendendo tudo, tendo agora 7 cabeças de gado. Assim na Tocandeira, assim na Fronteira.  

Foram feitas também escolas com grande sacrifício, e a conclusão é que ou não funcionam ou funcionam muito mal.  

Nestes últimos anos foram aposentados muitos índios, mais kaxinauás que kulina*, mas o que se pensava fosse um bem se tornou uma verdadeira calamidade. O velho baixa para a cidade com uma enorme canoada de gente para tirar o dinheiro da aposentadoria e compram álcool e ficam bêbados e o dinheiro não dá para nada e, não tendo dinheiro para comprar a gasolina, vão com a Funai e vêm comigo e pelo desejo que vão embora e, as crianças não procurem comida nas caixas de lixo, conseguem a gasolina e sobem e quando chegam na aldeia está na hora de baixar novamente para tirar o dinheiro da aposentadoria. Com esta brincadeira, "até logo" aos roçados que deveriam ser feitos.  

Nestas viagens, tocadas pela fome, exterminam tudo. Andando no rio Purús, que era tão rico, não se vê mais nada. Nada mais de tracajá, de tartaruga, de surubim, de muntum, etc... Está-se espalhando o deserto de tudo. Adeus às riquezas da fauna do rio Purús. As professoras das escolas fazem a mesma coisa: perdem mais de dois dias de aula por mês, pois descem para tirar o dinheiro e muitas vezes comprar álcool para as aldeias deles, e o que devia ser uma ajuda se torna uma calamidade.  

Continuo a viagem na Aldeia Fronteira. Antigamente os Kaxinauás* eram fortes e resistentes, e agora estão liquidados pelo álcool e a doença toma conta, em modo especial a cirrose hepática.  

Tudo que estou contando mostra a situação dos índios. O que notei mais é que as crianças, que são muitas, estão passando fome. É preciso tomar providências e o senhor, como médico e Senador, pode ajudar. O conselho que dou é de conseguir com a Funai central trocar o dinheiro das aposentadorias e dos professores. Não entregar dinheiro, mas mercadoria correspondente ao dinheiro e ter um barco que entregue diretamente nas aldeias e incentive a agricultura. O governo comprar arroz, banana, feijão e deixar para as crianças das escolas. Os adultos devem manter as crianças com a ajuda do governo e com o trabalho.  

Fiscalizar seriamente os marreteiros e fazendeiros para que não usem mão-de-obra barata indígena a troco de álcool. Não deve acontecer que o dinheiro do governo seja o maior incentivador do vício e o índio, baixando na cidade, aprenda do branco tudo que há de pior.  

Lanço este grito angustiante para salvar os índios, que estão afundando como um barco velho. Confio realmente que o bom amigo lance, em meu nome, este grito angustiante de socorro lá no Senado. Salvemos os índios e com eles a fauna e a flora.  

Peço desculpa desta longa choradeira e lhe desejo tudo de bom, e agradeço em nome dos humildes tudo o que está fazendo por eles.  

Um grande abraço,  

Paolino Baldassari  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, trata-se de uma carta que, a meu ver, não traduz exatamente a fórmula correta da condução de uma política de Governo para os povos indígenas da Amazônia.  

Há povos já organizados naquela região, que lutam, todos os dias, em favor de justiça social, da dignidade, da sua cultura, das suas tradições, de seus direitos, e que vão às cidades numa luta fantástica. Mas há uma outra realidade cruel. Refiro-me ao vício da embriaguez, que tem tomado conta dos índios em detrimento dessa mistura entre povos indígenas e as populações urbanas, que já têm seus hábitos.  

O álcool, como bebida alcóolica naquela região, é um problema gravíssimo. Eles são chamados, os índios e os seringueiros, de "tampa azul". Trata-se de uma situação de calamidade, vivida naquela região. Portanto, esse grito de angústia, de preocupação do Padre Paolino é um alerta para a Funai, é um alerta para o Governo Federal.  

Que se encontre um caminho correto e justo para os direitos indígenas, assim como uma política do Governo possa solucionar os problemas dos povos indígenas!  

Entendo que a Funai precisa ouvir mais aqueles que lutam e trabalham com os povos tradicionais da Amazônia; precisa ter suas portas abertas para os povos indígenas; a Funai precisa - a meu ver - ser dirigida e representada por povos indígenas para que se faça mais justiça social na Amazônia brasileira.  

Sr. Presidente, deixo registrado o grito de uma pessoa que tem 40 anos de vida missionária naquela Região, e que saiu da Itália, pesando apenas 19kg, fugido da guerra. Este homem tem dedicado cada ato de sua vida, cada gesto seu em favor da evangelização dos povos da Amazônia e em favor dos mais humildes, como os nossos seringueiros e índios.  

A Srª Marina Silva (Bloco/PT - AC) - V. Exª me permite um aparte?  

O SR. TIÃO VIANA (Bloco/PT - AC) - Com imenso prazer, Senadora Marina Silva.  

A Srª Marina Silva (Bloco/PT - AC) - Quero registrar que o Padre Paolino sempre tem um estilo muito rico para escrever cartas e, esta que ele lhe envia, ainda que narrando uma situação trágica, tem todo um estilo interessante de como ele consegue captar a vida dos povos e das populações tradicionais da Amazônia. Devo lembrar que o alerta dado é, com certeza, na sua maior parte, ao Governo Federal, à Funai, às instituições federais que têm a obrigação de formular uma política para as populações indígenas. No entanto, fico feliz, porque, graças a Deus, esse alerta tem sido assimilado pelo Governo. Hoje, no Estado do Acre, já contamos com um programa para as populações indígenas nas áreas de saúde, educação e principalmente, naquilo que é fundamental, qual seja, no incentivo à produção, conforme suas tradições, e com as demandas específicas das comunidades indígenas. O fenômeno "tampa azul" , o de beber álcool, que hoje vem sendo praticado pelos seringueiros e pelos índios, é algo que ocorreu a partir da desarticulação da empresa extrativista, deixando as comunidades sem quaisquer perspectiva de sobrevivência. E hoje, graças a um subsídio chamado Lei Chico Mendes, aprovado pelo Governo Jorge Viana, se Deus quiser, poderá dar uma outra referência de vida para essas pessoas. Na ida do Presidente Fernando Henrique Cardoso ao Acre, penso que um dos momentos mais ricos e mais interessantes que pude observar foi na fala do índio Ubirasi ao pedir respeito, na comemoração dos 500 anos, às populações indígenas. Entristeci-me quando ele cobrou a aprovação do Estatuto do Índio. Oportunidade em que o Presidente da República o respondeu que isso era uma responsabilidade do Congresso. Sabemos que quando a matéria é de interesse do Governo ela entra por uma porta e alguns dias depois sai pela outra. Mas, se o Presidente disse que a responsabilidade pela aprovação desse Estatuto do Índio é do Congresso Nacional, devo crer que Sua Excelência, assim como sua base de sustentação, está de acordo que o aprovemos imediatamente. Certamente, ao aprovarmos este Estatuto, ele contribuirá, e muito, inclusive acerca dessa situação narrada por V. Exª, por intermédio da carta do Padre Paolino. Tive a felicidade de levá-lo ao Palácio do Planalto, onde teve um audiência com o Presidente Fernando Henrique Cardoso. Naquela oportunidade, ele narrou ao Presidente a situação dramática que vivem os seringueiros e os índios. Lembro-me de que, naquele momento, a confusão devia-se ao fato de que 10 mil toras de mogno haviam sido derrubadas e ele queria uma providência a respeito. Levamos a demanda ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, que, a partir dessa mobilização, mandou editar uma portaria criando a moratória para o mogno. O Presidente escreveu uma carta ao Padre Paolino, parabenizando-o por sua luta em defesa da floresta e das populações tradicionais. Sentindo-se respaldado pelo Presidente da República, que concordava com sua luta, o padre pegou a carta com a mensagem e a assinatura do Presidente e percorreu todo o rio mostrando-a aos madeireiros, aos fazendeiros, àqueles que queriam destruir as terras dos índios. Esse episódio demonstrou toda a luta de um padre que fugiu da guerra pesando 19 kg; agora, após quarenta anos de luta na Amazônia, ele pesa, no máximo, 46kg. Ele é hoje um símbolo da luta e da resistência das comunidades tradicionais; vive em Sena Madureira e dedica sua vida a uma causa que é de todos nós. Parabenizo V. Exª por trazer aqui essa carta do Padre Paolino. Todos temos a responsabilidade de fazer com que os nossos índios possam viver com dignidade. E dignidade significa ter suas terras demarcadas, educação e respeito aos recortes culturais das populações indígenas. Muito obrigada.

 

O SR. TIÃO VIANA (Bloco/PDT - AP) - Eu é que agradeço à Senadora e amiga Marina Silva por seu aparte. V. Exª é uma das pessoas que têm ajudado a colocar essa semente, fazendo com que o Governo do Estado do Acre e setores da sociedade estejam tão solidários e envolvidos nessa luta que visa trazer dignidade para os povos indígenas daquele Estado.  

Por ocasião da visita do Presidente da República ao Estado do Acre, o Padre Paolino teve oportunidade de expressar uma pequena mensagem à Sua Excelência, colocando a necessidade de uma aproximação verdadeira entre o Governo Federal e os povos tradicionais que vivem na Amazônia. Imagino que a grande mensagem constante dessa carta do Padre Paolino diz respeito à necessidade de que a Funai seja, de fato, reformulada, reestruturada e representada por povos indígenas para construir essa dignidade tão sonhada.  

Ouvi com muita atenção quando o Presidente da República respondeu ao índio Ubirasi, dizendo que há um avanço na demarcação das terras indígenas. Estou fazendo um levantamento bastante objetivo para que possamos lutar muito, como vêm fazendo tantas pessoas, a favor das políticas indígenas, a fim de que este País conclua, em definitivo, a demarcação das terras indígenas e tenha uma política social à altura do que é a nossa origem. A nossa história de população tradicional traz a idéia de sermos os primeiros brasileiros, e acredito que, com muita esperança, podemos um dia ser considerados à altura da nossa própria dignidade.  

Era o que tinha a dizer.  

Muito obrigado, Sr. Presidente.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/08/1999 - Página 22381