Discurso no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.

Autor
Marina Silva (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • COMEMORAÇÃO DO QUADRAGESIMO ANIVERSARIO DA DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA.
Aparteantes
Eduardo Suplicy, Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/1999 - Página 31464
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • GRAVIDADE, EXCLUSÃO, MENOR, JUVENTUDE, MUNDO, BRASIL, AMBITO, ANALFABETISMO, FOME, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, DESCUMPRIMENTO, DECLARAÇÃO, DIREITOS, CRIANÇA.
  • DEFESA, PROGRAMA, RENDA MINIMA, VINCULAÇÃO, EDUCAÇÃO, INVESTIMENTO, POLITICA SOCIAL, PREVENÇÃO, CRIME, VIOLENCIA.
  • COMENTARIO, PROJETO DE LEI, REDUÇÃO, LIMITE DE IDADE, IMPUTABILIDADE PENAL, INEFICACIA, SOLUÇÃO, PROBLEMA.
  • CONVITE, PARTICIPAÇÃO, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, DEFESA, PROGRAMA, BOLSA DE ESTUDO, AUXILIO, FAMILIA, POPULAÇÃO CARENTE, DISTRITO FEDERAL (DF).

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a sessão de hoje, destinada à comemoração do 40º aniversário da Declaração dos Direitos da Criança, tem um objetivo e um significado bastante importante para a sociedade brasileira e para o Congresso Nacional.  

Os colegas que me antecederam, Senadores Emilia Fernandes, Tião Viana, Eduardo Suplicy, enfim, todos aqueles que usaram da palavra para referir-se a este dia, enfatizaram a idéia de que a Declaração Universal dos Direitos da Criança é um desafio à Humanidade, uma expectativa de futuro. Se não cuidarmos da nossa juventude, se não cuidarmos adequadamente de nossas crianças, com certeza, o futuro da Humanidade estará comprometido.  

Há uma frase que diz que o século XXI ou será religioso, ou não será. Ousaria acrescentar: o século XXI ou será religioso, ou será feminista, ou será humanista, ou não será. Isso porque são exatamente esses valores que precisam referenciar nossas ações em um mundo altamente tecnificado, em um mundo globalizado, em um mundo que poderá mover-se tranqüilamente apenas com alguns excluídos, embora com bilhões de pessoas vivendo à margem dos processos, sejam eles de caráter produtivo, cultural, espiritual, social ou criativo. Esses processos excludentes, que fazem com que alguns, a cada dia, fiquem "mais humanos" e outros fiquem embrutecidos ou "menos humanos", precisam ser reavaliados.  

Talvez, a pior denúncia de que isso está ocorrendo no mundo hoje é o tratamento oferecido aos jovens e às crianças. Somente no nosso País há 15 milhões de jovens analfabetos, ou seja, 15 milhões de jovens condenados a um futuro, no mínimo, duvidoso, para sermos generosos com a situação brasileira. São milhões e milhões de crianças que não consomem as proteínas necessárias para o seu desenvolvimento cultural, social e intelectual. Dessa forma, não atingem as mínimas condições para competirem no mercado de trabalho com aqueles que, por razões óbvias, têm acesso a todos os meios de desenvolvimento.  

O jornal a Folha de S.Paulo , numa edição publicada em 1997, publica um levantamento primoroso sobre o trabalho infantil, fazendo uma denúncia muito grave do tratamento dado às nossas crianças. O título da matéria é "A Infância Roubada".  

Só para se ter uma idéia, uma das manchetes diz: "Trabalho faz 74% das crianças da cana repetirem na escola". E, mais à frente, afirma: "A maioria dos meninos da Bahia ganham menos de R$30, 00".  

É um trabalho jornalístico muito bem-feito, que apresenta dados sobre as crianças que trabalham no sisal e nos canaviais, crianças que são obrigadas a abandonar a escola para ajudar os pais.  

E faz uma denúncia: "Bolsa-Escola de FHC não chega às crianças". No mesmo caderno, diz que a bolsa-escola de R$50,00 retira mil crianças da carvoaria, mas falta escola para que todas sejam inseridas no processo de ensino e aprendizagem.  

Infelizmente, não posso especificar todas as manchetes que fazem parte desse caderno especial da Folha de S.Paulo , mas só esse trabalho jornalístico - não estou recorrendo às teses de mestrado e de doutorado, aos levantamentos realizados pelo Ipea e pelas instituições de pesquisa do nosso País - já nos dá conta de que o tratamento oferecido às nossas crianças e aos nossos adolescentes não corresponde às perspectivas estabelecidas pela Declaração Universal dos Direitos das Crianças. A criança merece, por parte da sociedade, se sua família não tiver condições, tudo aquilo que é necessário ao seu adequado desenvolvimento. Infelizmente, não estamos oferecendo isso às nossas crianças.  

Aliás, falar de crianças e de idosos, às vezes, pode parecer um pouco demagógico. Todo mundo é favorável, em tese, a que se dê tratamento especial aos idosos e às crianças. O difícil é traduzir essa intenção em ações concretas, em atitudes práticas.  

Há uma simbologia muito interessante que podemos fazer em relação a uma passagem do Evangelho: ao ser perguntado sobre o que fazer para alcançar o reino do céu ou chegar a Deus, Jesus Cristo respondeu que, primeiro, a pessoa deve fazer-se criança. E fazer-se criança é, de certa forma, esvaziar a nossa ânsia egoísta de querer ganhar a qualquer preço, de querer tirar vantagem a qualquer custo e estar sempre à frente de algum processo que nos possa gerar dividendos. Tornar-se criança é esvaziar-se desse egoísmo que, muitas vezes, faz com que aviltemos as nossas próprias crianças. E aí alguém poderia dizer que as crianças são, aparentemente, muito egoístas, querem reter tudo o que tocam. Mas o egoísmo da criança esvazia-se exatamente na sua capacidade de querer ter as coisas só por um momento.  

Hoje, no dia dessa homenagem, gostaria de falar de uma criança que muito me emocionou, minha filha Moara. Nesses dias em que estou trabalhando na Comissão da Pobreza, ela, aos nove anos de idade, também se envolveu com o assunto e criou um movimento chamado MMMM. Perguntei o porquê do nome e ela disse que significava Movimento Moara, Maiara e Mariá. Moara é o nome dela, Maiara é o nome da irmã de sete anos e Mariá é a filha do Senador Tião Viana. Elas espalharam cartazes por todo o prédio e estão conseguindo doações. Pediu à professora do Clube dos Aventureiros da Igreja Adventista que freqüenta para identificar uma creche para doar aquilo que arrecadaram. Moara chegou com um pequeno relatório, que me emocionou, e contou: "Mamãe, a minha professora disse que aqui no Distrito Federal tem uma creche com 50 crianças e só 10 mamadeiras, que, depois de lavadas, são reutilizadas por outras crianças."  

Fiquei muito feliz e orgulhosa das meninas por estarem à frente desse movimento, pois elas demonstram exatamente aquilo que li no Evangelho, ou seja, que devemos nos esvaziar da nossa arrogância de adulto, cheios de prepotência de que sabemos tudo e nos entregar um pouco a sermos novamente crianças para podermos cuidar delas.  

Cuidar das crianças é permitir que elas tenham os meios necessários para criar asas. Criamos nossos filhos não para mantê-los no nosso lar, no nosso seio, mas para que eles possam voar o mais alto possível. É claro que não podem virar Fênix, temos que ter esse cuidado.  

Ao mesmo tempo em que a sociedade também pode possibilitar esse vôo, todas as pessoas são capazes, competentes e podem ter realizações fantásticas de acordo com as suas opções, condicionadas pelos meios em que vivem. Mas essas pessoas precisam ter os meios.  

Discuti com alguns Senadores juristas da Comissão de Assuntos Sociais sobre a idéia de reduzir a idade mínima de imputabilidade para 16 anos. É um assunto polêmico, e acredito que os que propõem essa redução são também pessoas de boa-fé que estão tentando resolver o problema da violência. Mas será que a violência se resolve com isso? Será que, antes pensarmos nisso, talvez não fosse adequado realizarmos, com toda determinação, programas de bolsa-escola? Será que não seria mais adequado oferecer condições para que os nossos jovens e crianças tenham um lar saudável, seja junto aos pais biológicos, seja junto aos que deles cuidam, para que tenham qualidade de vida também sob o ponto de vista emocional e cultural? Será que é adequado querer combater a violência apenas com o critério da punição?  

É claro que muitos dos crimes praticados ocorre em função de dois elementos principais: haver um lugar propício para realização do ato ilícito e as condições, ou pelo menos a expectativa, de que haverá impunidade.  

Sabemos que apenas 10% da violência é praticada pelos jovens e adolescentes; 90% são praticados por adultos, segundo estudos. Neste dia do aniversário da Declaração Universal dos Direitos da Criança, temos que parar para pensar que a sociedade brasileira e a Humanidade como um todo precisa compreender - falo nós porque não me excluo do problema, não quero ficar apenas como espectadora - que devemos trabalhar no sentido de fazer com que as instituições funcionem e correspondam às necessidades do pleno desenvolvimento desses jovens e dessas crianças. Será que estamos? Temos que refletir, pois, afinal de contas, os dados trazidos mais uma vez pela Folha de S. Paulo nos dão conta de que "Trabalho ocupa 250 milhões de criança". Esse é um levantamento feito no mundo.  

Temos que observar que, se as nossas crianças perdem a sua infância ou têm a sua infância roubada pela necessidade de trabalhar para sobreviver, para ajudar os pais, estamos fazendo um investimento ao contrário. Tudo o que ela pode ganhar para uma sobrevida - é apenas uma sobrevida - ela perderá no seu futuro por não ter condições de ficar dentro das mínimas expectativas de conseguir um emprego digno, de conseguir uma remuneração justa e de se colocar como um cidadão capaz de desenvolver as suas potencialidades.  

Estuda-se, hoje, a idéia de que as famílias devam ficar nas suas vilas, nas suas pequenas localidades, mas desde que tenham a estrutura necessária para o desenvolvimento e a aprendizagem das suas crianças e dos seus jovens, com formação profissional voltada para a sua atividade produtiva, com meios que lhes possibilitem desenvolvimento. No entanto, não deve estar implícita a idéia de que, por ser um agricultor, o cidadão está condenado a fazer um curso de técnico agrícola para ajudar os pais. Não. Se quer desenvolver potencialidades no campo da arte, no campo do desporto ou mesmo da literatura, o jovem tem esse direito, e a sociedade tem que lhe oferecer, de forma clara e diversificada, condições para que sejam atendidas essas expectativas. Afinal de contas, não somos um conjunto de iguais, somos diferentes, inclusive na expectativa de realização de nossos sonhos.  

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - Permite-me V. Exª um aparte?  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Concedo um aparte a V. Exª, Senador Ney Suassuna.  

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - Muito obrigado, nobre Senadora Marina Silva. Emocionei-me com sua narração a respeito do movimento que estão fazendo as duas filhas de V. Exª e a filha do Senador Tião Viana. É assim que devem ser educadas as crianças. E nessa hora em que estamos comemorando o 40º aniversário dos Direitos da Criança, aproveito para parabenizar V. Exª e também para externar uma preocupação. Temos exagerado no Brasil, depois que criamos uma legislação específica dos Direitos da Criança e do Adolescente. Como dono de colégio, outro dia vi algo incrível. Um aluno, reincidente várias vezes em problemas de disciplina, foi punido no colégio, uma punição até amena. Imediatamente, os pais procuraram um juiz. A juíza veio ao colégio para indagar de cada professor porque o havia punido, atitude essa que interferiu inclusive na área regimental do colégio. Fiz aqui o cotejamento das duas posições: da posição de V. Exª, que orienta a família para ser solidária às causas do aluno, e da de uma autoridade constituída que vem fazer exatamente o contrário, para quebrar um movimento. Essa não é uma atitude isolada; está ocorrendo com uma certa constância nas escolas brasileiras. Temos que fazer tudo pela criança, porque ela é o futuro do País, é o nosso futuro, é a nossa projeção para a eternidade. Mas temos de ter o cuidado de não exagerar, temos de deixar a criança discernir entre o certo e o errado. Aproveito esta oportunidade para externar a minha preocupação com os exageros e, ao mesmo tempo, para parabenizar V. Exª e todos aqueles que usaram a tribuna para comemorar essa data, que marcou real e profundamente a humanidade. Muito obrigado.

 

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Agradeço o aparte de V. Exª e o incorporo ao meu pronunciamento.  

Concluo, Sr. Presidente, reafirmando aquilo que falei ontem. Talvez hoje seja um dia bastante adequado e sugestivo para que o Governador da Capital do País faça uma reavaliação da sua decisão de acabar com o Programa Bolsa-Escola no Distrito Federal. Que a Secretária Eurides Brito também faça essa reavaliação. Que sejam feitas mudanças para aperfeiçoar o programa, mas que não haja uma avaliação preconceituosa, puramente política, de um programa que se constituiu numa referência para todo o País.  

Eu gostaria muito que o Congresso Nacional, que a Comissão de Educação pudesse fazer uma manifestação sobre a bolsa-escola.  

Sei o quanto é difícil reconhecer a autoria dos outros e sei o quanto é difícil, às vezes, ter de renunciar a alguma forma de autoria. Mas acredito que a Política com "P" maiúsculo, como falei ontem, não se deve preocupar em saber quem é o pai da criança. O importante é que a criança merece respeito pelo que é, independentemente de seus pais. A criança tem um valor em si que precisa ser preservado e respeitado. Também as boas idéias devem ser tratadas dessa maneira.  

Creio que a experiência da bolsa-escola deve ser reconhecida não pelo Governador Roriz em particular, mas por todo o Brasil. Afinal de contas, são vários os governos e prefeituras que, inteligentemente, estão realizando esse programa.  

Em função de ter ganho uma outra proposta política, um outro partido, por que será que o Governador do Distrito Federal teria de fazer essa mudança? Eu a considero desnecessária. Ela causará prejuízo à experiência que tivemos, de incentivo à permanência na escola e de recuperação de crianças. Elas estavam completamente abandonadas, sem nenhuma motivação para freqüentar uma sala de aula. Além do mais, o programa concede uma renda de cidadania, para que as famílias possam cuidar de seus filhos, proporcionando-lhes alimentação adequada e até mesmo os meios necessários para obtê-la.  

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - V. Exª me permite um aparte, Senadora Marina Silva?  

A Srª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Concedo um aparte ao Senador Eduardo Suplicy.  

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Em apoio ao pronunciamento de V. Exª, eu gostaria de informar que justamente hoje, às 19 horas, no Sindicato dos Bancários, haverá um ato em apoio à continuidade da bolsa-escola. Todos os Senadores e a população do Distrito Federal estão convidados a participar.  

A SRª MARINA SILVA (Bloco/PT - AC) - Incorporo a informação de V. Exª ao meu pronunciamento.  

Aqueles que estão nos ouvindo na TV e na Rádio Senado estão convidados a participar desse ato de cidadania em defesa da bolsa-escola. Creio que tanto as pessoas beneficiadas quanto aquelas que, embora economicamente não precisem do benefício, são solidárias com o movimento devem participar, por ser essa uma forma de se praticar a justiça social e de contribuir para a inclusão no futuro de milhões e milhões de brasileiros.  

Muito obrigada, Sr. Presidente.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/1999 - Página 31464