Discurso durante a 181ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELEVANCIA DA MIGRAÇÃO ITALIANA PARA A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CULTURAL.:
  • CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELEVANCIA DA MIGRAÇÃO ITALIANA PARA A CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO BRASILEIRA.
Publicação
Publicação no DSF de 16/12/1999 - Página 35164
Assunto
Outros > POLITICA CULTURAL.
Indexação
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, MIGRAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, ITALIA, PROCESSO, CONSTRUÇÃO, BRASIL, CRIAÇÃO, CONSOLIDAÇÃO, PATRIMONIO CULTURAL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB – CE) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, às vésperas do final do ano, não poderia deixar de aproveitar a oportunidade para tecer considerações, ainda que largamente inspiradas num vôo subjetivo, sobre a relevância da migração italiana para a construção da nação brasileira. Naturalmente, o assunto readquiriu pertinência discursiva e o foco das atenções de todos, desde o instante em que a Rede Globo decidiu, há pouco mais de dois meses, exibir Terra Nostra, a nova novela das 8, sob a direção do jovem Jayme Monjardim e escrita por Benedito Ruy Barbosa.  

A avassaladora audiência não nos deixa dúvida sobre o interesse do público brasileiro na novela, o que não traz nada de novo. No entanto, Terra Nostra apresenta um ingrediente, em seu enredo, que nos parece histórica e culturalmente muito peculiar. Refiro-me, obviamente, à feliz fórmula narrativa da novela em questão, que contempla, com perfeição estética, os requisitos estruturais da ficção e do documentário. Sem contestação, trata-se de uma superprodução, cujo investimento, segundo a revista Época, ultrapassa a faixa dos 20 milhões de reais.  

A novela não foge dos moldes tradicionais do gênero folhetinesco, mas aperfeiçoa, sim, sua veia educativa, na medida em que recorre à memória histórica nacional para bem retratar a ambientação de um romance de época. No caso específico de Terra Nostra, é a comunidade ítalo-brasileira que, ineditamente, recebe um tratamento menos caricaturado e, portanto, mais realista sobre seus costumes, sua trajetória, sua verdadeira história.  

Nesse sentido, em vez da velha e surrada caracterização do tipo ítalo-brasileiro no conjunto das representações dos imigrantes no imaginário nacional, a Rede Globo tem recorrido a um trabalho de pesquisa mais elaborado, que restaura uma imagem mais realisticamente digna e condigna com os fatos históricos. No lugar do inveterado dono de cantina suburbana ou da velha matriarca passional e grosseira, estereótipos de que tanto se valeu a dramaturgia da Rede Globo por anos, opta-se, agora, por personagens humanamente mais críveis e verossímeis.  

Inteligentemente, a emissora preferiu investir numa versão que se destinasse a recuperar, historicamente, a trajetória da migração italiana em São Paulo. Do elenco à direção da novela, do figurino ao cenário, da trilha sonora às inserções de imagens da velha São Paulo, tudo anda na mais sofisticada impecabilidade.  

Contudo, se há algum núcleo que mereça elogios publicamente rasgados na produção de Terra Nostra , esses devem ser encaminhados ao núcleo responsável pela reconstituição histórica e cultural de época. Talvez seja este o primeiro grande projeto brasileiro de representação artística da migração italiana ao País que, com confiável fidelidade, retrate a utopia, o drama e os conflitos multiculturais envolvidos.  

Sr. Presidente, longe do que se possa superficialmente sugerir, o fenômeno das migrações em massa tem, sistematicamente, acompanhado diversos povos, nas mais remotas eras de nossa civilização. Os historiadores nos ensinam que, até a Idade Média, a motivação dos fluxos migratórios se explicava, em geral, por razões nitidamente religiosas. Todavia, com a descoberta do Novo Mundo, incentivaram-se fortes correntes migratórias da Europa para a América, no intuito preliminar de efetivar o plano político e econômico de ocupação.  

Do século dezenove em diante, o panorama migratório adquiriu nova feição no Ocidente, consagrando sua hegemonia nos deslocamentos essencialmente motivados por razões ditadas pela evolução do capitalismo moderno. Cumpre recordar que, nos meados do século dezenove, a industrialização avançava a toque de caixa por toda a Europa Ocidental, da qual resultaram não somente uma racionalização extrema nos meios de produção, mas também um desemprego atroz no campo, além de uma brutal desumanização do trabalho.  

Necessário registrar, igualmente, que a Itália atravessava, à época, uma conjuntura política de grave conturbação social, culminando na unificação do País nos moldes que o conhecemos hoje. Nesse contexto, não foi completamente de iniciativa do camponês, ou do desempregado italiano, a decisão de abandonar sua terra natal em busca de novos horizontes, distantes léguas e léguas dali. Seria uma tese assaz romântica depositar integralmente no espírito aventureiro do imigrante italiano a única e absoluta justificativa para tão arriscada empreitada.  

Mais consistente e convincente é o argumento sustentado por eminentes historiadores e sociólogos brasileiros, segundo o qual as levas migratórias da Itália para o Brasil se devem, primordialmente, a graves problemas econômicos que grassavam a estrutura produtiva dos estados europeus. Em outros termos, milhares de cidadãos italianos, antes de optarem, foram literalmente expulsos de seu país de origem, como mercadorias sem valor de uso ou troca, destituídos até do próprio valor reprodutivo com o qual poderiam, potencialmente, contribuir para o fortalecimento da nação italiana.  

É com essa leitura em mente que muitos brasileiros e não brasileiros se declaram perplexos diante da paixão que domina os ítalo-brasileiros quando o assunto consiste na afirmação de uma dupla identidade cultural. Na verdade, haveria aí, para os mais racionalistas, um autêntico estado de paradoxal relacionamento com a pátria. Pois tamanha manifestação de fidelidade à pátria italiana pressuporia o reconhecimento de um processo alienador quanto às reais causas que, de fato, justificaram a "expulsão" dos italianos da Itália no século dezenove.  

Conscientes, ou não, do processo político que se escondia por detrás de tão gigantesco fluxo migratório, milhares de famílias inteiras do norte da Itália foram atraídas pelas agências de emprego, prometendo futuro próspero na América brasileira. Uma vez em solo brasileiro, camponeses, artesãos e operários trataram, logo, de superar as dificuldades de adaptação cultural e climática, para, em seguida, concretizar o sonho de enriquecimento rápido.  

Aliás, foi graças à difusão perversa da promessa de um eldorado tropical, que as economias capitalistas européias articularam ideologicamente o convencimento das massas subalternas rumo ao Brasil. Naturalmente, a realidade escravocrata do sistema produtivo local reservava um destino bem diferente aos imigrantes, inegavelmente, ludibriados.  

De todo modo, entre 1876 e 1920, o Brasil recebeu cerca de 1 milhão e trezentos mil italianos, vindos sobretudo de Vêneto, norte da Itália, para trabalhar na agricultura. Espalharam-se por diferentes pontos do País, do Rio Grande do Sul a Pernambuco, ao longo de cuja extensão se fixaram ganhando a vida como trabalhadores braçais, em substituição à mão-de-obra escrava que a Abolição subtraíra aos fazendeiros. Mais precisamente, o ano em que houve maior ingresso de italianos ao Brasil foi 1891, quando 108 mil imigrantes registraram entrada em nossas fronteiras.  

A lavoura cafeeira paulista atingiu o apogeu depois da chegada aos campos dos braços italianos. À custa de muito suor e de uma rotina de sofrimentos vinculada a precárias condições de trabalho, os barões do café – entre os quais se enfileiravam alguns italianos – acumularam fortunas, instaurando novo ciclo de riquezas em terras brasileiras. Duas ou três gerações à frente, outros imigrantes italianos e seus descendentes já se tornavam grandes proprietários de usinas de cana de açúcar no interior paulista. Em São Paulo, a industrialização do País não teria experimentado a prosperidade que teve, sem o formidável desempenho empreendedor de um Francesco Matarazzo, que presidiu um dos maiores impérios industriais da Nação.  

Sr. Presidente, ao lado do aspecto econômico, não nos podemos furtar a reconhecer a fabulosa contribuição da migração italiana no processo de constituição e consolidação de nosso patrimônio cultural. Vale observar que a Semana de Arte Moderna de 1922 jamais seria a mesma sem a participação de gênios do calibre de Anita Malfatti e de Menotti del Picchia, que foram logo seguidos por artistas não menos espetaculares como Cândido Portinari, Di Cavalcanti e Brecheret, além do incomparável Pietro Maria Bardi. Nas décadas mais recentes, além do próprio Jayme Monjardim que vem a ser um Matarazzo de quarta geração, temos que destacar figuras do jaez de um Gianfrancesco Guarnieri e de um inesquecível Adoniram Barbosa.  

Não nos espanta, no entanto, que, apesar de todo o orgulho com que os ítalo-brasileiros se remetem à cultura e aos costumes da península, a integração dos imigrantes com as cores locais e tropicais tem sido uma das mais prodigiosas e produtivas. A mistura das diversidades étnicas raciais e multinacionais no caldo cultural brasileiro só foi enriquecida com o ingresso dos italianos ao País, seja pelo contágio inefável de um povo tão simpático e generoso, seja pela introdução de uma nova mentalidade de trabalho e cultura na incipiente modernização do Estado brasileiro.  

Por tudo isso, cumpre-nos, agora, a manifestação pública da gratidão para com um povo e uma cultura tão marcadamente presentes no espírito brasileiro. Aproveitemos, enfim, o ensejo da exibição da novela Terra Nostra , para juntos recordarmos e celebrarmos nossa memória nacional. Concluindo, ao prestar justa homenagem ao imenso valor civilizador e humanista dos italianos, consignado indelevelmente à história do Brasil, saudemos os imigrantes e seus descendentes, desde seus primeiros contatos até os mais recentes com a terra brasileira, a nossa terra.  

Era o que tinha a dizer.  

Muito obrigado.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/12/1999 - Página 35164