Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.

Autor
José Jorge (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: José Jorge de Vasconcelos Lima
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.
Publicação
Publicação no DSF de 29/03/2000 - Página 5434
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, GILBERTO FREYRE, SOCIOLOGO, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, CONSTRUÇÃO, PENSAMENTO, POLITICA, BRASIL.
  • CUMPRIMENTO, FERNANDO FREYRE, FILHO, GILBERTO FREYRE, SOCIOLOGO, REFERENCIA, PRESENÇA, PLENARIO, SENADO.

O SR. JOSÉ JORGE (PFL – PE. Pronuncia o seguinte discurso.) – Sr. Presidente, Senador Geraldo Melo; Sr. Vice-Presidente da República, Marco Maciel; Sr. Presidente do Instituto Joaquim Nabuco, filho do homenageado e nosso amigo, Dr. Fernando Freyre; demais autoridades presentes, Srªs e Srs. Senadores, Senhoras e Senhores, faz apenas treze anos que Gilberto Freyre nos deixou. Pela singularidade de seu espírito, pelo processo criativo permanente, sua ausência foi e continua sendo sentida – particularmente em sua cidade natal, nosso querido Recife, que ele tão bem simbolizava. Não partiu Gilberto Freyre, entretanto, levando consigo a memória do seu nome e de suas realizações: esta ficou conosco, serve-nos de guia, de inspiração, de alimento; muito especialmente, ficou a sua obra, com a qual somos obrigados a nos amparar sempre que buscamos nos entender, enquanto homens e mulheres participantes de uma determinada experiência coletiva. Esta experiência não é apenas pernambucana e nordestina, mas é, em seu amplo espectro, a experiência brasileira.  

Ao comemorarmos o centenário de Gilberto Freyre, somos impelidos a rememorar o notável escritor, bem como a meditar sobre sua grande contribuição ao pensamento brasileiro e universal. E esta grande contribuição, em que pese sua complexidade e a multiplicidade de enfoques que permite, talvez possa ser assim sintetizada: é o momento decisivo em que o pensamento brasileiro pensa, de modo genuíno e original, o próprio Brasil.  

Não queremos, com esta definição, retirar o incontestável mérito de outras profundas reflexões sobre a formação histórico-cultural brasileira e sobre o caráter nacional, anteriores ou contemporâneas ao marco representado por Casa Grande & Senzala , obra inaugural do pensamento freyreano, publicada em 1933, como Retrato do Brasil , de Paulo Prado, e Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Hollanda. Mas a singularidade da obra de Gilberto Freyre parece-nos que se situa na impressionante abrangência de sua abordagem, englobando os mais diversos detalhes de nossa vida colonial, com repercussões sempre presentes. É como se o pensamento de Freyre tivesse se deixado contaminar por seu objeto, adquirindo muitas de suas qualidades e feições, fazendo-se um pensar brasileiro sobre o Brasil.  

Esse processo de simbiose entre sujeito e objeto torna-se ainda mais evidente no estilo do grande escritor que é Gilberto Freyre, pelo qual nenhum de seus leitores consegue passar com indiferença: um estilo ao mesmo tempo preciso e esparramado, tão pleno de surpresas quanto desprovido de preconceitos, generoso e envolvente como a própria natureza nos trópicos. A originalidade da abordagem de Gilberto Freyre não passou despercebida no momento de sua estréia, com Casa Grande & Senzala , à qual se seguiram, ainda na década de 30, Sobrados e Mucambos e Nordeste. 

Muitos de nossos estudiosos e pesquisadores saudaram, de pronto, a obra de Freyre como um marco para a Sociologia brasileira e para a compreensão de nossa História e cultura, surgindo já como um clássico; outros, por sua vez, com um ponto de vista mais conservador ou mesmo reacionário, criticaram acerbamente alguns dos conceitos ali expostos, ou a maneira mesma como ele expunha a realidade objeto de seu estudo. Incapazes de ver que, na base de sua obra, encontrava-se o desejo desassombrado de chegar à dinâmica dos fatos e às suas mais profundas explicações, alguns chegaram a condená-la como pornográfica e anti-religiosa. Na verdade, ao mostrar o caráter contraditório e violento do processo de colonização e formação de nosso País, Gilberto Freyre nunca deixou de afirmar a originalidade e a plasticidade da sociedade que daí resultou, constituindo uma contribuição singular e significativa no concerto das nações modernas.  

É sua a inédita concepção da participação das três raças na formação da cultura e da nação brasileiras. Era uma época - o início da década de 30 - em que ainda predominava a noção da superioridade de certas raças ou etnias sobre outras, e em que a miscigenação era vista como um sério problema social, cultural e político, para o Brasil e para outros países das Américas. Gilberto Freyre, ainda muito moço, foi estudar nos Estados Unidos, aproximando-se do mestre Franz Boas, uma das maiores expressões da Antropologia Cultural em todo o mundo. Com essa aprendizagem, o jovem pernambucano despojou-se de vários dos preconceitos pseudo-científicos da época, atingindo uma nova concepção do que fossem os aspectos raciais ou genéticos, diante do reconhecimento da maior importância e influência dos aspectos culturais.  

Pois bem, Sr. Presidente, Sr as e Srs. Senadores, a valorização das imensas contribuições dos índios e principalmente dos negros na conformação da cultura brasileira causou muita polêmica e resistência, chegando nitidamente a irritar algumas das personalidades de nossa vida científica e religiosa. Freyre ressaltou o fato de terem sido os negros, trazidos como escravos da África, não apenas vítimas de um cruel sistema econômico, mas também agentes civilizadores, portadores de culturas diversificadas e, em muitos aspectos, sofisticadas, contribuindo decisivamente em várias das características marcantes do modo de ser brasileiro.  

Façamos aqui um breve excurso biográfico, propositadamente incompleto, de modo a ressaltar a significativa participação de Gilberto Freyre na vida cultural e política brasileira da primeira metade do século. Obtendo seu título de mestre na Universidade de Colúmbia, em 1922, com a tese que será o embrião de Casa Grande & Senzala, Gilberto realiza uma longa viagem à Europa. Assim como fez nos Estados Unidos, o pernambucano mantém contato com importantes intelectuais e artistas, tanto europeus como brasileiros, que lá se encontravam. Depois de voltar ao Brasil, o jovem sociólogo organiza no Recife, em 1926, o 1º Congresso Regionalista do Nordeste, do qual participam, entre outros, José Américo de Almeida, José Lins do Rego e Jorge de Lima, prenunciando e estimulando o surto da pujante literatura nordestina dos anos 30.  

No ano seguinte, ele assume o cargo de oficial de gabinete do Governador de Pernambuco, Estácio de Coimbra, acompanhando-o ao exílio quando os revolucionários de 1930 tomam o poder. É nesse período de exílio, iniciado em Portugal e continuado nos Estados Unidos, que Gilberto Freyre passa a trabalhar concentradamente nas pesquisas e na redação de Casa Grande & Senzala , prosseguindo nessa tarefa, quando volta ao Brasil em 1931, nas cidades do Rio de Janeiro e Recife, até concluí-la em 1933.  

Dois anos depois, o educador baiano Anísio Teixeira convida-o a participar da criação da Universidade do Distrito Federal, no Rio de Janeiro ainda, assumindo a primeira cadeira de Antropologia social e cultural do País. Com a instalação do Estado Novo, a Universidade sofre intervenção, sendo sua direção afastada e seu projeto original abandonado. Gilberto Freyre volta ao Recife, dedicando-se ao jornalismo e à redação dos seus livros. Em 1936 já fora publicado Sobrados e Mucambos , com o subtítulo de Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento do Urbano . Tratava-se, conforme o projeto gigantesco do autor, de uma continuação da Introdução à História da Sociedade Patriarcal no Brasil , iniciada por Casa Grande & Senzala e que ainda renderia um terceiro livro, igualmente alentado, o Ordem e Progresso , de 1959. Em 1937, viria à luz o excelente, ainda que menos comentado, Nordeste – Aspectos da Influência da Cana sobre a Vida e a Paisagem do Nordeste do Brasil .  

O combate às posições racistas e arianistas, que medravam no Brasil durante a ditadura do Estado Novo, levou Gilberto Freyre à prisão em 1942, tendo conseguido ser liberado no dia seguinte por influência de um amigo. Em 1946, com a redemocratização, o já ilustre pernambucano é eleito Deputado Federal pela União Democrática Nacional - UDN, passando a ter ativa participação na Assembléia Constituinte e nos trabalhos da Comissão de Educação e Cultura. Ainda Deputado, propugnou pela criação do Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, com sede no Recife, o qual mantém até hoje, com o estatuto de fundação, importantíssima produção de estudos sociais, culturais, econômicos e históricos sobre o Nordeste brasileiro.  

Findo o seu mandato, Gilberto Freyre continuaria a desenvolver atividades em diversas instituições intelectuais do Brasil e de todo o mundo, evitado, entretanto, os vínculos mais duradouros, o que o levou a se autodefinir como um "cigano de beca". Manteve-se lúcido e produtivo até os últimos anos de vida, instalado em seu sobrado secular em Apipucos, o qual representa importante elemento da geografia sentimental da cidade do Recife, onde funciona hoje a Fundação Gilberto Freyre.  

O reconhecimento internacional à produção de Gilberto Freyre fez sentir-se de modo intenso e contínuo. Não vamos enumerar aqui as suas mais variadas manifestações, que incluem a concessão do título de doutor honoris causa por diversas universidades em todo o mundo e a discussão de seu pensamento em simpósios internacionais. Citemos apenas algumas das expressões de apreço e entusiasmo por uma obra que ainda se mostra influente em nossos dias. Ao ser traduzida para o inglês, em 1946, com o título de The masters and The Slaves, Casa Grande & Senzala conquistou a admiração, entre outros, de dois importantes cientistas sociais e passou a influenciá-los: o norte-americano Eugene Genovese inspirou-se na obra de Freyre para escrever, sob uma perspectiva marxista, a história social da escravidão nos Estados Unidos; o inglês Lord Asa Briggs, fundador da Universidade de Sussex e autor de obras notáveis, afirmou: "quando o li pela primeira vez, convenci-me de que estava diante de um grande historiador, com quem era possível sentir uma imediata afinidade, embora a experiência histórica por ele descrita e recriada fosse tão diferente daquela que me era mais familiar" – chamando, ainda, a atenção para a extrema originalidade da sua abordagem cultural na época em que foi escrita.

 

Na França, a recepção à obra foi ainda mais entusiasmada e as marcas que deixou ainda mais profundas. Lembramos que Gilberto Freyre foi bastante criticado no Brasil, a partir dos anos 50, por cientistas sociais que pretendiam conceder à sua disciplina um maior rigor científico e acadêmico, afastando-se da abrangência multidisciplinar e da vizinhança com o estilo literário, características da produção do pernambucano. É muito importante ressaltar, no entanto, que o tipo de abordagem de Gilberto Freyre antecipava-se de muito a uma corrente de estudos históricos e culturais que seria criada na França e passaria a ter grande influência em todo o mundo: a chamada Nova História da Escola dos Anais , cujos criadores e maiores representantes foram todos entusiastas da obra do brasileiro.  

Fernand Braudel, por exemplo, escreveu o prefácio da edição italiana de Casa Grande & Senzala , como Lucien Febvre havia feito para a edição francesa – sendo ambos reconhecidos como criadores da nova corrente de estudos históricos, a qual se propõe a resgatar o amplo tecido de fatos que compunham a vida cotidiana das sociedades pretéritas, alcançando assim uma "história das mentalidades". Assinale-se que a tradução para o francês da obra mais conhecida de Freyre foi feita por um grande cientista social e humanista, profundo conhecedor do Brasil, Roger Bastide. Outra eminência dos estudos sociais franceses, Georges Gurvitch, saudou Gilberto Freyre, em uma conferência proferida em 1956, como "o maior dos sociólogos modernos".  

Algumas das palavras mais eloqüentes e significativas de reconhecimento da importância de Gilberto Freyre foram redigidas pelo ilustre crítico literário e pensador Roland Barthes. Ao manifestar-se sobre Casa Grande & Senzala em um artigo de 1953, Barthes avalia que " a conjugação de uma história racial ainda em elaboração e de um grande espírito iniciado nas disciplinas mais avançadas deu ao Brasil este livro conceituado (...), produto magistral daquela sensibilidade à história total seguida na França por um Bloch, um Febvre ou Braudel". O crítico francês ressalta ainda um aspecto freqüentemente evidenciado pelos comentadores estrangeiros, qual seja, o caráter anti-racista de uma obra que surge em plena efervescência de concepções eugenistas e obscurantistas, exemplificadas em grau extremo pelo nazismo: "Se pensarmos na espantosa mistificação em que se constituiu o conceito de raça, nas mentiras e nos crimes que esta palavra, cá e lá, ainda não cessou de cooenestar, reconheceremos que este livro de ciência e de inteligência é também um livro de coragem e de combate".  

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, na impossibilidade de prolongarmos indefinidamente este discurso, enumerando os sinais de reconhecimento e a influência da obra de Gilberto Freyre, bem como a diversidade de questões e perspectivas que ela abre, gostaríamos, no entanto, de nos determos ainda sobre este tópico - qual seja, o da concepção freyreana das relações raciais no Brasil. A idéia de uma democracia racial brasileira foi duramente criticada a partir dos anos 70, notadamente pelas correntes vinculadas às lutas do movimento negro. Parece-nos, entretanto, que as análises de Gilberto não negam a existência e a persistência de discriminações – afirmam, contudo, que dispomos de condições excepcionais para superá-las, tendo em vista que a miscigenação, tanto étnica quanto cultural, situa-se no âmago da experiência histórico-cultural brasileira. O combate ao racismo no Brasil, portanto, deve considerar essas peculiaridades e vantagens, encontrando um caminho brasileiro para construirmos uma verdadeira e completa democracia inter e multi-étnica.  

Foi nesse sentido que o nosso saudoso colega Darcy Ribeiro escreveu o prefácio de uma das edições em espanhol de Casa Grande & Senzala , tido pelos gilbertólogos como a mais relevante de todas as apresentações do livro que, de certa forma, descobriu o Brasil.  

Esperamos, Sr. Presidente, que as palavras que aqui trouxemos, alinhavadas sem o propósito de uma visão inédita de Gilberto Freyre, sirvam não só para render-lhe uma homenagem sincera, mas também para chamar a atenção sobre a atualidade de sua obra – atualidade permanente, como a dos verdadeiros clássicos – bem como para a riqueza e diversidade de idéias e ensinamentos que nela se contêm, sem que, como conterrâneo seu, possa deixar de dizer do meu orgulho dessa condição, exatamente na lição freyreana de que é no espírito de província, nada provinciano, que Pernambuco serve ao Brasil.  

Muito obrigado. (Palmas)  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/03/2000 - Página 5434