Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.

Autor
Roberto Freire (PPS - CIDADANIA/PE)
Nome completo: Roberto João Pereira Freire
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.
Publicação
Publicação no DSF de 29/03/2000 - Página 5446
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, GILBERTO FREYRE, SOCIOLOGO, ESCRITOR, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, CULTURA, PAIS, CONSTRUÇÃO, PENSAMENTO, ANALISE, HISTORIA, FORMAÇÃO, SOCIEDADE, BRASIL.

O SR. ROBERTO FREIRE (PPS – PE. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente, Sr. Vice-Presidente da República Marco Maciel, Sr. Fernando Freyre, que representa a família do homenageado, minhas senhoras, meus senhores, Srªs e Srs. Senadores, parece que eu estava adivinhando. Fiz uma pequena homenagem e busquei dar um toque muito pessoal. Eu sabia que os outros inscritos iriam fazer o devido e merecido panegírico; eu não estava preparado para a homenagem que o Presidente baiano concedeu a nós, pernambucanos. Imaginava até, ao final, dar por lido meu discurso, pois não o tinha alinhavado totalmente.  

Os ditadores sempre acalentaram a possibilidade de adotar o pensamento único em seu reino, pois, com isso, seria mais fácil governar. O mundo ficaria simplificado, a contestação eliminada, o conhecimento crítico varrido para dentro das fogueiras, fazendo triunfar uma certa verdade e eternizando o poder. Felizmente, os ditadores não se eternizam, por uma razão até corriqueira: o pensamento, por definição plural, não costuma se deixar aprisionar e, se o aprisionam por algum tempo, logo ele se liberta, para também libertar.  

Se lembro o fato de o pensamento não aceitar a tutela nem a unanimidade é para deixar claro, nesta minha manifestação, ao comemorar o centenário do nascimento de Gilberto Freyre, pernambucano, homem e estudioso que marcou uma geração e inscreveu o seu nome nas histórias e nos portais majestosos da inteligência, que ele foi sempre um polêmico e, por isso, não me alinho, para poder homenageá-lo, ao lado daqueles que falam em sua redescoberta, porque, para nós, ele nunca foi um estranho. Assim como também não o mitifico e não o renego.  

Destaca-se em Gilberto Freyre, conforme analiso – para mim, evidentemente e, por isso, a preocupação pessoal e do nosso posicionamento político –, não o cientista rigoroso, mas o homem inventivo, autor de uma obra que viria a marcar o debate acerca da nossa cultura e nacionalidade.  

Influenciado por pesquisadores americanos, no início do século passado, seria interessante salientarmos agora o que alguns começam a discutir: somos mais Estados Unidos do que Europa. E Gilberto Freyre foi, exatamente por conta dessa influência americana, aquele que estudou o cotidiano, a vida privada, as mentalidades, descortinando aspectos até então ignorados por estudiosos da época, seguidores da escola européia; contribuindo para derrubar a idéia de que estaríamos condenados ao atraso em virtude da mistura do branco, do negro e do índio.  

Ao contrário, genialmente, ele compreendeu a importância dessa miscigenação, equivocando-se, porém, ao extrair daí a tese da democracia racial, mesmo que mitigada – e mitigada muito posteriormente.  

E isto não tínhamos e ainda não temos: democracia racial. Embora entre nós não se possa afirmar que exista o racismo tal como o conhecemos em sociedades até mais avançadas do que a nossa, como a americana, como a européia, com todo o ressurgir do pensamento fascista, do pensamento neonazista. A força da miscigenação entre nós talvez nos acalente, nos resguarde de visões de futuro racistas. A miscigenação talvez seja o antídoto para todo esse processo.  

A tese da democracia racial, portanto, e para nós, nada mais era do que a racionalização ideológica de um certo domínio colonial experimentado pelo País. Esse era um debate da Academia na época. Essa posição de Gilberto Freyre gerou, em dois tempos, dois Gilbertos Freyres distintos. Eu ouvi, aqui, dizerem, em função de uma declaração sua, que ele era vários eus. Eram dois eus, do ponto de vista político.  

Nas décadas de 30 e 40, quando publicou a sua principal e mais conhecida obra, era um homem vinculado ao pensamento libertário e, nas disputas da época – recordo-me de ter lido sempre os nossos integralistas, Manoel Lubambo, Vicente do Rego Monteiro e tantos outros, na revista Fronteiras –, falavam que ele era um homem de esquerda, revolucionário e, algumas vezes, acusavam-no de soviético.  

A partir dos anos 50, ele dá uma incompreensível guinada para a direita, também em cima da sua grande e original contribuição, a miscigenação e a colonização portuguesa. E vai num crescendo, numa lusofilia que começava a defender o colonialismo português na África e até o próprio salazarismo.  

Se a esquerda já tinha desentendimento com Gilberto Freyre – e a USP, com seu pensadores, é exemplo concreto disso –, abria-se com essa sua postura política um período de confronto. E esse confronto foi de tal ordem que mesmo as contribuições sabidamente originais e positivas de Gilberto Freyre já não eram aceitas. Recordo, inclusive, junto com seu filho, contemporâneo da Faculdade de Direito, disputas que tivemos.  

Ao se comemorar o seu centenário, não podemos fazer uma separação esquizofrênica entre pensador e político. Contraditório sim, mas Gilberto Freyre. Seus livros e suas idéias sempre estiveram presentes entre nós. Talvez agora a única diferença – e que boa diferença – seja a de que podemos analisá-lo sem a carga do preconceito, herança da Guerra Fria, que, aliás, vitimou o próprio autor de Casa Grande & Senzala . 

É interessante estar presente aqui.  

Em 50, defesa do salazarismo; em 60, crítica feroz às esquerdas e, particularmente, aos comunistas; em 1964, seu amigo Castelo Branco não recebeu apenas a sua amizade, mas suas idéias, vinculando-as ao regime, defensor que foi do golpe militar. Em 1972, o então Deputado e hoje Vice-Presidente Marco Maciel solicitou a sua contribuição para o programa da Aliança Renovadora Nacional. E ele contribuiu com uma proposta perigosa, perigosíssima, em pleno regime ditatorial de Médici, com a tese de que a democracia clássica estava superada.  

Apesar desse posicionamento crítico, era essa a contribuição que eu queria prestar.  

Aos panegíricos associo-me e creio que Gilberto Freyre é merecedor de todos. Mas, como conheço algumas dessas manifestações, quis trazer a minha contribuição. Com a humildade devida, mas com a pernambucanidade de que ele tanto gostava, tenho orgulho de ser pernambucano como Gilberto Freyre. E esse espírito de expor o meu posicionamento pessoal dá a exata dimensão desse meu orgulho.  

Muito obrigado. (Palmas)  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/03/2000 - Página 5446