Discurso durante a 23ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.

Autor
Francelino Pereira (PFL - Partido da Frente Liberal/MG)
Nome completo: Francelino Pereira dos Santos
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • COMEMORAÇÃO DO CENTENARIO DE NASCIMENTO DO SOCIOLOGO GILBERTO FREYRE.
Publicação
Republicação no DSF de 26/05/2000 - Página 10911
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CENTENARIO, NASCIMENTO, GILBERTO FREYRE, SOCIOLOGO, ESCRITOR, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, VALORIZAÇÃO, CULTURA, PAIS, ANALISE, HISTORIA, FORMAÇÃO, IDENTIDADE, SOCIEDADE, BRASIL.

O SR. FRANCELINO PEREIRA (PFL – MG. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) – Sr. Presidente do Senado, Antonio Carlos Magalhães, Sr. Vice-Presidente da República, Marco Antônio Maciel, Dr. Fernando Freyre, esta é a homenagem do Senador de Minas e a emoção de Minas e dos mineiros. Senhores que compõem este plenário, recorro à memória e retorno a uma das extraordinárias noites vividas pelo Diretório Acadêmico da Faculdade de Direito de Minas Gerais, a Casa de Afonso Pena, na praça Afonso Arinos, pai, em Belo Horizonte, quando, a nosso convite – eu era o Presidente do Diretório –, recebíamos Gilberto Freyre para uma histórica e inesquecível conferência.  

Está aqui o texto impresso em 1946: "Ordem, Liberdade e Mineiridade", conferência lida na Faculdade de Direito de Belo Horizonte, a convite dos estudantes, na noite de 16 de julho de 1946.  

Era a noite de 16 de julho de 1946, e Gilberto Freyre era ainda um jovem. Tinha apenas 46 anos, quatro meses e um dia, mas já trazia consigo a fama nacional e internacional do autor de Casa Grande & Senzala e de Sobrados e Mucambos , as duas primeiras obras da famosa trilogia que haveria de ser completada, em 1959, com Ordem e Progresso . 

O Brasil vivia um momento especial em sua História. A onda antifascista e antinazista, que varreu o mundo com a derrota de Hitler, arrastou consigo a ditadura do Estado Novo e restabeleceu a democracia plena em nosso País.  

Os brasileiros elegemos representantes para uma Assembléia Nacional Constituinte, que elaborou a até então mais democrática de nossas Constituições, promulgada em 18 de setembro de 1946. E Gilberto Freyre, eleito Deputado Federal pelo Estado de Pernambuco, era um dos constituintes.  

Chegam-me, nítidos, na memória, os aplausos com que ele era constantemente interrompido em sua brilhante oração pelos jovens universitários mineiros – entre eles, este orador –, legítimos herdeiros da tradição libertária vinda dos Inconfidentes e engajados na luta contra a ditadura Vargas e pelo retorno à democracia.  

Seu propósito era discorrer sobre Minas, os mineiros e a mineiridade. A vocação de Minas para a democracia, para a ordem e para a liberdade, visando sempre à construção de uma Nação livre, impressionava o pensador.  

Modesto, afirmava que não era ele, um litorâneo, que ensinaria aos mineiros a "conciliação de valores antagônicos capazes de se completarem", garantindo que, nesse assunto, "todo mineiro verdadeiramente típico é vigário: vigário a quem brasileiro nenhum, de outra área, deve ter a pretensão de ensinar o padre-nosso da relatividade".  

A disputa ideológica que se expandia e se firmava com a divisão do mundo pós-guerra preocupava Gilberto Freyre naquele instante crucial do ano de 1946. Mas ele já vislumbrava "para as gerações mais novas ou para os velhos de espírito ainda moço, as primeiras oportunidades de esforço reconstrutor, organizador, criador, independente de preocupações excessivas de luta ideológica...".  

E buscava em Minas e nos mineiros a inspiração para a sua pregação. "A gente de Minas" – dizia o mestre – "parece ecologicamente condicionada para o papel de ver ao mesmo tempo do alto e do centro os problemas brasileiros. Visão essencial a qualquer esforço de planejamento nacional".  

Ao contrário do mestre Alceu Amoroso Lima – sempre lembrado pelo Vice-Presidente Marco Maciel, sobretudo quando vai a Minas –, que em seu clássico Voz de Minas , escrito também em 1946, dizia que "a montanha é, antes de tudo, limitação do horizonte. Limitação no sentido geográfico e no sentido psicológico do termo", Gilberto Freyre identificava nas montanhas mineiras o instrumento por meio do qual os mineiros enxergam todo o País.  

De fato, as montanhas mineiras serviram de palco para as mais memoráveis lutas democráticas da nacionalidade, a começar pela Inconfidência Mineira, que teve as montanhas que cercam Ouro Preto como eloqüentes testemunhas.  

Elas invadem os espaços e iluminam a liberdade e o sentimento de Minas. Ninguém nivela as montanhas de Minas.  

"Foram ainda estas montanhas" – falava Gilberto Freyre – "o ponto mais alto na resistência política ao caudilhismo de Getúlio Vargas, enfrentado e repudiado por Minas em memorável manifesto", o histórico Manifesto dos Mineiros . 

Sr. Presidente, os estudiosos costumam dividir a obra de Gilberto Freyre em três fases distintas: na primeira, que vai de 1918 a 1932, ela é composta de artigos de jornais, pelos ensaios do livro do Nordeste, organizado em comemoração do centenário do Diário de Pernambuco , e pela tese que ele defendeu em 1921, na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, intitulada Vida Social no Brasil em Meados do Século XIX . 

Já a segunda fase da obra freyreana, por todos considerada a mais importante, vai de 1933 a 1945, quando ele escreveu a famosa trilogia Casa Grande & Senzala , Sobrados e Mucambos e Ordem e Progresso , essa última com o seu título posteriormente mudado para Nordeste. Dessa fase, há outras obras de significação, como os Guias de Recife e Olinda e Interpretação do Brasil , originalmente publicada em inglês, em 1947, embora tenha resultado de um curso que ele deu 1944 na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos.  

A terceira fase de sua obra, que vai de 1946 até a sua morte, em 1987, compreende os discursos políticos, sua atuação como Deputado Constituinte em 1946, as conferências pronunciadas em vários pontos do País, inclusive em Belo Horizonte, e livros como Aventura e Rotina , Ingleses no Brasil , Sociologia, Ensaio de Antropologia e outras.  

Em sua famosa trilogia, que ele considera como uma unidade, dando-lhe a denominação de História da Sociedade Patriarcal no Brasil , nos deparamos com uma lúcida análise da formação do povo brasileiro, desde os tempos pré-nacional e colonial, a transição ocorrida com a vinda da corte portuguesa, até o fim do Segundo Império e as mudanças decorrentes do surgimento da República, análise que se estende até meados da década de 20.  

A concepção histórica da sociedade brasileira, definida por Gilberto Freyre em sua obra, considera uma articulação entre o patriarcalismo, a relação entre as etnias e a cultura e o meio ambiente tropical. Dessa junção resultam as teses expostas pelo autor sobre a sociedade brasileira.  

A primeira delas, e a mais polêmica, defende a existência de uma democracia racial, produto da fusão entre etnias e culturas, e que se constitui a essência de Casa Grande & Senzala . 

A segunda, tão bem exposta em Sobrados e Mucambos, é uma reflexão sobre o papel saliente do patriarcado na ordenação da sociedade desde o passado colonial, e na garantia atual da ordem política e social.  

A terceira, que se constitui no núcleo de Ordem e Progresso , depois Nordeste, salienta as relações entre região e tradição e dá especial ênfase ao regionalismo como elemento essencial de formação da unidade nacional.  

Há, porém, um elemento destacável que permeia toda a obra de Gilberto Freyre, em especial à da segunda fase.  

Refiro-me a forma com Freyre escreveu uma espécie de microhistória, na definição do historiador italiano Carlo Ginzburg, ou uma história íntima , dando, talvez imperceptivelmente, os contornos da nova História, ou da forma mais humana e menos racional de contar a História.  

De fato, ao escrever sobre a realidade social brasileira, Gilberto Freyre não recorreu aos chavões ou regras de natureza econômica ou política, nem a gráficos, nem a estatísticas e muito menos a tecnicalidades.  

Ele apenas descreveu o povo em sua simplicidade, o cotidiano doméstico das pessoas, a higiene caseira, o lazer de homens e mulheres, sua forma de vestir e de se alimentar, sua musicalidade, suas religiões e suas crendices, as cantigas de roda que alimentavam os sonhos das crianças, as festas populares, as manifestações das pequenas comunidades; em uma palavra, a intimidade dos indivíduos, a intimidade do povo.  

Trata-se, sim, de uma espécie de História da vida privada, escrita, pioneiramente, há quase sete décadas, mas extraordinariamente eloqüente ao transmitir, pela descrição do dia-a-dia de homens e mulheres, os elementos fundamentais da vida econômica e social do Brasil do início do século.  

Foi Gilberto Freyre quem mais inspirou os nossos compromissos com a democracia, exercida não apenas por sua concepção institucional, mas sobretudo pela sua dimensão social. Repito: sua dimensão social.  

Para tanto, Gilberto Freyre foi, a um só tempo, historiador, antropólogo, cientista e escritor. Sim, pois só um escritor, com talento para tal, seria capaz de descrever, com riqueza e criatividade, os costumes do povo, que é, afinal, o ator principal da vida social.  

Essa é, sem dúvida, Sr. Presidente, a forma mais justa de contar a História do Brasil, de destacar não apenas os heróis, mas todos, qualquer que fosse a sua condição social ou o seu papel nos acontecimentos.  

Francisco Iglésias, um de nossos maiores historiadores, autor de Trajetória Política do Brasil , mineiro do meu apreço pessoal, há pouco falecido em Belo Horizonte, sustenta que "a história política não pode deixar sem referência os grupos étnicos, classes sociais, religião, arte e ciência - em suas múltiplas manifestações -, mentalidades, formas de vida, ou, para dizer tudo em uma palavra, as suas manifestações culturais".  

Felizmente já estamos reescrevendo a História, dando a versão verdadeira dos grandes episódios que marcaram a vida brasileira, buscando identificar, por exemplo, na Inconfidência Mineira, que me trouxe a Minas e me fez mineiro, os grandes, mas igualmente os mais de cem pequenos atores que marcaram com sangue, perda da liberdade e degredo aquele episódio marcante da nossa formação como Nação independente.  

O Vice-Presidente Marco Maciel, pernambucano de boa cepa, em discurso em homenagem a Freyre, na cidade do Recife, interpretou de forma magistral a síntese do pensador de Apipucos, afirmando que "Quem somente aludir ao sociólogo estará esquecendo o renovador dos estudos históricos. Quem apenas se referir ao antropólogo social estará esquecendo o esteta. Quem estudar o antropólogo estará esquecendo o ensaísta. Os que se especializarem no ensaísta estarão ignorando o escritor. Este o sentido de sua obra. Nenhum outro brasileiro versou, com tanta originalidade e ineditismo mesmo, as áreas da ciência em que tenha atuado".

 

Marco Maciel destaca também o sentimento de pernambucanidade desenvolvido por Gilberto Freyre, que se confunde com o amor a Pernambuco, ao Recife, a Olinda e a todos os feitos heróicos que tiveram como palco a terra pernambucana, como os Guararapes, onde se escreveu com sangue o destino do Brasil como nação soberana.  

Da mesma forma, digo eu, o sentimento de mineiridade se confunde com as lutas libertárias de Minas e dos mineiros, da epopéia dos Inconfidentes, de onde saíram os libertadores do Brasil.  

Ao defender a pernambucanidade, dele e de outros pernambucanos com os quais Pernambuco ilustrou o Brasil, Gilberto Freyre, no célebre discurso de 24 de setembro de 1970, em homenagem ao poeta, escritor e jornalista Mauro Mota, que havia sido eleito para a Academia Brasileira de Letras, mencionou que "no Brasil, a Província continua a ser um valor em perigo: perigo até de morte. O provinciano continua a ser um brasileiro ameaçado de ser dissolvido noutras categorias, com prejuízo do que, nessa sua condição, é telúrico, convivente, existencial, concreto, carnal, básico".  

Sr. Presidente, a disputa das editoras pela reedição da obra de Gilberto Freyre é um exemplo ilustrativo do interesse que ela continua despertando nas novas gerações de brasileiros interessados em conhecer as origens da formação do Brasil e, como ao longo dos séculos, nos transformamos numa Nação.  

É admirável como as livrarias e editoras do Brasil inteiro, inclusive da minha querida e estremecida Belo Horizonte - há a fantástica sensação de que Belo Horizonte me pertence -, estão editando e reeditando livros sobre a História do Brasil, focalizando e identificando não apenas os heróis, como Tiradentes, mas também os mais de cem homens e mulheres que, na escuridão, na liturgia, no mistério e no enigma de Ouro Preto, libertaram o Brasil para os brasileiros.  

Sr. Presidente Antonio Carlos Magalhães, alegro-me pela oportunidade de trazer a este Senado e à Nação o profundo sentimento de respeito e de admiração que Gilberto Freyre nutria por Minas, pelo jeito de ser e de agir dos mineiros e pela contribuição que Minas Gerais prestou e vem prestando ao Brasil ao longo de sua História.  

Muito obrigado.  

 

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 26/05/2000 - Página 10911