Discurso durante a 40ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

INDIGNAÇÃO PELA REPRESSÃO AS MANIFESTAÇÕES POPULARES NAS FESTIVIDADES PELOS 500 ANOS DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL.

Autor
Heloísa Helena (PT - Partido dos Trabalhadores/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • INDIGNAÇÃO PELA REPRESSÃO AS MANIFESTAÇÕES POPULARES NAS FESTIVIDADES PELOS 500 ANOS DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL.
Aparteantes
Geraldo Melo, Roberto Requião.
Publicação
Publicação no DSF de 25/04/2000 - Página 7834
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • LEITURA, MENSAGEM (MSG), PROFESSOR, UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP), MÃE, ESTUDANTE, VITIMA, REPRESSÃO, POLICIA MILITAR, IMPEDIMENTO, PARTICIPAÇÃO, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, FESTA NACIONAL, ANIVERSARIO, DESCOBERTA, BRASIL.
  • CRITICA, ATUAÇÃO, POLICIA MILITAR, REPRESSÃO, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, ESTADO DA BAHIA (BA), RESPONSABILIDADE, GOVERNO ESTADUAL, DEMONSTRAÇÃO, INCOERENCIA, AUTORIDADE, DESRESPEITO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, GARANTIA, LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tive a oportunidade de presenciar a baderna promovida pelo Governo Federal e pelo Governo do Estado da Bahia em Porto Seguro, em Coroa Vermelha e em Cabrália. Recebi de pessoas que ou participaram das manifestações, ou as acompanharam pela imprensa, ou delas tiveram notícia por intermédio de seus filhos, ou simplesmente presenciaram os acontecimentos e-mails falando do tema, mas eu gostaria de partilhar com esta Casa o e-mail que recebi de uma professora da Unicamp, o qual diz:

Cara Senadora Heloisa Helena,

Escrevo-lhe com um misto de orgulho, vergonha, cidadania ferida, mas também como uma mãe que se vê representada.

Sou professora universitária e tenho três filhos. Nos tempos da ditadura, especialmente o mais velho, ainda pequeno, me acompanhou em vários momentos de militância. Na Campanha das Diretas, com quatro anos de idade, Camilo ia para a escola com uma camiseta amarela (por coincidência, a cor do uniforme) onde escrevemos: "eu já sei escovar meus dentes mas meus pais nunca votaram para presidente", foi a muita passeata... até que gostava daquele bando de gente na rua que gritava coisas que ele ainda não entendia muito bem. Participou de panelaços... às vezes, morrendo de vergonha da mãe, que era "escandalosa". Ajudou a etiquetar muita mala direta, em campanhas políticas... Recém-adolescente, foi Cara-Pintada...

Aprendeu que cidadania não se faz só no voto... Com vinte e um anos, no quarto ano de Ciências Sociais, no início desta semana nos comunicou que havia decidido ir a Porto Seguro, pois crê que a voz dos que pensam que não há muito a comemorar também devia se fazer presente. Conversamos sobre a adequação de sua ida, em função de problemas de saúde que está enfrentando... De minha parte, confesso, "a mãe" falou mais alto que "a cidadã"... Não adiantou..., o que lhe passamos esses anos todos falou mais alto. Lá foi Camilo para Porto Seguro...

Como mãe, só me restou provê-lo da medicação que está tomando e ensaiar modestos esquemas de segurança pessoal que, por experiência própria, sei que, na "hora H", a gente acaba deixando de lado, até porque frente aos esquemas de repressão pouco há a fazer. Como cidadã, vi um jovem que tem ideais que não se restringem à expressão de sua individualidade, mas que se engaja nas questões sociais que, acredita, farão de nosso País algo de que efetivamente possamos nos orgulhar e comemorar.

Camilo não chegou em Porto Seguro... Como tantas outras vozes, foi impedido de se manifestar por um esquema repressivo que faz muito não se vê... pelo menos contra os filhos da classe média... porque contra a população de baixa renda é cotidiano...

Minha indignação é menos por meu filho do que por toda uma geração que, tão jovem, aprende que muitos daqueles que estiveram nas ruas com seus pais são hoje os algozes da democracia e dessa nossa "gentil Pátria amada": privatizam nossas riquezas, suprimem direitos, massacram aqueles que querem terra para plantar, quebram aqueles que produzem sua parca subsistência, confinam os excluídos com um discurso da inclusão.

Meu orgulho, Sr.ª Senadora, é saber que nem todo mundo "fez a mesma lição de casa". Meu orgulho, Sr.ª Senadora, é saber que nem todos esqueceram que o nosso clamor era por um País com democracia e justiça social e que a manifestação popular é parte intrínseca desse processo.

Creio que a atuação, e não apenas nesse trágico episódio, nos mostra que é preciso fazer algo mais do que lamentar. Como mãe e cidadã expresso o meu orgulho de tê-la como Senadora.

Como mãe e como cidadã, essa professora expressa seu apreço por todos aqueles que foram a Porto Seguro não apenas para participar das programações oficiais. Aquele esquema, de tantos penduricalhos, tantas festividades, impediu as pessoas que queriam participar, levantando sua voz discordante de tanta festividade.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não fui até lá para participar das festividades oficiais, porque entendia que, com minha própria história, eu contava àqueles participantes a história dos vencidos e não a dos vencedores. Portanto, não tínhamos o que comemorar.

É claro que somos apaixonados pelo Brasil. Meu País não é do Fernando Henrique, não é do FMI, não é de um ou outro Senador, de uma ou outra personalidade política; o Brasil é dos brasileiros, daqueles que dão o máximo da sua capacidade de luta e de trabalho. Quem se apropria do Brasil não é a grande maioria que dá seu suor, sua dignidade, seu trabalho para fazer deste País uma nação justa, igualitária, fraterna, solidária, uma nação onde a riqueza produzida possa ser apropriada não por uma minoria, mas pela grande maioria dos brasileiros.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, estive lá. Nunca tinha visto tanta truculência, tanta incompetência ao conviver com conflitos, tanta insensibilidade para lidar com problemas como o que estava acontecendo em Porto Seguro, em Coroa Vermelha e em Cabrália. Por outro lado, nunca vi tanta coerência; havia a mais perfeita coerência com a arrogância, a truculência, a intolerância de uma elite política e econômica incapaz de conviver com a divergência. Nunca vi combinação mais perfeita: a arrogância e a intolerância do Governo Federal, que, no auge do seu atrevimento, é incapaz de entender o que a Constituição estabelece. Não se trata do que estabelece o estatuto de um Partido de esquerda, ou da concepção ideológica de uma pessoa ou do Movimento dos Sem-Terra ou do Movimento dos índios, mas da Constituição, que estabelece o livre exercício da manifestação.

A própria Constituição diz que é livre a manifestação do pensamento e que ninguém será obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante.

O que aconteceu, patrocinado pelo Governo Federal e pelo Governo do Estado da Bahia, foi a mais clara e perfeita demonstração da arrogância, da truculência e da intolerância ao conviver com aqueles que pensam diferentemente e que, por terem pensamento diferente, têm o sagrado direito de expressá-lo.

Sinceramente, fiquei impressionada, porque lá, Senador Roberto Requião, Srªs. e Srs. Senadores, não existia justiça, não existia lei. O juiz da cidade foi impedido de passar! O juiz teve de dar voz de prisão ao Coronel Müller, o qual não tinha competência para comandar uma operação como aquela. Como pode um coronel da Polícia Militar comandar uma operação dessas tendo na mão uma bomba de efeito psicológico, uma bomba de gás lacrimogêneo, ameaçando as pessoas, dizendo: "Se vier, eu faço isso!" Era impressionante! A situação chegou ao ponto de o juiz da cidade ser impedido de passar. Este, diante disso, deu voz de prisão ao Coronel Müller, o qual, por sua vez, disse que não seria preso, desafiando mesmo a que se dissesse quem poderia prendê-lo na frente da tropa.

Vejam V. Exªs: o juiz, que representa o Judiciário da cidade, foi impedido de passar, assim como os Procuradores do Ministério Público Federal da Bahia e Pernambuco! O carro do Ministério Público, apreendido, também foi impedido de passar. Mais de 102 pessoas foram presas. Jogaram bombas dentro de uma pousada, um pequeno hotel, deixando os pequenos empresários da região completamente apavorados. Eu vi o que aconteceu, Sr. Presidente; não ouvi falar do ocorrido nem tomei conhecimento do episódio apenas pela mídia.

A História nos conta que os velhos capitães-do-mato arrastavam os negros de volta para a senzala, e foi exatamente isso o que aconteceu no local. Aliás, alguns jornais reproduziram com primor a imagem de policiais arrastando os negros pelos cabelos, como os velhos e covardes capitães-do-mato faziam com os negros para trazê-los de volta à senzala, cumprindo as ordens dos senhores brancos que se julgavam os donos do mundo. Vi índios idosos, carregando seus netos no colo, sendo perseguidos pela cavalaria no meio do mato. E aí é de se perguntar, Sr. Presidente, Srs. Senadores: o que pode fazer um índio ou uma índia idosa, com uma criança no colo, contra um policial armado a cavalo? Eles não poderiam fazer nada. Contudo, fizeram questão de perseguir essas pessoas pelo meio do mato, da mesma forma como fizeram ao tempo da escravidão, na mais absoluta coerência com a nossa própria História.

Sr. Presidente, nunca tive a oportunidade de ver, com tanta coerência, de um lado, a festividade, o luxo, o glamour da elite política e econômica e, ao mesmo tempo, de outro lado, essa mesma elite política e econômica reproduzindo a própria História de arrogância, de intolerância, de intransigência.

Portanto, Sr. Presidente, quero que fique aqui registrada a nossa saudação a todos os movimentos que participaram, com uma passividade impressionante, ainda porque, se o Presidente da República dizia que se tratava de "uma meia dúzia de gatos pingados", então, é de se indagar: por que tanto medo em se deixar que essa "meia dúzia de gatos pingados" simplesmente circulasse pelas cidades? Se era apenas "uma meia dúzia de gatos pingados", o que havia de tão grave no fato de essas pessoas quererem apenas transitar livremente por aquelas cidades? Nem em Coroa Vermelha, nem em Cabrália, Eunápolis, Porto Seguro, ninguém podia; era um estado de sítio.

Ainda mais: tudo isso já havia sido programado, porque, quando o Coronel Santana estava em todos os jornais, ainda quando da destruição do monumento dos Pataxós, dizendo estar ali para matar ou para morrer, já estava sendo sinalizado o clima em que iriam transcorrer as manifestações do último dia 21, e, portanto, caberia ao menos sensibilidade para entender que algo mais grave deveria acontecer.

O Sr. Roberto Requião (PMDB - PR) - V. Exª me concede um aparte?

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Concedo um aparte a V. Exª, Senador Roberto Requião.

O Sr. Roberto Requião (PMDB - PR) - Senadora Heloisa Helena, um dos teóricos da democracia, o famoso Alexis de Tocqueville, tem uma frase muito apropriada para esta situação. Diz ele: "Pode-se fazer quase tudo com uma baioneta, menos sentar-se em cima dela." O Presidente da República se armou com as baionetas disponíveis e, junto com ele, levou a insuspeitada truculência do novo "Nini" do Governo, o novo General Newton Cruz, que atende hoje pelo nome de General Cardoso. O aparato militar ali montado fatalmente seria usado. E a senha para a violência foi dada, no período que antecedeu as manifestações, pelo próprio Presidente da República, falando "em baderna do MST", e pelo General Cardoso, por meio das suas afirmações. O Coronel da Polícia Militar da Bahia nada mais fez que agir instigado pelo medo do Presidente da República e do General Cardoso. É o medo que provoca a agressão: o medo da manifestação dos índios, dos sem-terra; a certeza de que não se está fazendo nada para remediar a situação social do País. Quanto a esse novo "Nini" do Governo, o famoso General Cardoso, que afirmam curar pela imposição das mãos, talvez seu lugar não fosse no controle de manifestações ou na condução da segurança da Presidência da República. Com alguma ironia, poderíamos mandá-lo para a seleção brasileira, onde, talvez - não mais que talvez -, na condição de massagista, pudesse resolver os problemas do Ronaldinho. A violência foi absolutamente incrível e a irresponsabilidade completa; contudo, sem a menor sombra de dúvida, o código e a senha para a violência vieram na palavra do General e do Presidente.

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Senador Roberto Requião, agradeço o aparte de V. Exª.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Ouço V. Exª com prazer.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Senadora Heloisa Helena, eu não estava lá. Sei o que sabe a grande opinião pública brasileira. Sou, como sabe V. Exª, um grande admirador da sua bravura, da sua coragem e do seu desempenho intenso e carregado sempre de emoção nesta Casa. A minha intervenção, portanto, é profundamente respeitosa em relação a V. Exª. O que desejo não é discutir os fatos. É claro que, em todas as operações que apresentem qualquer tipo de caráter repressivo ou de manutenção da ordem e que lidem com multidões, há sempre a possibilidade de serem praticados excessos. Agora, concordo com V. Exª quando diz ser necessário, se queremos uma democracia no Brasil, que as vozes discordantes possam manifestar-se. Por outro lado, também é necessário, Senadora Heloisa Helena, que essas manifestações comecem a obedecer a determinados padrões. V. Exª há de se recordar do que ocorreu na semana passada, no Senado Federal, quando o Presidente desta Casa recebia uma comissão de índios, e também deve ter lido, em uma revista semanal, uma entrevista desse índio, dando graças a Deus pelo fato de a segurança ter-se aproximado, pois ele estaria disposto a atirar uma flecha no Senador Antonio Carlos Magalhães, o Presidente do Congresso Nacional. Naturalmente, isso simboliza o tipo de excesso que também existe do outro lado. Se as manifestações de divergência se limitassem a comunicar que existe na sociedade um segmento que diverge, sem a intolerância, a prepotência e a arrogância de pretender impedir que outros grupos sociais realizem o que programaram, não haveria ninguém com responsabilidade no Brasil que deixasse de defender essas manifestações. Darei a V. Exª um depoimento pessoal, pedindo desculpas se estiver alongando-me - e tenho certeza de que a Mesa será tolerante com V. Exª pela culpa que tenho em deter-me neste aparte. Estava eu no Rio Grande do Norte quando o Presidente da República foi entregar ao Estado, na Cidade de Mossoró - onde há mais de 300 mil habitantes -, uma obra, financiada com recursos federais e com a participação do Governo do Estado, que resolve o problema de abastecimento d’água de uma cidade desse porte, além de um anseio, uma exigência e uma reivindicação de gerações. Evidentemente, naquele lugar, havia quem manifestasse ao Presidente seu desagrado com outras coisas. Todavia, para ser justo e democrático, deveria reconhecer o seu agrado com o que estava acontecendo ali. Havia mais de dez mil pessoas numa praça, que foram convidadas a se manifestar e a levantar o braço se estivessem com vontade de homenagear o Presidente da República, e todas levantaram. Duzentas pessoas praticamente impediram que aquelas dez mil pessoas se manifestassem. Senadora Heloisa Helena, concordo com V. Ex.ª que a história dos povos virou a história dos Estados e os povos são algo diferente dos Estados. A história dos Estados Unidos não é a dos governos dos Estados Unidos e, sim, a dos índios americanos, dos negros, dos imigrantes, ricos e pobres que para lá foram. A história do Brasil é a história do nosso povo, a narrativa disponível é a história do Estado brasileiro. Concordo com isso, mas entendo que deve haver um lugar no Brasil onde essas coisas sejam vistas com serenidade, sem jogos de palavra meramente jocosos, como algumas vezes vemos, sem que ninguém se aprofunde no conhecimento da realidade ou queira apresentar a realidade por inteiro. Tem que haver um lugar neste País onde as coisas possam ser discutidas e examinadas com serenidade. Ou muito me engano ou o lugar para que isto aconteça é o Senado Federal. Por isso é que, com a intenção de colaborar, atrevi-me a fazer o aparte a V. Ex.ª.

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Senador Geraldo Melo, agradeço o seu aparte, que muito me honra. Realmente, é algo extremamente difícil na democracia e que é, sem dúvida, uma das maiores conquistas da humanidade. Lógico que não estamos em uma democracia plena porque ela não se reproduz apenas na nossa presença, de forma legítima, pela vontade popular. Democracia não se expressa simplesmente no processo eleitoral; não vivemos uma democracia plena pela fome, miséria, humilhação, pelo sofrimento de milhões de pessoas.

A grande dificuldade, não apenas na vida coletiva, em sociedade, é justamente decifrar o enigma de onde termina o seu direito e onde começa o do outro. Sei que é um grande enigma a ser decifrado. É exatamente porque não somos capazes de decifrá-lo, de desvendar mistérios que, muitas vezes, não são apenas baseados nas concepções ideológicas, mas em pressupostos éticos, morais, culturais de cada um de nós, que existe a Lei. Para isso é que existe a Constituição, aprovada por um Congresso Nacional. Posso ter divergências com relação à Constituição e ao Congresso Nacional, mas a Lei existe para ser cumprida. Sobre o que aconteceu em Porto Seguro - não estou falando pautada em minhas convicções ideológicas, que me separam de forma abismal da concepção de Estado do Presidente da República - mas a Constituição, a legislação vigente, foi rasgada e ferida. Que se estabelecessem mecanismos de segurança para garantir a presença do Presidente da República, que se dizia ameaçado em relação a determinadas coisas, estaria correto. Para ser garantida a segurança de um Presidente da República, da comitiva oficial e das pessoas que queriam participar da comemoração oficial - se estavam ali para participar do evento, a Constituição lhes garante esse direito -, não precisaria que se instalasse um estado de sítio, impedindo que outras pessoas pudessem participar. Não eram milhares de pessoas. Aliás, se fosse pela forma jocosa do Presidente da República, seria "meia dúzia de gatos pingados", que também não era. Mas não eram milhares de pessoas que pudessem desestabilizar a segurança de qualquer lugar.

Quero dizer a V. Exª que não é verdade. Fatos lamentáveis aconteceram: juiz impedido de passar, carro do Ministério apreendido, representantes do Ministério Público Federal que não podiam transitar. Chegou-se a um momento em que um juiz deu voz de prisão a um coronel, porque este não o deixava passar, gozar do direito que a Constituição estabelece, que é o de ir e vir. Era um juiz que não estava promovendo absolutamente nada, nenhuma manifestação, estava lá para tentar atenuar um conflito. Criou-se, então, um impasse: foi dada voz de prisão e, no final, nem foi cumprida. O que aconteceu desrespeita o estado de direito e nos envergonha. Nunca vi tanta coerência junta! A arrogância, a truculência e a intolerância fizeram com que se repetisse, diante de nossos olhos, aquilo que passamos a vida toda vendo nos velhos e gastos livros de História: negros arrastados pelos cabelos por capitães-do-mato, que deveriam levá-los de volta à senzala, índios espancados, mulheres idosas, com seus netos no braço, corriam pelos matos perseguidas pela cavalaria.

A situação que mencionei, efetivamente, não respeita o estado de direito. Ao contrário, fere a Constituição, a democracia e leva um sentimento de dor e humilhação aos que amam este País, este nosso Brasil querido.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Concede-me V. Exª um aparte?

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Pois não, Senador Geraldo Melo.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Concordo com V. Exª em que a grande dificuldade está em estabelecer limites e que o grande balizador deve ser sempre a lei. A Constituição que V. Exª invoca, que protege o direito de ir e vir e a livre manifestação do pensamento, também define quem são as autoridades do País e estabelece uma série de direitos e obrigações em relação a elas. É a mesma que institui o direito de propriedade no Brasil. Algumas vezes, quando vemos uma propriedade ser invadida...

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - E V. Exª sabe que a Constituição protege o direito de propriedade, desde que ela cumpra sua função social. Do contrário, não terá seu direito protegido.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Perfeito, o direito de propriedade está protegido e o caminho para se resolver o litígio, quando a propriedade não cumpre a sua função social, não é a sua invasão e tomada à força. Nessa hora, a lei também devia ser a nossa baliza, V. Exª não acha?

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Concordo inteiramente, Senador Geraldo Melo. Afirmo apenas que quem não cumpre a lei em relação à desapropriação e quem não cumpre a Constituição é o Governo Federal. A Constituição estabelece como limite do direito à propriedade privada a função social. Se ela não cumpre a função social, não está mais protegida como propriedade privada. Infelizmente, quem não cumpre a lei em nosso País é o Governo Federal.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Se V. Exª pensa assim, é difícil discutir.

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Em relação à pendenga do Movimento dos Sem-Terra, o João Pedro Stédile uma vez disse uma coisa corretíssima: querem acabar com o Movimento dos Sem-Terra? Façam a reforma agrária. A melhor forma de se acabar com o Movimento dos Sem-Terrra é fazer a reforma agrária. Essa ainda é uma responsabilidade constitucional do Governo Federal, que infelizmente faz desapropriação só à custa da violência no campo, como várias vezes já foi definido em debates nesta Casa. O levantamento das propriedades improdutivas sequer foi feito. Nos debates que fizemos aqui e na Comissão de Assuntos Sociais - V. Exª deve ter assistido -, quando se indaga qual é a ação do Governo Federal para fazer a reforma agrária, vemos que essa ação só se dá à luz das ocupações, à luz dos conflitos, à luz da violência no campo, e isso nenhum de nós quer.

O Sr. Geraldo Melo (PSDB - RN) - Desculpe-me, Senadora. Concordo com V. Exª. Apenas não considero que o Governo Federal seja o culpado. Estou dizendo que, se a lei é nossa baliza, não podemos autorizar, quem quer que seja, por mais legítimas que sejam suas bandeiras e aspirações, a fazer justiça com as próprias mãos. Um Espírito Santo de orelha passou aqui e disse-me no meu ouvido : "Daqui a pouco, se acharmos que alguém é bandido, aplicaremos a sentença e a pena sobre ele." Temos o estado de direito a que V. Exª se referiu tantas vezes. Concordando com V. Exª, a lei é nossa baliza, mas, por isso mesmo, não deve haver nenhum brasileiro que se sinta estar autorizado, pela lei ou por movimento algum, a sair à rua para fazer justiça com as próprias mãos. É só isso que estou querendo dizer.

O SR. PRESIDENTE (Carlos Patrocínio) - Senadora Heloisa Helena, peço a V. Exª que conclua e não permita mais apartes.

A SRª HELOISA HELENA (Bloco/PT - AL) - Sr. Presidente, já estou terminando.

Eu também já vi quem foi o Espírito Santo. Ele deve estar agonizando ao saber que é Vice-Líder do Governo que está soprando essas informações.

Apenas para concluir, quero mais uma vez registrar o nosso protesto e dizer que estaremos acompanhando os inquéritos que serão abertos pelo Ministério Público Federal, no sentido de que sejam apuradas as devidas responsabilidades para que os responsáveis possam, efetivamente, ser punidos.

Sei que, infelizmente, já está nas mentes e corações da população brasileira que este é o País da impunidade, mas, pelo menos, continuamos tentando fazer com que o Brasil não seja o País da impunidade e, sim, uma Nação justa e igualitária, fraterna e solidária, que tanto a amamos e tanto lhe queremos.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/04/2000 - Página 7834