Discurso durante a 96ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

SIGNIFICADO DA DECIFRAÇÃO DO CODIGO GENETICO DO SER HUMANO.

Autor
Lúcio Alcântara (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Lúcio Gonçalo de Alcântara
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.:
  • SIGNIFICADO DA DECIFRAÇÃO DO CODIGO GENETICO DO SER HUMANO.
Publicação
Publicação no DSF de 11/08/2000 - Página 16590
Assunto
Outros > POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.
Indexação
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, RESULTADO, PESQUISA CIENTIFICA, PADRÃO GENETICO, HOMEM, IDENTIFICAÇÃO, PREVENÇÃO, HERANÇA, DOENÇA, DESENVOLVIMENTO, MEDICAMENTOS.
  • DEFESA, EXERCICIO, ETICA, SETOR, MEDICINA, GENETICA, REFERENCIA, APROVEITAMENTO, RESULTADO, PESQUISA CIENTIFICA, PADRÃO GENETICO, OBJETIVO, BUSCA, BENEFICIO, COMUNIDADE, AMBITO INTERNACIONAL.

O SR. LÚCIO ALCÂNTARA (PSDB - CE) – Sr. Presidente, Srªs. e Srs, Senadores, a humanidade realizou recentemente um feito científico da mais alta significação. Trata-se da decifração do código genético de nossa espécie, com a qual se chegou a uma visualização de impressionante nitidez dos mecanismos que desenham o ser humano. Suas conseqüências, ainda que não possam ser previstas precisamente, serão imensas e vão desdobrar-se, nas próximas décadas, em novas descobertas e avanços científicos, particularmente na área da medicina.  

O ácido desoxirribonucléico – ou DNA – é a estrutura molecular onde fica registrado o código genético – ou genoma – dos seres vivos. No caso do ser humano, ele se localiza em 46 cromossomos, recebidos metade do pai e metade da mãe, os quais se repetem, com idêntica configuração, no núcleo de cada uma das bilhões de células do corpo. A maior parte do DNA, no entanto, tem função desconhecida. O conjunto dos genes está localizado em uma porção do DNA humano que corresponde de 3 a 5% do total. São os genes que portam as instruções de síntese de proteínas, as quais serão responsáveis pelas várias características de cada organismo, compreendendo desde a formação e o modo de funcionamento de seus órgãos vitais até a cor de seus cabelos.  

O DNA é composto por elementos chamados de nucleotídeos, que são de apenas 4 tipos, conforme a respectiva base nitrogenada: adenina, timina, citosina, guanina. A seqüência dos 4 tipos de nucleotídeos, representados pelas letras A, T, C e G, combinadas em pares, é que forma o código no qual está escrito, conforme a metáfora consagrada, "o livro da vida".  

No mês de junho passado, foi divulgada a primeira versão de mapeamento do genoma humano. Trata-se, ainda, de um rascunho, mas que já permite identificar cerca de 98% dos componentes do nosso DNA. Esses componentes são 3,1 bilhões de pares de letras químicas, compreendendo tanto o DNA considerado, até o momento, inútil, quanto aqueles 3% que formam os genes. Os genes humanos ainda não foram completamente identificados: estima-se que sejam 50.000, dos quais 10.000 já são conhecidos. Cerca de 6.000, ou mais da metade dos genes humanos conhecidos, foram descobertos durante o processo de mapeamento do genoma.  

Esse grande marco para o conhecimento do ser humano foi obtido pelos esforços de dois consórcios científicos: um deles é o Projeto Genoma Humano, financiado pelos governos dos Estados Unidos e de outros países, e por instituições internacionais; o outro chama-se Celera Genomics , uma sociedade anônima de natureza privada e intuitos comerciais.  

Os cidadãos que não são versados no assunto podem se perguntar qual é, afinal, a real importância da decifração dessa seqüência de 3 bilhões de letrinhas para as nossas vidas. Vimos que os genes contêm todas as informações inatas a respeito da formação e do desenvolvimento de um organismo. Grande parte das doenças humanas têm sua origem em informações genéticas inadequadas. Foi comprovado, por exemplo, que o Mal de Alzheimer, que causa gravíssimos problemas degenerativos, se relaciona a um certo gene do cromossomo 14. A presença de uma adenina em lugar de uma guanina na posição 334 eleva em 11 vezes a possibilidade de ocorrência da doença. Já estão catalogadas 11.700 alterações genéticas que se relacionam a doenças.  

Não deve ser esquecido, no entanto, que a simples informação genética não predetermina o que vai ocorrer com o indivíduo. A influência do meio ambiente e dos comportamentos do próprio indivíduo terão uma importância considerável para que uma determinada tendência venha ou não a se manifestar e de que modo o fará. Com o mapeamento genético de uma pessoa, seria possível identificar sua tendência a contrair determinada doença, a qual poderia ser evitada com a adoção de certos comportamentos e cuidados, incluindo a utilização de medicamentos.  

O avanço do conhecimento na identificação dos genes e das implicações de suas mensagens vai revolucionar a medicina, permitindo diagnósticos precisos e o desenvolvimento de novos remédios. Deve crescer, também, uma tendência para tratamentos que considerem as diferenças individuais, tendo em vista o mapeamento genético preciso do paciente. Uma mudança ainda mais profunda poderia ocorrer com uma terapia gênica, que substituísse os genes problemáticos por genes sintéticos.  

Não há dúvida de que alterações no código genético dos indivíduos, assim como várias outras possibilidades abertas pelo desenvolvimento exponencial da genética, remetem a questões éticas delicadas e complexas. Não é por outra razão que o Projeto Genoma Humano definiu como um de seus objetivos básicos o de "avaliar conscienciosamente as implicações éticas, legais e sociais que surgem da disponibilidade (dos) dados" obtidos.  

Uma primeira questão já surgiu pelo confronto de duas diferentes concepções quanto à utilização do mapeamento do genoma humano. O principal consórcio privado envolvido no processo de decifração do genoma pretendia que suas descobertas fossem patenteadas, de modo que o código (ou a seqüência de nucleotídeos) de um determinado gene pudesse pertencer a um grupo ou indivíduo, que venderia a informação e o direito de utilizá-la. Muitos cientistas consideram absurda a proposta de se patentear algo que já existe na natureza, lembrando que o descobridor do glóbulo branco, por exemplo, nunca o patenteou. A intenção do Projeto Genoma Humano, por sua vez, e que já vem sendo cumprida, é a de disponibilizar todos os dados referentes ao mapeamento genético na Internet, para que os pesquisadores de todo o mundo possam utilizá-los.  

Há, no entanto, questões ainda mais sérias, relacionadas à dignidade dos indivíduos e da espécie humana. A preocupação com tais questões levou a Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura a criar, já em 1993, um Comitê Internacional de Bioética, o qual elaborou uma proposta de Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos. A declaração, tendo por objetivo estabelecer princípios éticos duradouros e de alcance universal, foi aprovada e adotada pela Conferência Geral da Unesco em novembro de 1997. Podemos começar citando os seus artigos iniciais, que trazem alguns conceitos e princípios de crucial relevância:  

"Art. 1º. O genoma humano está na origem da unidade fundamental de todos os membros da família humana, bem como do reconhecimento de sua dignidade e diversidade inerentes. Em um sentido simbólico, ele é a herança da humanidade.  

Art. 2º. a) Todos têm direito ao respeito por sua dignidade e por seus direitos, independentemente de suas características genéticas. b) Essa dignidade torna imperativo que não se reduzam os indivíduos a suas características genéticas e que sejam respeitadas a sua singularidade e a sua diversidade".  

Ao mesmo tempo em que estimula a pesquisa relativa ao conhecimento do genoma humano e o desenvolvimento de suas aplicações nas áreas de biologia e medicina, considerando a liberdade de pesquisa como parte da liberdade de pensamento, a declaração enfatiza que "práticas contrárias à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos, não devem ser permitidas". Intervenções nos genes das células embrionárias também são citadas como potencialmente ofensivas à humanidade.  

Considerando esse documento, Srªs e Srs. Senadores, damo-nos conta de que os Estados e seus legisladores devem assumir novas responsabilidades, concernentes ao regulamento das atividades que utilizam o conhecimento do genoma humano. Nesse âmbito, estão compreendidos o adequado aproveitamento dos futuros benefícios, sobretudos médicos – de modo a que possam atingir o conjunto de nossa população, e não apenas os grupos economicamente privilegiados –, assim como a proibição de determinadas experiências e práticas.  

A declaração, não só estimula a formação, em nível nacional, de comitês de bioética, de caráter independente, multidisciplinar e pluralista, como também recomenda a disseminação do conhecimento científico relativo ao genoma humano, enfatizando a necessidade de cooperação cultural e científica, particularmente entre países industrializados e países em desenvolvimento. Cabe lembrar, nesse particular, que o Brasil não tem apenas o que receber em termos de conhecimento do genoma humano e de outras espécies, destacando-se, já há algum tempo, por suas pesquisas genéticas. De acordo com recente notícia da Folha de S. Paulo (edição de 30 de julho último), "o Brasil deve ser o primeiro país do mundo a conhecer todos os genes ativos em um tumor maligno – no caso o câncer de mama. Espera-se que todos os genes ativos nessas células estejam seqüenciados até o fim do ano." O grupo de pesquisa responsável pelo feito faz parte do Projeto Genoma Humano do Câncer, financiado pelo Instituto Ludwig de Pesquisas sobre o Câncer e pela Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo).  

Concluímos o presente pronunciamento, Sr. Presidente, ressaltando que o conhecimento do genoma humano já se apresenta como uma realidade incontornável diante de nós. Não podemos ignorar os benefícios que certamente advirão desse conhecimento, nem tampouco os seus riscos potenciais para a integridade e dignidade humanas. Essa inédita realidade científica impõe novos desafios à sociedade, incluindo o papel a ser desempenhado pelo Poder Legislativo – o qual estou certo que dele não se eximirá.  

Muito obrigado.  

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/08/2000 - Página 16590